Reunião de condomínio costuma ser um prato cheio para qualquer
escritor, ainda mais quando a imaginação resolve fazer viagem só de ida. Quem
me disse isso foi o meu grande amigo Daniel Marchi, um dos mestres da arte da
escrita dos nossos tempos. E não serei eu a discordar de alguém detentor de
verve literária que extrapola o Everest.
Para quem não sabe, além de poeta, escritor,
professor universitário e colecionador de carros antigos, o Daniel é advogado
e, entre suas especialidades, está a consultoria jurídica condominial. Por uma
dessas congruências da vida, a minha primogênita, Ana Maria Martínez, também
advoga nessa área. E foi num bate-papo, que estavam a minha amada, a Dona
Irene, e o José Seabra, o Chefe, que surgiu uma das histórias mais curiosas que
já ouvi.
Márcio, creio que era esse o nome do
moradora do 301 de um prédio aqui no início da Asa Norte. Ou seria Evandro,
residente do 104? Na dúvida, chamaremos o tal senhor de Luciano, que me soa
mais familiar. Melhor, Luciano Gonçalves de Almeida, já que preciso dar um
jeito de tornar a história mais plausível, como se fosse atestado de
veracidade.
Aos 42 anos, o nosso retratado residia
solitariamente em seu apartamento, digamos, 405, quando, por algo que lhe fugiu
do controle, começou a ver coisas. Mas não qualquer visão verossímil que nem,
por exemplo, fantasma, assombração ou algo semelhante. Não, não e não! O que o
Luciano viu ou, então, afirmou que viu, foi uma onça. Para ser mais exato, uma
onça-pintada.
Repare bem que não disse onça pintada, mas
onça-pintada, com hífen. Afinal, poderia o nobre leitor pensar que o sujeito
tenha se deparado com o enorme felino pintado em uma tela. Nananinanão! Era
mesmo uma onça-pintada, também conhecida como jaguar. E onde ela estava?
Acredite ou não, no corredor. Isso mesmo que você acabou de ler: no corredor.
Assim que se deparou com o grande gato de
rosetas, Luciano estacou. Para falar a verdade, dizem que nem piscou, tamanho o
susto. Pra quê? O bicho, talvez curioso, lançou aquele olhar amarelo sobre o
morador, abriu a bocarra e rugiu. Por sorte, a danada parece que desistiu do
jantar, virou as costas e desceu as escadas.
Luciano, mudo, ficou sem palavras por quase
duas semanas, até que houve a reunião de condomínio. E, quando a síndica, dona
Evelina, se deu por iniciado o evento, o homem foi o primeiro a falar.
— Dona Evelina, por acaso é permitido ter
onça no prédio?
— Onça?
— Sim, senhora! Onça.
— Óbvio que não, seu Luciano.
— Pois tem alguém aqui criando uma.
— Uma o quê, seu Luciano?
— Uma onça, senhora Evelina.
Entre caras de espanto e de risos furtivos,
a síndica levantou a questão para todos.
— Por acaso alguém tem uma onça aqui no
prédio?
Todos responderam que não e, então, dona
Evelina quis passar para o próximo assunto, que era a manutenção do elevador.
No entanto, foi interrompida pelo Luciano.
— Dona Evelina, se ninguém quer se acusar,
a senhora precisa abrir uma sindicância para descobrir quem é o proprietário
dessa onça.
— Só me faltava essa agora. Por favor, seu
Luciano, vamos deixar a onça de lado, pois precisamos tratar de assuntos mais
sérios.
— Mais sério do que uma onça, senhora Evelina?
Foi aí que o Nery, fanático torcedor do
Botafogo e gozador como ele só, fez uma sugestão.
— Luciano, tenho uma solução pra sua onça.
— A onça não é minha. Quero deixar isso bem
claro!
— Não importa. Tenho a solução pro seu
problema.
— Claro que importa! E o problema não é só
meu, mas de todos os condôminos.
— Tá bom, Luciano. Quer ouvir ou não a minha
ideia?
— Pois diga logo, Nery.
— Whiskas.
— Whiskas?
— É. Isso mesmo! Ração pra gato.
— Mas é uma onça!
— E onça não é um gato, por acaso?
— Um gato, Nery?
— Sim, só que é um gato grandinho.
— Hum! Pois diga!
— Pois bem, Luciano. Basta comprar um pacote
grande de ração pra gato e fazer uma trilha até a 312.
Luciano coçou o cocuruto e, antes que a
reunião terminasse, saiu determinado para comprar não apenas um, mas três
pacotes de comida para bichanos. Retornou para o seu apartamento, trancou a
porta e cerrou as janelas. Vá que a onça desse um jeito de entrar por ali.
Já era de madrugada quando
Luciano abriu a porta com cuidado. Observou o corredor e, com o coração batendo
que nem batedeira, pôs em prática o plano do botafoguense. A caminhada foi
longa e, já na quadra 312 Norte, Luciano, ao lado do bloco C, despejou o que
restava do último pacote.
Retornou confiante de que o plano funcionaria
e, pelo visto, parece mesmo que funcionou. Luciano nunca mais viu a tal
onça-pintada e, no mês seguinte, durante a reunião dos moradores, foi
questionado pelo Nery.
— E aí, Luciano, viu mais a onça?
— Não, Nery. Mas quero fazer uma pergunta
séria para a dona Evelina.
— Pois diga, seu Luciano.
— Dona Evelina, por acaso é permitido jacaré
aqui no prédio?
- Nota de esclarecimento: O conto "O inusitado caso da onça-pintada" foi publicado por Notibras no dia 14/7/2025.
- https://www.notibras.com/site/o-inusitado-caso-da-onca-pintada-em-condominio/
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