segunda-feira, 14 de julho de 2025

O inusitado caso da onça-pintada

    

Reunião de condomínio costuma ser um prato cheio para qualquer escritor, ainda mais quando a imaginação resolve fazer viagem só de ida. Quem me disse isso foi o meu grande amigo Daniel Marchi, um dos mestres da arte da escrita dos nossos tempos. E não serei eu a discordar de alguém detentor de verve literária que extrapola o Everest. 

          Para quem não sabe, além de poeta, escritor, professor universitário e colecionador de carros antigos, o Daniel é advogado e, entre suas especialidades, está a consultoria jurídica condominial. Por uma dessas congruências da vida, a minha primogênita, Ana Maria Martínez, também advoga nessa área. E foi num bate-papo, que estavam a minha amada, a Dona Irene, e o José Seabra, o Chefe, que surgiu uma das histórias mais curiosas que já ouvi.

          Márcio, creio que era esse o nome do moradora do 301 de um prédio aqui no início da Asa Norte. Ou seria Evandro, residente do 104? Na dúvida, chamaremos o tal senhor de Luciano, que me soa mais familiar. Melhor, Luciano Gonçalves de Almeida, já que preciso dar um jeito de tornar a história mais plausível, como se fosse atestado de veracidade. 

          Aos 42 anos, o nosso retratado residia solitariamente em seu apartamento, digamos, 405, quando, por algo que lhe fugiu do controle, começou a ver coisas. Mas não qualquer visão verossímil que nem, por exemplo, fantasma, assombração ou algo semelhante. Não, não e não! O que o Luciano viu ou, então, afirmou que viu, foi uma onça. Para ser mais exato, uma onça-pintada. 

          Repare bem que não disse onça pintada, mas onça-pintada, com hífen. Afinal, poderia o nobre leitor pensar que o sujeito tenha se deparado com o enorme felino pintado em uma tela. Nananinanão! Era mesmo uma onça-pintada, também conhecida como jaguar. E onde ela estava? Acredite ou não, no corredor. Isso mesmo que você acabou de ler: no corredor.

          Assim que se deparou com o grande gato de rosetas, Luciano estacou. Para falar a verdade, dizem que nem piscou, tamanho o susto. Pra quê? O bicho, talvez curioso, lançou aquele olhar amarelo sobre o morador, abriu a bocarra e rugiu. Por sorte, a danada parece que desistiu do jantar, virou as costas e desceu as escadas. 

          Luciano, mudo, ficou sem palavras por quase duas semanas, até que houve a reunião de condomínio. E, quando a síndica, dona Evelina, se deu por iniciado o evento, o homem foi o primeiro a falar.

          — Dona Evelina, por acaso é permitido ter onça no prédio?

          — Onça?

          — Sim, senhora! Onça.

          — Óbvio que não, seu Luciano.

          — Pois tem alguém aqui criando uma.

          — Uma o quê, seu Luciano?

          — Uma onça, senhora Evelina. 

          Entre caras de espanto e de risos furtivos, a síndica levantou a questão para todos.

          — Por acaso alguém tem uma onça aqui no prédio?

          Todos responderam que não e, então, dona Evelina quis passar para o próximo assunto, que era a manutenção do elevador. No entanto, foi interrompida pelo Luciano.

          — Dona Evelina, se ninguém quer se acusar, a senhora precisa abrir uma sindicância para descobrir quem é o proprietário dessa onça. 

          — Só me faltava essa agora. Por favor, seu Luciano, vamos deixar a onça de lado, pois precisamos tratar de assuntos mais sérios.

          — Mais sério do que uma onça, senhora Evelina?

          Foi aí que o Nery, fanático torcedor do Botafogo e gozador como ele só, fez uma sugestão.

          — Luciano, tenho uma solução pra sua onça.

          — A onça não é minha. Quero deixar isso bem claro!

          — Não importa. Tenho a solução pro seu problema.

          — Claro que importa! E o problema não é só meu, mas de todos os condôminos.

          — Tá bom, Luciano. Quer ouvir ou não a minha ideia?

          — Pois diga logo, Nery.

          — Whiskas.

          — Whiskas?

          — É. Isso mesmo! Ração pra gato.

          — Mas é uma onça!

          — E onça não é um gato, por acaso?

          — Um gato, Nery?

          — Sim, só que é um gato grandinho. 

          — Hum! Pois diga!

          — Pois bem, Luciano. Basta comprar um pacote grande de ração pra gato e fazer uma trilha até a 312.  

          Luciano coçou o cocuruto e, antes que a reunião terminasse, saiu determinado para comprar não apenas um, mas três pacotes de comida para bichanos. Retornou para o seu apartamento, trancou a porta e cerrou as janelas. Vá que a onça desse um jeito de entrar por ali.

          Já era de madrugada quando Luciano abriu a porta com cuidado. Observou o corredor e, com o coração batendo que nem batedeira, pôs em prática o plano do botafoguense. A caminhada foi longa e, já na quadra 312 Norte, Luciano, ao lado do bloco C, despejou o que restava do último pacote. 

          Retornou confiante de que o plano funcionaria e, pelo visto, parece mesmo que funcionou. Luciano nunca mais viu a tal onça-pintada e, no mês seguinte, durante a reunião dos moradores, foi questionado pelo Nery.

          — E aí, Luciano, viu mais a onça?

          — Não, Nery. Mas quero fazer uma pergunta séria para a dona Evelina.

          — Pois diga, seu Luciano. 

          — Dona Evelina, por acaso é permitido jacaré aqui no prédio?

  • Nota de esclarecimento: O conto "O inusitado caso da onça-pintada" foi publicado por Notibras no dia 14/7/2025.
  • https://www.notibras.com/site/o-inusitado-caso-da-onca-pintada-em-condominio/

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