Laerte, próximo a se aposentar, sentia uma angústia de não saber o
que faria com o tempo livre, que logo chegaria. Desde sempre trabalhara, seja
ainda adolescente no pequeno comércio da família, seja depois em múltiplos
empregos até que, por indicação de um tio-torto, se tornou auxiliar
administrativo de uma importante empresa do ramo de laticínios. E, quase
quarenta anos após, gozava de uma posição privilegiada para quem nem era
parente dos donos.
Gerente.
Pois é. O sujeito era gerente do setor de exportações, o que lhe permitia viver
confortavelmente, ainda mais porque não casou, não teve filhos e as despesas
não iam além das que alguém de 64 anos necessitava. É verdade que era
apreciador de vinhos finos, além de só tomar café gourmet. Tais mimos, entretanto,
nem chegavam a pesar no orçamento.
Poderia segurar as derradeiras férias e,
assim, receber uma boa quantia quando se aposentasse. Entretanto, Laerte
decidiu que precisava aprender a ficar sem fazer nada. Não necessariamente
nada, pois poderia viajar, conhecer lugares que nunca havia visto além da tela
da televisão. João Pessoa? Salvador? Paris? Não poderia faltar o Rio de
Janeiro. Sim, a cidade mais linda do mundo, das praias estonteantes, do
carnaval que não deixa ninguém parado.
O primeiro dia, resolveu passar em casa.
Pegou um livro de poesias há muito adiado. A verdade nos seres. O autor era
um tal Daniel Marchi, cuja foto de orelha mostrava um homem compenetrado. O que
o poeta estaria pensando? O prefácio era assinado por outro tal de nome Jorge
Lenzi, também poeta.
Laerte
precisou ler a dedicatória para se lembrar de como é que aquele exemplar teria
parado em suas mãos.
Querido Laerte,
Espero que você encontre nestas páginas não o sentido da vida,
mas algo
que o faça sorrir, mesmo que em desespero.
Com carinho,
Juliana Setembro/2024.
Passou a
manhã degustando as poesias, entre pausas longas para reflexão e sorver duas ou
três xícaras de café. A amiga estava certa. Houve sorrisos, alguns carregados
de sentimentos profundos, o que fez Laerte refletir sobre a própria vida.
À
tarde, preparou um breve almoço, com temperos que o transportaram para outros
tempos. A presença da saudosa mãe poderia ser sentida, diante do adolescente
sem sonhos. Como envelhecera tão rápido? Rápido demais para sentir as perdas ao
longo do caminho.
Ao
anoitecer, depositou A verdade nos seres na cabeceira ao lado e adormeceu.
Despertou antes dos primeiros raios, lavou o rosto, escovou os dentes, enquanto
observava as olheiras daquele desconhecido do outro lado do espelho. Pegou a
tesourinha de unha e, antes de sair do quarto, colocou o livro no bolso do
roupão.
Sentado
na cadeira de balanço da varanda, cortava pacientemente cada unha dos pés, como
se estivesse em transe, até que foi despertado por gritos de crianças no
parquinho em frente. Laerte observou por alguns instantes aqueles seres
minúsculos, balançou a cabeça e sorriu. Aparou mais uma unha e, ao voltar os
olhos para o parque, se deparou com uma mulher sentada debaixo de uma árvore.
Ela
estava curvada sobre um livro, como se alheia a tudo ao seu redor. De onde
estava, Laerte não conseguia saber o que aquela jovem estava lendo. Todavia, no
seu íntimo, desejou que fosse A verdade nos seres.
- Nota de esclarecimento: O conto "O velho e A Verdade Nos Seres" foi publicado por Notibras no dia 31/7/2025.
- https://www.notibras.com/site/laerte-nao-sabia-como-e-que-aquele-livro-teria-parado-em-suas-maoslaerte-precisou-ler-a-dedicatoria-para-se-lembrar-de-como-e-que-aquele-exemplar-teria-parado-em-suas-maos/
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