Lembro-me bem de um acontecido incomum,
até mesmo para minha tia, que geralmente se mantinha praticamente muda, caso
possamos desconsiderar gemidos ou sons guturais emitidos enquanto aquele olhar
inquisidor era alçado sobre mais uma das vítimas. No dia em questão, creio que
uma quarta-feira, que era quando geralmente me encontrava com a minha parenta
distante o suficiente para não me comprometer, e perto demais para correr risco
de respingos tocarem o meu íntimo.
Lá estava eu no mercado da família a
fim de fazer os pedidos semanais para os fornecedores. Enquanto entrava em
contato com o frigorífico, notei que um homem enorme, desses que evitamos até olhar
para não provocarmos pendengas desnecessárias, levantou a voz para a minha tia,
que estava confortavelmente sentada na cadeira lendo o jornal. Nem quis me
inteirar do assunto, mesmo porque temia que tamanha intromissão se voltasse contra
mim.
Antes de lançar sobre o sujeito
aquele olhar de provocar medo inclusive no próprio Demônio, tia Adriana deu uma
enérgica sacudidela no jornal, o que fez com que até mesmo as moscas parassem
de respirar por um instante. Foi o suficiente para que o grandalhão percebesse
que havia ultrapassado a linha do bom-senso e, quase de imediato, abaixou os
olhos em sinal de submissão.
Nunca soube o que de
fato teria levado àquele desaforo. Seja como for, procurei me concentrar no
pedido junto ao frigorífico. No entanto, ainda me lembro do troglodita rateando
mais do que motor de carro antigo antes de se despedir.
— Tá-tá-tá bom pra se-se-senhora,
do-do-dona Adri-dri-driana?
— Quase bom, pra não variar!
- Nota de esclarecimento: O conto "Tia Adriana e seu olhar gélido" foi publicado por Notibras no dia 13/10/2025.
- https://www.notibras.com/site/tia-adriana-e-seu-olhar-gelido/
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