quarta-feira, 15 de outubro de 2025

Malu e o caquinho

Alfredo, assim que abria os olhos, era expulso da cama pelo pensamento que lhe fora incutido de que tempo é dinheiro. Levava tal premissa tão ao pé da letra, que não enxergava a pequena Malu, de dois anos, cujo semblante não parecia entender o porquê daquela correria toda. Se fosse ao menos para abrir a geladeira e pegar o pote de sorvete. Mas não!

          A menina, mal piscava os olhos de jabuticaba, perdia o pai de vista, que, não raro, saía de casa sem ao menos lhe dar um beijo de despedida. Era como se aquele homem fosse um ser praticamente desconhecido, caso não fossem por domingos e feriados breves. Aliás, mesmo nesses parcos momentos, sempre carregados de vazio, nada além de efêmeras trocas de olhares, como se o sujeito, apesar de esparramado no sofá, não estivesse ali, ou pior, não desejasse estar naquele ambiente. 

          A esposa se aproximou.

          — Vai trabalhar amanhã?

          — Preciso.

          — Hum...

          — O que foi?

          — Nada.

          — Como nada?

          — Nada, ué!

          — O que foi agora, Márcia?

          — É que a Malu sente a sua falta.

          Alfredo encarou a mulher, depois voltou a olhar para a filha, que estava sentada no tapete, absorta com o desenho animado na televisão. 

          — Ela nem sabe que existo.

          — Sabe, sim!

          — Até parece...

          — Alfredo, por que você não aproveita a sua folga hoje e vá brincar com a Malu no parquinho.

          — Parquinho?

          — É! Tem um parquinho ali em frente.

          — E eu lá tenho tempo pra ir a parquinho, Márcia?

          O leve tom acima do normal chamou a atenção da pequena, que voltou o semblante para o pai. 

          — Caquinho?

          — O quê?

          — Ela está te chamando pra ir pro parquinho, Alfredo.

          O homem encarou a garotinha, que abriu um sorriso que ele não conhecia ou, ao menos, não se lembrava. Sem coragem de dizer não, sorriu de volta.

          — Sim, Malu. Parquinho. Não é caquinho, hein?! Par-qui-nho!

          Alfredo, Malu no colo, atravessou a rua e se dirigiu ao parque, que ficava a menos de 200 metros da residência. Enferrujado por anos atrás da mesa do escritório, o corpo sentiu o tranco de aguentar tamanha euforia da criança. Todavia, quando se deu conta, já estava anoitecendo.

          A dupla, mal retornou ao lar, estava exausta, apesar de feliz. Tanto é que Alfredo, ainda com a filha no colo, beijou a esposa. 

          — E aí, se divertiram muito?

          — De montão!

          — Desculpe por tirá-lo do sossego no seu dia de folga, meu bem.

          — Sabe de uma coisa que há anos tinha me esquecido?

          — O quê?

          — Como é bom brincar no caquinho.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Malu e o caquinho" foi publicado por Notibras no dia 15/10/2025.
  • https://www.notibras.com/site/malu-e-o-caquinho/

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