domingo, 20 de julho de 2025

Valdir e o relógio antigo

     

Valdir, cujo bigode era marca registrada, costumava fazer sua ginástica diária na praça em frente ao seu apartamento ali em Sobradinho. E era tão pontual, que causava admiração em quem via o velho passar pela portaria pontualmente às 6h. Nem sequer um minuto antes ou depois. 

          Eis que, naquela quarta-feira, o zelador do prédio, como de costume, cumprimentou o mais afamado morador.

          — Seu Valdir, bom dia!

          — Bom dia, Lúcio!

          — Tenho cá uma dúvida.

          — Que dúvida, meu rapaz?

          — Como é que o senhor consegue sempre sair exatamente no mesmo horário todos os dias?

          Valdir, sorriso nos lábios, estufou o peito, ergueu o pulso esquerdo e exibiu o antigo relógio.

          — Ele não falha nunca!

          Quase 43 anos. Era esse o tempo daquela dupla praticamente inseparável, inclusive durante os banhos, já que o relógio era à prova d'água. Por conta desse quase romance tão longevo, Martinha, a esposa, carregava dramático horror daquele marcador de horas. Discreta que era, fazia o possível para disfarçar tamanha ojeriza, mesmo que, vez ou outra, o dito cujo parasse na lixeira por mero "descuido".

          — Meu amor, você viu o meu relógio?

          — Não.

          — Hum! Tenho certeza de que o deixei aqui na mesa.

          Martinha, nessas horas, revirava os olhos, como quem estivesse possuída de regozijo. Entretanto, antes que a mulher chegasse ao clímax de tanta felicidade, eis que Valdir exclamava.

          — Ah, seu danado, você tá aqui na lixeira! Será que eu estou ficando gagá?

          — Do jeito que você anda distraído, é bem capaz, Valdir. 

          Aconteceu na semana passada, quando Ailton, o filho do meio, foi fazer uma visita aos pais. Enquanto proseava com a mãe, percebeu que o pai apertava os olhos para tentar enxergar as horas. 

          — Pai, cadê os óculos do senhor?

          — E eu lá preciso de óculos pra ver as horas? Faço isso antes de você nascer, moleque.

          — Ah, pai, do jeito que esse vidro do relógio tá todo arranhado, nem eu consigo ver os ponteiros. 

          — Hum!

          — Por que o senhor não compra um relógio novo?

          — Que relógio novo, o quê! 

          — Então, pelo menos troca esse vidro arranhado. 

          — Hum!

          — Conheço um cara que tem uma banca na feira que troca isso rapidinho pro senhor.

          — Hum!

          — Valdir, vá lá com o Ailton trocar o vidro desse relógio  !

          Diante da insistência da mulher, Valdir foi com o filho até o tal feirante. No local havia relógios para todos os gostos, o que fez com que Ailton insistisse que o pai comprasse um relógio novo. 

          — Não! Só quero trocar o vidro.

          — Tá bom, pai. O senhor que manda.

          — Hum! 

          — Ô, Carlos, quanto é pra trocar o vidro do relógio do meu pai?

          — Oitenta reais.

          Valdir arregalou os olhos.

          — Oitenta reais?

          — Sim, senhor.

          — Hum!

          — Ô, Carlos, e quanto você faz pro meu pai um relógio novo?

          — Tem este aqui que é bom e barato.

          — Quanto?

          — Cento e cinquenta.

          — Aí, pai, vale muito mais a pena comprar um relógio novo do que dar oitenta reais só pra trocar o vidro desse seu cacareco.

          — Hum!

          Valdir pensou, pensou, pensou... Pensou mais um pouco e, então, decidiu.

          — Hum! Posso pagar cem agora e cinquenta amanhã.

          — Ué, pai, o senhor não tem cento e cinquenta reais aí?

          — Tenho.

          — E, então, por que não paga logo o homem de uma vez.

          — Amanhã!

          O relojoeiro, para se ver livre logo daquela ladainha, aceitou a proposta. Fez apenas o velho assinar uma promissória e, então, firmaram o acordo com um aperto de mão. E, no dia seguinte, Valdir voltou à feira para quitar a dívida. 

          Por que Valdir não quis pagar tudo de uma vez, ninguém entendeu. Talvez seja coisa de velho, cheio de manias ou, então, quisesse provar que era homem de palavra. Outra possibilidade é que ele estivesse se preparando emocionalmente para, finalmente, aposentar o amigo de longa data e deixá-lo no fundo da gaveta.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Valdir e o relógio antigo" foi publicado por Notibras no dia 20/7/2025.
  • https://www.notibras.com/site/homem-apegado-ao-marcador-de-horas-causa-ciume-na-esposa/

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