— Enquanto o Adriano adoça a sobremesa, sou
eu que jogo sal no almoço - Soraia costumava falar para as amigas.
Nessa mistura de sabores,
aqueles dois pareciam se entender. Tanto é que, até onde se tem notícias, nunca
se ouviu um "ai" do sujeito, mesmo porque todas as discussões eram
eternos monólogos da Soraia. Livre, leve e solto, Adriano era o tipo que levava
ao pé da letra a música de Eri do Cais e Serginho Meriti, cantada pelo Zeca
Pagodinho: "Deixa a vida me levar (vida, leva eu)..."
Sempre na busca por alguma discórdia, Soraia
tratou de colocar câmeras escondidas em todos os cômodos do apartamento do
casal. Ela queria pegar alguns podres do marido, que devia ter ao menos
unzinho. Afinal, ninguém é perfeito neste mundo de Deus. E não seria justamente
o Adriano exceção à regra. Ou seria?
Soraia inventou uma desculpa para passar a
manhã fora de casa. Voltaria na hora do almoço. Como era domingo, os pombinhos
costumavam comer lá pelas duas horas da tarde. A cozinha naquela manhã seria
toda do Adriano, que abraçou a ideia de preparar estrogonofe de camarão.
Depois de bater perna pelas ruas, eis que
Soraia chegou ao lar, doce lar, quando o esposo já estava arrumando os talheres
sobre a mesa. Para enfeitar, o danado ainda arrumou um lindo vaso com duas
rosas vermelhas entrelaçadas. Ela pendurou a bolsa no gancho da porta e foi ao
banheiro lavar as mãos.
Diante do espelho, ela se questionou:
—O que será que o Adriano aprontou?
Como não recebeu resposta
satisfatória, retornou à sala, onde o marido a serviu. O casal degustou aquela
iguaria.
— Está do seu gosto, amorzinho?
— Hum... Um pouco mais de sal seria bom.
Adriano fez menção de se levantar, mas foi
contido pela esposa.
— Deixa! Eu pego!
Na
cozinha, ela ainda guardava o gosto da primeira garfada: ”Que delícia! O
desgraçado sabe mesmo cozinhar.” Retornou para a mesa e se sentou.
— E o sal, minha vida?
— Me lembrei que o cardiologista falou pra eu
diminuir o sal. Pressão alta. Lembra?
— É verdade. Você está
certa, meu bem.
Passaram o resto do dia juntos. Assistiram
quase toda a primeira temporada de uma série argentina, "Meu querido
zelador", com o astro Guillermo Francella. Enquanto Adriano gargalhava,
Soraia simulava um sorriso aqui, outro ali.
Lá pelas dez da noite, o casal foi se
deitar. Adriano adormeceu logo em seguida, momento em que a mulher aproveitou
para olhar a gravação das câmeras instaladas por toda a residência. Para sua
surpresa, o marido levantava e abaixava a tampa do vazo para fazer xixi. Ao som
de Cauby Peixoto, dançava abraçado a uma fotografia dela. Varria todo o
apartamento e passava pano e, para piorar, ainda lavava a louça melhor do que
Rita, a empregada.
Já desistindo de buscar
algo que comprometesse a conduto ilibada do esposo, eis que Soraia abriu aquele
sorriso. Sorriso mudo, é verdade, mas apenas para não acordar o Adriano, que
roncava ao seu lado. Finalmente, ela havia encontrado o que tanto procurava: um
deslize do cônjuge. Pois não é que o dito cujo bebia leite direto da
caixinha?
Ah, agora, ela tinha um trunfo. Sábia que era,
saberia usá-lo no momento oportuno. Soraia virou-se para o lado e disse bem
baixinho:
— E como ronca o pilantra!
- Nota de esclarecimento: O conto "Amor e discórdia" foi publicado por Notibras no dia 7/11/2024,
- https://www.notibras.com/site/soraia-e-adriano-vivem-clima-de-amor-ate-o-flagra-que-gera-discordia/
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