sexta-feira, 29 de novembro de 2024

De conquistador a conquistado

     

      Não sou caixeiro-viajante nem motorista de caminhão. No entanto, por conta do trabalho, preciso me deslocar para algumas regiões várias vezes por ano. O que sou? Mero representante comercial de uma firma, cujos produtos você certamente conhece. Todavia, deixemos a curiosidade no canto e vamos ao que interessa.

          Pois bem, durante essas andanças, sempre conheço todo o tipo de gente. Não raro, a coisa desanda para algo além das relações econômicas. O problema é que nem sempre a pessoa entende que aquele momento não irá acontecer de novo ou, então, se acontecer, não passará disso. Mas eis que a coisa se inverteu...

          Seu nome é Juliana, proprietária de um comércio em Natal. Pouco mais velha do que eu, ainda não chegou aos 50 anos, Cá estou com meus quase 42, que completo na semana que vem. Os entendidos dirão que estou vivendo os últimos dias do meu inferno astral. 

          De imediato, a mulher pareceu sentir certa empatia por mim. Não que eu seja um tipo que atraia a atenção, mesmo porque há tempos me conformei com minha barriga deveras saliente. Se bem que, a cada final de ano, uma das minhas promessas é fazer um regime e reconquistar a silhueta dos meus 25. Promessas vazias, como tantas outras.

          Juliana pareceu não se importar. Aliás, como soube depois, ela se sente atraída por homens com certo desprendimento. Sorte a minha, que me permiti me travestir de conquistador enquanto apresentava o catálogo de produtos da empresa para a possível parceira comercial. 

          Se joguei a isca, logo percebi que a presa foi eu. É que Juliana, após pedir duas xícaras de café para um funcionário, que logo nos serviu, solicitou que não fosse incomodada, pois queria ficar a sós comigo. Imediatamente, meus olhos brilharam. No entanto, o meu pressentimento estava equivocado, pelo menos naquele instante.

          Passamos as próximas quase duas horas conversando sobre produtos. Percebi que Juliana sabe negociar e, ao contrário de muitos empresários, conhece muito bem sua clientela. Além do mais, possui pleno entendimento sobre preços de custo e de venda. 

          Acordos firmados, apertamos as mãos e, já de saída, Juliana me surpreendeu novamente.

          — Aurélio, que tal jantar comigo hoje?

          Devo ter feito cara de bobo, já que não esperava por aquele convite. No entanto, aceitei. Ela ficou de me buscar no hotel, e foi o que aconteceu próximo às 20h, quando já não sabia se o que eu estava sentindo era nervosismo ou fome. 

          Jantamos num restaurante em frente à praia. A moqueca estava ótima e conseguiu satisfazer meu estômago. Já a caipirinha me transportou de volta para o primeiro pensamento que tive quando, mais cedo, me deparei com aquela gata.

          Passamos os próximos dias debaixo dos lençóis. Como não me apaixonar? Pois foi o que aconteceu, e, perto de pegar o caminho de volta, queria ficar. Todavia, Juliana fez questão de destruir todas as minhas esperanças.

         — Aurélio, meu amor, não se iluda. Não costumo misturar negócios com sentimentos. Se um dia jantarmos juntos novamente, só beberemos refrigerante ou suco de caju.

  • Nota de esclarecimento: O conto "De conquistador a conquistado" foi publicado por Notibras no dia 29/11/2024.
  • https://www.notibras.com/site/contra-risco-de-paixonite-em-natal-sai-a-caipirinha-e-entra-o-suco-de-caju/

Sisudo é que não!

    

        Meus filhos costumam me chamar de sisudo. Não que eles estejam completamente errados, mas considero certo exagero. Austero! Creio que condiz mais com a minha natureza ajuizada e, talvez, até comedida, ainda mais porque nunca fui de rompantes. 

          Mamãe, sim, era impetuosa em todos os sentidos. Se queria algo, ninguém a impedia. E ai de quem tentasse discórdia! A zanga era implacável e não perdoava nem mesmo o Jorginho, meu irmão caçula. Quanto a mim, soube desde cedo que molecagem era tratada com chineladas certeiras da minha velha. 

          Meu pai, quase o inverso, a não ser quando se arriscava a ir ver jogos do Botafogo. É que, mesmo naqueles idos, caso o Garrincha não estivesse com a sanha de arrebatar todos seus pobres marcadores, era provável que papai retornasse cabisbaixo para casa. No entanto, bastava que o Anjo das Pernas Tortas estivesse endiabrado, para que papai quisesse cantar de galo. Que nada! Não tardava, minha mãe colocava ordem no galinheiro. 

