domingo, 31 de agosto de 2025

Baú de memórias

    

         Estou enlutada. Sim, perdi um grande amigo e, provavelmente, o amor da minha vida na juventude, que resolveu deixar este plano por questões do coração, que há tempos andava falhando, como me disse da última vez que nos encontramos. A ocasião não era costumeira para gente da nossa estirpe: velha e sem filhos. Uma festa de crianças.

            Carlos Roberto, o Beto da nossa patota dos anos 1970, era um tipão. Mesmo assim, o que mais me chamou a atenção foram seus olhos egípcios, como se delineados fossem por mãos maquiadoras. Tentei não demonstrar interesse e, parece, funcionou, já que, no mês seguinte, estávamos no cinema assistindo ao filme Copacabana Mon Amour, quando fui quase surpreendida por um beijo repentino do Beto. Confesso que, apesar de desejá-lo, me senti ligeiramente desnorteada.

            Não pense você que aquele havia sido meu primeiro beijo. Já tinha visitado outras esquinas e, por isso mesmo, poderia me considerar uma mulher avançada à época. Não uma doidivana, porém, consciente dos próprios desejos aflorados pela juventude repleta de hormônios. Sim, uma mulher.

            O namoro não durou mais do que um ano, o que não impediu de criarmos laços para toda a vida. Era um amor fraternal, mas com aquelas costumeiras recaídas que puxavam nossos corpos sedentos para debaixo dos lençóis. Se havia culpa nesses momentos? De jeito nenhum. Éramos adultos e, como tais, sabendo ou não o que estávamos fazendo, voltávamos para a realidade como se acabássemos de degustar um chá de erva-cidreira com biscoitos amanteigados no final da tarde.  

            Além de bom amante, meu amigo era um sujeito divertidíssimo, desses que são notados até em velório. Não à toa, todos não conseguiram tirar os olhos sobre seu corpo inerte dentro daquele caixão. Se fosse outro o falecido, certamente estaríamos espalhados pelos cantos da capela fofocando ou falando sobre a última vitória do Vasco ou do Botafogo ou de qualquer outro time popular. 

            Por falar em velório, parece que é o real momento para nos despedirmos dos que partem sem avisos. Há o clímax do desespero, quando chega a hora do enterro, mas que, já no instante seguinte, nos dá uma sensação de alívio. É como se, a partir daquele instante, tudo tivesse realmente acabado, ficando apenas lembranças e fotografias, que vão se borrando com o passar dos dias até que, de repente, desaparecem. 

            Não sei se isso acontece apenas comigo, já que tenho enterrado, ao longo desses meus 73 anos, tanta gente querida. Isso me fez pensar que, provavelmente, quando chegar a minha hora, seja melhor a cremação para evitar tanto sofrimento alheio. Imagine, então, se ninguém aparecer? Como é que fico? Já pensou? Justamente eu, que carrego o inusitado nome de Lucrécia, ser enterrada sem plateia? Que vergonha!

  • Nota de esclarecimento: O conto "Baú de memórias" foi publicado por Notibras no dia 31/8/2025.
  • https://www.notibras.com/site/bau-de-memorias/

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