Quanto à avó, fazia
o tipo durona. Raramente quedava, mesmo durante febres altíssimas. Encarava
aquilo como ocasiões que faziam parte da vida. Quando caiu acamada, quedou de
vez. Ouviu-se suspiro único, talvez de alívio. Por sorte do marido, que vivera
uma vida inteira de lamúrias, ele sucumbiu três meses antes.
O neto
não se recordava de ter chorado a partida dos avós. Aos sete anos, talvez fosse
ainda muito jovem para perceber que aqueles instantes não seriam um até logo,
mas o adeus definitivo. Artimanhas da natureza, que protege as crianças de
certas agruras.
O menino cresceu e,
apesar de certas peculiaridades, não se distinguia tanto dos coleguinhas. Quer
dizer, tirando o fato de Sandoval prestar mais atenção aos anúncios de remédios
do que aos desenhos animados ou, então, parecer sentir mais prazer em tomar uma
aspirina a um sorvete com cobertura de chocolate.
Aos 18 anos, conheceu
Maria Lúcia, atendente da farmácia da esquina. De tanto ir até lá perguntar sobre
os novos lançamentos, Sandoval acabou engatando um namoro com a moça. Para
falar a verdade, a guria foi a primeira de uma série que não ligou para as
manias do gajo. Melhor, ela até considerava qualidade, pois via nisso algo como
preocupação com a saúde.
Aos 25 anos, com carreira
promissora de concursado do Banco do Brasil, Sandoval pediu a mão de Maria
Lúcia em casamento. Isso após um longo período de namoro, que familiares e
amigos imaginavam que não iria vingar. Vingou, para surpresa até da mulher,
que, a essa altura do campeonato, era farmacêutica de formação e proprietária
da mesma farmácia da esquina.
Mais
alguns anos, os filhos começaram a chegar. O primogênito Carlos e, em seguida,
as gêmeas Adriana e Paula. A correria da família era tamanha, mas tudo, aos
trancos e barrancos, acabou se ajeitando, até que, quase num passe de mágica,
toda a cria estava formada, empregada e, não tardou, cada um se ajeitou nos
próprios cantos.
Sandoval e
Maria Lúcia, já passados dos 60 anos, se perceberam praticamente sozinhos. A
esposa até gostou de ter mais tempo para o casal, enquanto o homem começou a
ser assombrado pelo medo da morte. Dessa forma, ele passou a ter certeza de que
não chegaria ao fim daquele dia.
— Maria Lúcia,
não quero ser cremado.
— Que
história mais boba, meu amor!
— Que nada! A minha
hora chegou.
Maria
Lúcia, apesar de conhecer as manias do esposo, tratou de correr com ele para o
hospital. Consultas, exames, mas nada de anormal. Quer dizer, um sobrepeso, que
poderia ser facilmente resolvido com dieta e ginástica.
O
casal retornou para casa. O problema é que, na semana seguinte, nova certeza de
morte acometeu o sujeito. E lá foi a Maria Lúcia levar o amado novamente para o
hospital, onde, dessa vez, o médico achou por bem interná-lo. Não porque
considerasse situação de risco, mas para aplacar a ansiedade do paciente.
No dia
seguinte, após alta médica, Sandoval, sorriso nos lábios, retornou para o lar
doce lar. Entretanto, alguns dias depois, nova internação. No dia seguinte,
nova alta. E assim aqueles dois passaram a viver, pois, pelo menos uma vez por
mês, dormiam entre uma e três noites no hospital. Sandoval como paciente; Maria
Lúcia, acompanhante.
Certa
feita, os pombinhos, já acomodados no sofá da sala para assistir a um filme,
perceberam que o vizinho estava dando uma festa de arromba, com som nas
alturas. Maria Lúcia, que não era afeita a discussão, olhou para o Sandoval e
disse:
— Amor, que tal uma noite tranquila no hospital?
- Nota de esclarecimento: O conto "Sandoval, o hipocondríaco" foi publicado por Notibras no dia 23/11/2024.
- https://www.notibras.com/site/hipocondriaco-usava-hospital-como-um-motel/
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