Quem eu sou? Não tenho nome, porém, se você me chamar, olho
desconfiado, mas, dependendo da sua intenção, dou alguns passos em sua direção
e me deixo acariciar por suas mãos. Em outros casos, saio que nem um cachorro
desembestado pelas ruas da cidade.
Um cachorro! Justamente o que sou. Vira-lata
de quinta geração, como mamãe sempre me disse, apesar que ela sempre afirmou que
tínhamos linhagem de nobre, que obviamente se perdeu ao longo de cruzamentos
indevidos. De lá para cá, a coisa desembestou, que é difícil imaginar que
correm em minhas veias sangue de Dogue de Bordeaux.
O meu humano preferido é o Ivanildo, que parece que dorme na rua há muito
tempo. Apesar de não ter muita coisa para dar, ele me oferece o que me conforta
mais o coração: amor. Isso sem falar nas inigualáveis coxinhas que sempre
ganhamos quando fazemos ponto em frente à padaria do Rogério. Não sei se por
causa dos meus doces olhos castanhos ou, então, por conta das ataduras que
cobrem metade da perna do meu amigo.
Certa feita, uma dona armou o maior barraco com o Ivanildo.
Falou um monte naquela voz que humanos estão acostumados: gritaria. O meu
companheiro nem deu ouvidos e me chamou para um canto. Mal sabia eu que aquela
mulher estava falando de mim.
Alguns dias se seguiram, e a tal senhora
retornou, agora acompanhada de uma trupe, e me levou à força para um local
cheio de outros cachorros, gatos, alguns cavalos e até um jegue. Fui obrigado a
tomar quatro banhos por mês. Fiquei cheirando a rosas. Um horror! Logo eu, que
só tomava banho quando chovia. Sem falar naquele rango sem sabor.
Não sei se foi saudade do Ivanildo ou das
coxinhas, mas fugi depois de quase um ano. Corri de volta para as ruas, que é o
meu lugar. Não encontrei o Ivanildo. Talvez aquelas pessoas o tenham levado
para uma prisão que nem a que eu fiquei. Seja como for, ainda aguardo pela
volta do meu parceiro, que deve estar sentindo muita saudade das coxinhas e do
meu nariz gelado.
- Nota de esclarecimento: O conto "Vida de cão" foi publicado por Notibras no dia 6/11/2024.
- https://www.notibras.com/site/vira-lata-de-quinta-geracao-vive-agruras-com-o-descaso-humano/
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