Há coisas que nos reportam para fatos há
tempos ocorridos. E foi o que aconteceu comigo na semana passada, quando
precisei ir ao Setor Comercial Sul, aqui em Brasília, para resolver pendengas
deixadas de lado até que, não podendo mais esticar a prevaricação, fui num
misto de preguiça e culpa, sentimentos que desde sempre me são tão fiéis.
Enquanto caminhava pelas calçadas apinhadas
de gente, percebi um ambulante vendendo frutas. Na verdade, o que me chamou a
atenção mesmo foi que ele, com a destreza de um profissional do ramo, fatiava
uma melancia. Segui meu caminho e deixei o vendedor e sua banca para trás,
mesmo porque queria resolver logo o que vinha adiando há praticamente dois
anos. Mera confecção da carteira digital no conselho que regula a minha profissão.
Nem sei por que me dei a esse trabalho, já
que pretendo me aposentar nos próximos meses. Seja como for, fiz o que a
modernidade clama àqueles que querem se enquadrar aos novos tempos. Pois é,
como se isso me colocasse nesse balaio de antenados, justamente eu, um notório,
e não notável, diga-se de passagem, do ofício que escolhi ou, não descarto tal
possibilidade, fui empurrado na longínqua juventude nos idos de 1973.
Assim que
meus gastos sapatos voltaram à calçada, avistei novamente o camelô. Pelo número
reduzido de fatias de melancia sobre a bancada, percebi que, provavelmente, se
tratava de pujante comerciante local. E, por mero impulso, fui até ele.
— Bom dia! Quanto tá a melancia?
— Bom dia! Cinco reais.
Não sei se infância tem sabor, mas, caso tivesse, a minha seria
que nem melancia. Sentávamos debaixo de uma árvore enquanto devorávamos uma
inteirinha aos nacos, cujo sumo escorria pelos cantos das bocas felizes. Dias
de melancia, invariavelmente, se tornavam noites assustadoras, pelo menos para
mim.
Morava em uma casa modesta, mas com três quartos
enfileirados em um corredor que me parecia enorme. E, lá no fundo, o único
banheiro. E sempre acordava de madrugada para fazer xixi, enquanto a escuridão
era como se Deus estivesse de olhos fechados. Ou tomava coragem para enfrentar
o medo ou, então, teria que aguentar as gozações na manhã seguinte quando
descobrissem que havia molhado a cama.
Enquanto mordiscava a parte esbranquiçada da melancia, não
consegui evitar sorrir e, como consequência, me engasguei.
— O senhor está bem?
— Sim, sim, estou. É que me lembrei de algo engraçado.
Não quis revelar minhas memórias ao vendedor, que, certamente,
teria coisas mais urgentes para se preocupar. Caminhei até a W3, peguei o
Grande Circular e desci já próximo ao meu apartamento na Asa Norte. Mal abri a
porta, minha esposa me recebeu com um beijo.
— E aí, meu bem, conseguiu fazer a carteira digital?
— Sim.
— Deixa-me ver.
Enquanto Arlete olhava a nova identidade no meu aparelho
celular, voltei a pensar nos meus tempos de menino.
— Comi melancia.
— Que bom! Você quase não come fruta.
— Ainda bem que dormimos na suíte.
Minha mulher ficou sem entender essa parte. Talvez um dia, eu lhe conte.
- Nota de esclarecimento: O conto "Prevaricação e melancia" foi publicado por Notibras no dia 18/8/2025.
- https://www.notibras.com/site/prevaricacao-e-melancia/
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