domingo, 3 de novembro de 2024

O profeta a lápis

      

          Gervásio, tipo devoto que era, tinha o maior medo de ser descoberto. Não que ele roubasse ou matasse ou cometesse algum outro crime, isto é, pelo menos não aqueles que constam do Código Penal. No entanto, se seus atos não poderiam ser julgados pela justiça do homem, ele não tinha tanta certeza em relação ao julgamento divino.

          O pecado do sujeito era a paixão por escrever contos repletos de maldades. Mas não pense você que fossem histórias depravadas, mas de terror. Aliás, não era exatamente em terror que se encaixaria suas preferências. Horror seria a palavra mais apropriada, tamanho o banho de sangue e atrocidades. 

          O contista também não gostava de teclar suas tramas, seja no computador, seja até mesmo na antiga E. Remington, relíquia herdada do avô. Preferia fazer apontamentos a lápis em folhas soltas, que, eram trancadas aos calhamaços no fundo do armário de ferro no galpão, repleto de quinquilharias, da propriedade. 

          Dono da padaria mais frequentada do bairro, Gervásio logo percebeu que tinha jeito com o público. Tanto é que, não tardou, começou a frequentar com mais perseverança a igreja. Não que fosse assim tão religioso, era mais situação de aprender melhor com o pastor Ulisses como manejar os fiéis. De tão sagaz, logo se tornou um dos oradores e, dali a pouco, líder do louvor.    

          Tamanha eloquência, Gervásio começou a causar inveja no pastor, que percebeu que as ovelhas, as suas ovelhas, e por quem ele havia tanto lutado, estavam mais interessadas nas palavras do seu substituto. Por isso, Ulisses, que andava econômico nos cultos, começou a esticá-los até onde a voz permitia. 

          Fumante inveterado, o pregador andava quase sem fôlego e com a voz tão maltratada, que as palavras quase não eram entendidas pelos fiéis. Por conta desse imprevisto, ele não teve escolha e cedeu cada vez mais espaço para Gervásio, que tomou gosto pela coisa. 

          Nessas idas e vindas do titular da igreja, eis que o substituto, talvez na ânsia de se apossar de vez do púlpito, resolveu colocar o nome do adversário em seus contos. Obviamente, seria personagem com destino não muito feliz. Lápis e papel na mão, começou a escrever sofregamente.

            "... e assim, Ulisses, não suportando mais a dor de continuar vivendo, resolveu se encontrar com a morte. Pegou a faca mais cega na gaveta cheia de aranhas da cozinha e começou a cortar a própria garganta. A dor foi tamanha, mas Ulisses sabia que suicídio era pecado e, por isso, penitenciava-se à dor lancinante, enquanto o sangue jorrava pela parede e o piso..."

           Após o ponto final, Gervásio se sentiu tão regozijado, que adormeceu sem se dar conta. Acordou na manhã seguinte, quando constatou que havia perdido a hora de abrir a padaria. Saltou da cama para tomar um banho ligeiro, mas não o fez, pois, ao passar pelo banheiro, gostou do reflexo do seu rosto no espelho. Sorriu. Que os clientes ficassem sem pão naquele dia!

          Preparou o costumeiro café sem açúcar de todas as manhãs e foi degustá-lo na varanda. Ficou por ali até esvaziar a garrafa térmica. Quando já ia se levantar, uma procissão chorosa surgiu carregando um caixão. Gervásio conhecia aquela gente e foi em sua direção. Nem foi preciso perguntar.

                — O pastor Ulisses, irmão Gervásio.

                — O que tem ele, irmã Cremilda?

                — Uma tragédia!

               Em soluços, a mulher não conseguiu dizer o que teria acontecido, até que Lucrécia, talvez a única com nervos firmes, desembuchou.

                — O pastor Ulisses se matou. Cortou a garganta com a navalha enquanto fazia a barba. Sangue pra todo lado. Não há cristão que resista àquela sangria toda, irmão Gervásio.

               Gervásio, que já havia aprendido as artimanhas da desfaçatez, conseguiu esconder a felicidade atrás da estampa de lamúrias. Tudo fingimento. Conseguiu enganar a todos. 

                     Tomada pela emoção, as pessoas arrastaram Gervásio para o velório. Cínico como ele só, aceitou a missão de proferir as últimas palavras para o morto. 

                O discurso foi longo e comoveu a plateia. Não restava dúvida de que Gervásio, ou melhor, o pastor Gervásio seria o líder religioso daquela chusma. E foi o que aconteceu a partir de então.

                Gervásio, há quase seis meses no novo ofício, decidiu terceirizar a padaria, já que logo percebeu que a nova mercancia era mais rentável. O problema foi que Lucrécia, que de boba não tinha nem a cara, notou que a soma dos dízimos havia diminuído consideravelmente. Não por causa das doações, que até aumentaram. A situação era outra.

             A mulher, que enfrentava qualquer um à unha, foi ter uma conversa com o pastor. O salafrário tentou desconversar, mas foi encurralado. Apavorado, não tinha outra solução a não ser recorrer ao dom de selar o destino dos que cruzavam seu caminho. 

                    Gervásio, assim que chegou ao lar, doce lar, tratou de pegar papel e lápis. Não tardou, já tinha um conto prontinho.

                ",,, descuidada que era, talvez pela cachaça de má qualidade, Lucrécia, na sacada do apartamento 603, onde residia desde que enviuvou, tropeçou. Pobre mulher, despencou do sexto andar. Espatifou o crânio, miolos espalhados pela calçada..."

           O pastor adormeceu como um anjo. Sonhou, é verdade, tamanho o sorriso estampado no rosto ao despertar. Todavia, não conseguiu se recordar do que havia sonhado. Olhou o relógio e percebeu que já havia passado das dez horas. Tratou de tomar uma ducha antes de tomar o costumeiro café sem açúcar. 

                 Vestiu um terno preto na certeza de que iria fazer a oração no velório da finada irmã Lucrécia. Pegou a bíblia sobre a mesa da sala e saiu. Que Deus tivesse piedade daquela pobre alma, pois do pastor não deveria esperar nada além do que palavras jogadas ao vento. 

                 Gervásio estranhou a falta de procissão na rua. Será que o corpo da inimiga não havia sido encontrado? Improvável! Ele tinha escrito que os miolos estariam espalhados pela calçada. Impossível tamanha cena passar despercebida.

               Decidido a desvendar aquele mistério, foi até o edifício onde morava a mulher que já deveria ter se tornado defunta. Na calçada, a calçada onde ao menos as manchas de sangue ainda deveriam estar por ali, Gervásio nada encontrou, a não ser cacos de vidro, certamente do copo de cachaça da irmã Lucrécia.

            Inconformado, o sujeito olhou para a sacada do apartamento da adversária. Só teve tempo de arregalar os olhos. Lucrécia despencou do sexto andar. Por sorte, lá estava o pastor, que amorteceu a queda da mulher, que, por milagre, se salvou praticamente ilesa. Quanto ao pastor Gervásio, ele não pode ver seus miolos espalhados na calçada. Que cena horripilante!

  • Nota de esclarecimento: O conto "O profeta a lápis" foi publicado por Notibras no dia 3/11/2024.
  • https://www.notibras.com/site/padeiro-pastor-sem-miolo-de-pao-mas-do-cerebro/

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