Valdir, cujo bigode era marca registrada, costumava fazer
sua ginástica diária na praça em frente ao seu apartamento ali em Sobradinho. E
era tão pontual, que causava admiração em quem via o velho passar pela portaria
pontualmente às 6h. Nem sequer um minuto antes ou depois.
Eis que, naquela
quarta-feira, o zelador do prédio, como de costume, cumprimentou o mais afamado
morador.
— Seu Valdir, bom dia!
— Bom dia, Lúcio!
— Tenho cá uma dúvida.
— Que dúvida, meu rapaz?
— Como é que o senhor
consegue sempre sair exatamente no mesmo horário todos os dias?
Valdir, sorriso nos
lábios, estufou o peito, ergueu o pulso esquerdo e exibiu o antigo relógio.
— Ele não falha
nunca!
Quase 43 anos. Era
esse o tempo daquela dupla praticamente inseparável, inclusive durante os
banhos, já que o relógio era à prova d'água. Por conta desse quase romance tão
longevo, Martinha, a esposa, carregava dramático horror daquele marcador de
horas. Discreta que era, fazia o possível para disfarçar tamanha ojeriza, mesmo
que, vez ou outra, o dito cujo parasse na lixeira por mero
"descuido".
— Meu amor, você viu
o meu relógio?
— Não.
— Hum! Tenho certeza
de que o deixei aqui na mesa.
Martinha, nessas
horas, revirava os olhos, como quem estivesse possuída de regozijo. Entretanto,
antes que a mulher chegasse ao clímax de tanta felicidade, eis que Valdir
exclamava.
— Ah, seu danado, você
tá aqui na lixeira! Será que eu estou ficando gagá?
— Do jeito que você anda
distraído, é bem capaz, Valdir.
Aconteceu na semana
passada, quando Ailton, o filho do meio, foi fazer uma visita aos pais.
Enquanto proseava com a mãe, percebeu que o pai apertava os olhos para tentar
enxergar as horas.
— Pai, cadê os
óculos do senhor?
— E eu lá preciso de
óculos pra ver as horas? Faço isso antes de você nascer, moleque.
— Ah, pai, do jeito
que esse vidro do relógio tá todo arranhado, nem eu consigo ver os
ponteiros.
— Hum!
— Por que o senhor
não compra um relógio novo?
— Que relógio novo,
o quê!
— Então, pelo menos
troca esse vidro arranhado.
— Hum!
— Conheço um cara
que tem uma banca na feira que troca isso rapidinho pro senhor.
— Hum!
— Valdir, vá lá com
o Ailton trocar o vidro desse relógio !
Diante da
insistência da mulher, Valdir foi com o filho até o tal feirante. No local
havia relógios para todos os gostos, o que fez com que Ailton insistisse que o
pai comprasse um relógio novo.
— Não! Só quero
trocar o vidro.
— Tá bom, pai. O
senhor que manda.
— Hum!
— Ô, Carlos, quanto
é pra trocar o vidro do relógio do meu pai?
— Oitenta reais.
Valdir arregalou os
olhos.
— Oitenta reais?
— Sim, senhor.
— Hum!
— Ô, Carlos, e
quanto você faz pro meu pai um relógio novo?
— Tem este aqui que
é bom e barato.
— Quanto?
— Cento e cinquenta.
— Aí, pai, vale
muito mais a pena comprar um relógio novo do que dar oitenta reais só pra
trocar o vidro desse seu cacareco.
— Hum!
Valdir pensou,
pensou, pensou... Pensou mais um pouco e, então, decidiu.
— Hum! Posso pagar
cem agora e cinquenta amanhã.
— Ué, pai, o senhor
não tem cento e cinquenta reais aí?
— Tenho.
— E, então, por que
não paga logo o homem de uma vez.
— Amanhã!
O relojoeiro, para
se ver livre logo daquela ladainha, aceitou a proposta. Fez apenas o velho
assinar uma promissória e, então, firmaram o acordo com um aperto de mão. E, no
dia seguinte, Valdir voltou à feira para quitar a dívida.
Por que Valdir não
quis pagar tudo de uma vez, ninguém entendeu. Talvez seja coisa de velho, cheio
de manias ou, então, quisesse provar que era homem de palavra. Outra
possibilidade é que ele estivesse se preparando emocionalmente para,
finalmente, aposentar o amigo de longa data e deixá-lo no fundo da gaveta.
- Nota de esclarecimento: O conto "Valdir e o relógio antigo" foi publicado por Notibras no dia 20/7/2025.
- https://www.notibras.com/site/homem-apegado-ao-marcador-de-horas-causa-ciume-na-esposa/
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