sexta-feira, 1 de novembro de 2024

Quase um dia como outro qualquer

Não são todos os dias, mas quase sempre acordo de boa. Ao contrário da minha irmã, não tenho filhos, não tenho marido, não tenho cachorro, não tenho nem mesmo uma mísera planta para me preocupar. É verdade que, não raro, eu me descabelo com as contas para pagar no final do mês. Tudo por conta das vitrines das lojas, que me atiçam o desejo de consumir qualquer bobagem. 

          Por sorte, ganho o suficiente para tais mimos. Também faço questão de fazer duas ou três viagens anuais, sem contar aquelas escapadelas para locais aqui perto. Sou uma privilegiada, como podem perceber, e até gosto de falar para a minha irmã: 

          —Desculpa aí!

          Ou, se preferir, aprendi uma recentemente com o marido da minha grande amiga, a Dona Irene. Ele, toda vez que me conta algo legal que conquistou, fecha a mão esquerda, mas com o dedo mindinho se mexendo que nem minhoquinha, e solta essa: 

          — Morde aqui de inveja!

          Hoje, ao contrário da maior parte dos dias, não acordei de bom humor. Mesmo assim, jurei que guardaria todo o meu azedume na gaveta. E estava me saindo dignamente bem, até que resolvi ir ao supermercado.

          Mal cheguei, coloquei algumas coisas no carrinho. Quase chegando ao caixa, vi aquelas roscas de polvilho. E lá fui pegar uma. Gente, por que estou mentindo? Peguei logo três. Nisso, um senhor, que devia estar beirando os 90 anos, puxou conversa comigo.

          — Ei, moça, isso é bom?

          — Ah, eu gosto.

           — Não perguntei se você gosta, mas se é bom.

          Não sei o que me deu, mas na hora me lembrei do gesto do marido da Dona Irene e, então, fiz uma versão nada politicamente correta. Fechei a mão, é verdade, mas, em vez de ficar mexendo meu dedo mindinho, dei aquela estirada no maior de todos. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Quase um dia como outro qualquer" foi publicado no Notibras no dia 1º/11/2024.
  • https://www.notibras.com/site/quase-um-dia-como-outro-qualquer-nao-fosse-um-chato/ 

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