          Digo-lhe, então, que sisudo é demais. Austero! Melhor, sensato e ponderado, com pitadas de circunspecto e, de vez em quando, pouco rabugento. Também não é para menos, pois meus herdeiros, todos criados e donos das próprias vidas, ainda assim, querem me controlar. Implicam que eu tenha cá minhas manias, que nem são muitas. Nada além de duas ou três, que resolveram se juntar às que acumulo ao longo de décadas. 

          Aos 72 anos, percebo que cheguei a uma encruzilhada. Talvez seja algo inevitável ou, pode ser, que muitos nem se dão conta quando cá estão. O que sei é que não dá para continuar ouvindo que sou sisudo, quando a única coisa que desejo é ir para o parque e soprar bolhas de sabão.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Sisudo é que não!" foi publicado por Notibras no dia 29/11/2024.
  • https://www.notibras.com/site/quem-sente-peso-da-idade-quer-soprar-bolas-de-sabao/


quinta-feira, 28 de novembro de 2024

Pililico, o gato

    

          Tanto nome, e a minha filha calhou de colocar o nome do gato de Pililico. Nem sei se ele gosta, ao menos não faz a menor questão de demonstrar, ainda mais porque nunca atende. Quer dizer, se coloco uma sardinha no seu prato, o bichano vem correndo, aquele rabo felpudo em pé. Passa por entre as minhas pernas, provavelmente como forma de agradecimento. Se bem que já me falaram que felinos são indiferentes, que fazem o que querem, que são preguiçosos e só se aproximam quando desejam algo. 

          Espécie mais esquisita. Vai ver que é por isso que escritores gostam tanto. Sei que o Daniel Marchi adora, inclusive teve uma de nome Sula. Será que ela atendia ou, então, era da estirpe do Pililico? Desconfio que o Daniel, apesar de poeta e escritor talentosíssimo, era feito de gato e sapato pela bichana.  

          Mas voltemos ao gato daqui de casa. Antes é melhor falar um pouco sobre a Margô, minha filha que, aos seis anos, mal sabe pronunciar paralelepípedo, quanto mais inconstitucionalissimamente. Talvez seja por isso que ela tenha escolhido esse nome tão incomum para um bichano.

          Pois voltemos, direto do sofá da sala, cheio de marcas de unhadas do Pililico. Eis que cá estou tentando entender como é que esse móvel, que me custou os olhos da cara, e que eu esperava ser o local para me esparramar logo após os almoços de domingo, foi se transformar em propriedade desse sujeito que nem sequer atende pela alcunha de Pililico. Um déspota!

          Minha mulher parece que resolveu tomar partido do salafrário, tanto é que, vez ou outra, me telefona para que eu não me esqueça de comprar petiscos para o gato. Pior! O pilantra ainda tem o paladar mais exigente do que o meu.

          — Júlio, de salmão! Caso não tenha, traga de carne, mas não de frango, que o Pililico não gosta. 

          E lá vou eu atrás de quitutes para um bicho que, até há pouco tempo, vivia nas ruas correndo atrás de ratos para sobreviver. Antes a Margô tivesse encontrado um cachorro. Bastaria pedir um osso no açougue da esquina para fazê-lo feliz. 

           Enquanto tento concluir minhas lamúrias, o Pililico me encara. Ele aperta os olhos, ao mesmo tempo em que se espreguiça todo. Nisso, o safado se aproxima e começa a se esfregar nas minhas pernas. De repente, pula no meu colo e começa a ronronar. Logo estamos nos encarando. Não resisto e acaricio seu pelo. Puxa, como o danado é bonito!

  • Nota de esclarecimento: O conto "Pililico, o gato" foi publicado por Notibras no dia 28/11/2024.
  • https://www.notibras.com/site/pililico-o-gato-de-rua-que-ganhou-casa-e-devora-petiscos-de-salmao/

                

quarta-feira, 27 de novembro de 2024

Rita, a mulher das liberdades

    

            Rita era mulher das liberdades, dessas que desassossegam qualquer ambiente. E não pense você que ela fazia tipo, pois era da sua natureza ser tão carnal. Por conta disso, não raro, ruborizava até mesmo aquelas pessoas que mais a conheciam.

            De tão convincente era Rita, que quase ninguém duvidava do que dizia. Contida para não levantar suspeitas, ela era ria do furor que provocava. Tanto é que até a Jurema, amiga de longa data, ficava boquiaberta diante das situações.

            — Mulher, se assossega!

            — Ué, por que eu faria isso?

            — Rita, o povo não para de comentar.

            — Pois deixe que fale. A fofoca é um direito de todos. Está até na Constituição.

             — Sério? Até na Constituição?

            — Sei lá! Mas se não tiver, bem que poderia estar.

            Pois não é que a Jurema estava ao lado quando a Rita provocou mais um pequeno reboliço? E foi justamente no encontro de oito anos de formatura da turma de Serviço Social, bem ali no bar de sempre na Asa Norte, em Brasília. 

            Enquanto os antigos colegas se divertiam com lembranças dos tempos de faculdade, eis que adentrou no recinto um belo rapaz de lá seus 30 anos. Impossível não notar aquele deus grego, quando, então, a Rita mencionou.

            — Ah, esse gato na minha cama!

            — Rita, mas você não é casada?

            — E daí, Solange? Não é porque estou de dieta que não posso olhar o cardápio.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Rita, a mulher das liberdades" foi publicado por Notibras no dia 27/11/2024.
  • https://www.notibras.com/site/rita-mulher-das-liberdades-fazia-dieta-mas-sempre-olhava-o-cardapio/

segunda-feira, 25 de novembro de 2024

Conhecidos de vista

      Há gente que se conhece sem nunca ter trocado palavra. Pode parecer estranho, mas acontece. Um caso assim ocorria entre Moacir e Antonio, dois sujeitos que já se viram tantas vezes, que seria difícil afirmar quantas. 

       Moacir, do alto dos seus quase 80 anos, viúvo há dois, recebe gorda aposentadoria, o que lhe permite viver confortavelmente no amplo apartamento decorado pela falecida. Filhos e netos, apesar de visitá-lo com certa frequência, já desistiram de falar para o idoso arrumar uma cuidadora. É que o vovô tem a resposta na ponta da língua.

    — Sou velho e sei que velho sou, mas as minhas coisas faço eu. 

     A vida não tem sido tão generosa com Antonio. Abandonado pela esposa por conta de incompatibilidades, perdeu o juízo e, com ele, o emprego e, sem dinheiro, se tornou frequentador assíduo das calçadas. Dessa forma, o gajo vive à custa da caridade alheia ou, então, canta alguma canção do Nelson Gonçalves acompanhado de uma caixa de fósforo. 

       Durante as caminhadas diárias, Moacir quase sempre passa pelo mendigo e, apesar de saber que ele vive por ali, evita fitá-lo. Não por medo, mas receio de conversas desnecessárias. Todavia, o inevitável aconteceu justamente há alguns dias, quando o viúvo colocou os pés para fora e, uns 30 metros adiante, se deparou com Antonio, que tentava encontrar o tom adequado de "Fica comigo esta noite".

        Moacir, que também é fã do finado cantor gaúcho, olhou para Antonio, que retribuiu o olhar. O idoso, instintivamente, se sentiu compelido a cumprimentar o maltrapilho.

        — Beleza?

        — Beleza é o que me falta, mas simpatia tenho de sobra.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Conhecidos de vista" foi publicado por Notibras no dia 25/11/2024.
  • https://www.notibras.com/site/moacir-antonio-nelson-e-a-simpatia-em-comum/

Feriado prolongado na vovó

Feriado prolongado. Maria Alice, Júlia, Janaína e Francisco, primos que eram, se encontraram na casa da avó materna, famosa pelos quitutes e a macarronada. Nessas ocasiões, o divertimento era garantido, ainda mais por conta de Maria Alice, que possuía a mente fértil. Tão fértil, que quase sempre conseguia plantar a sementinha das travessuras nas outras crianças. 

        Antes do almoço, os meninos resolveram explorar o amplo quintal da residência da matriarca. Subiram e desceram todas as árvores do quintal, até mesmo o abacateiro. Nadaram na piscina com o Sultão, o grande vira-lata da vovó. Felizes da vida, brincaram até a fome bater. E bateu forte! Tanto é que, assim que ouviram o chamado da velha, correram desembestados para sentar à enorme mesa na varanda. 

            Esfomeada que estava, a molecada raspou o prato, enquanto a avó sorria aquele sorriso de satisfeita. Pois é, a vovó continuava com a mão boa. Maria Alice, a líder, foi a primeira a terminar e já lançou aqueles enormes olhos castanhos em direção à idosa.

            — Tem pudim?

            — Tem, minha flor. 

            — Hum!

            Aquelas crianças pareciam ser sacos sem fundo, até que, de tanto comerem, nem uma azeitona cabia mais. Dessa forma, preferiram passar as próximas duas horas brincando de ludo no tapete da sala. E foi o que fizeram até que os olhos da Maria Alice brilharam.

            — Que tal brincar de pique-esconde?

            Tiraram zerinho ou um. Janaína perdeu e teve que contar até 30 para os primos se esconderem. Procura daqui, procura dali, a menina não conseguia achar ninguém. Até que ela ouviu um estrondo e correu para trás da casa. Lá estavam os três primos assustados, pois, sem querer, derrubaram o vaso de flores, que tombou e se espatifou. 

             Júlia, toda chorosa, disse que a vovó iria brigar. Francisco, olhos arregalados, parecia ainda mais temeroso de levar uma bronca daquelas. Mas eis que a Maria Alice, no alto da sabedoria dos seus quase 8 anos, proclamou:

               — Vamos colocar a culpa no Sultão.

                Ninguém contestou. Todos decidiram que, caso alguém perguntasse, o culpado tinha sido o Sultão. Tudo combinado, até que a vovó se deparou com o vaso quebrado. Aparentemente, não deu muita bola. Afinal, o que era um vaso diante da alegria de ter os netos em sua residência. Entretanto, por um motivo qualquer, ela chamou o Francisco para conversar.

                    As três garotas se entreolharam e foram para a varanda. Ansiosas que estavam, finalmente viram o primo saindo com um sorriso no rosto. Isso foi o bastante para a Maria Alice lhe lançar um olhar de desaprovação e, em seguida, falou para as primas:

                    — É certo que o Francisco cuspiu os feijões.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Feriado prolongado na vovó" foi publicado por Notibras no dia 24/11/2024.
  • https://www.notibras.com/site/feriado-longo-na-vovo-tem-ate-jarro-quebrado/

sábado, 23 de novembro de 2024

Sandoval, o hipocondríaco

    Sandoval, apesar de não ter sido criado pelo avô, guardava na memória momentos com o velho. Não de brincadeiras, mas de lamúrias, já que o homem vivia reclamando de dores aqui, enjoos ali, tonturas acolá. Se bobeasse, não sobraria dia que não fosse morrer.

          Quanto à avó, fazia o tipo durona. Raramente quedava, mesmo durante febres altíssimas. Encarava aquilo como ocasiões que faziam parte da vida. Quando caiu acamada, quedou de vez. Ouviu-se suspiro único, talvez de alívio. Por sorte do marido, que vivera uma vida inteira de lamúrias, ele sucumbiu três meses antes.

          O neto não se recordava de ter chorado a partida dos avós. Aos sete anos, talvez fosse ainda muito jovem para perceber que aqueles instantes não seriam um até logo, mas o adeus definitivo. Artimanhas da natureza, que protege as crianças de certas agruras. 

          O menino cresceu e, apesar de certas peculiaridades, não se distinguia tanto dos coleguinhas. Quer dizer, tirando o fato de Sandoval prestar mais atenção aos anúncios de remédios do que aos desenhos animados ou, então, parecer sentir mais prazer em tomar uma aspirina a um sorvete com cobertura de chocolate.

          Aos 18 anos, conheceu Maria Lúcia, atendente da farmácia da esquina. De tanto ir até lá perguntar sobre os novos lançamentos, Sandoval acabou engatando um namoro com a moça. Para falar a verdade, a guria foi a primeira de uma série que não ligou para as manias do gajo. Melhor, ela até considerava qualidade, pois via nisso algo como preocupação com a saúde. 

            Aos 25 anos, com carreira promissora de concursado do Banco do Brasil, Sandoval pediu a mão de Maria Lúcia em casamento. Isso após um longo período de namoro, que familiares e amigos imaginavam que não iria vingar. Vingou, para surpresa até da mulher, que, a essa altura do campeonato, era farmacêutica de formação e proprietária da mesma farmácia da esquina. 

           Mais alguns anos, os filhos começaram a chegar. O primogênito Carlos e, em seguida, as gêmeas Adriana e Paula. A correria da família era tamanha, mas tudo, aos trancos e barrancos, acabou se ajeitando, até que, quase num passe de mágica, toda a cria estava formada, empregada e, não tardou, cada um se ajeitou nos próprios cantos. 

          Sandoval e Maria Lúcia, já passados dos 60 anos, se perceberam praticamente sozinhos. A esposa até gostou de ter mais tempo para o casal, enquanto o homem começou a ser assombrado pelo medo da morte. Dessa forma, ele passou a ter certeza de que não chegaria ao fim daquele dia. 

          — Maria Lúcia, não quero ser cremado.

          — Que história mais boba, meu amor!

          — Que nada! A minha hora chegou.

           Maria Lúcia, apesar de conhecer as manias do esposo, tratou de correr com ele para o hospital. Consultas, exames, mas nada de anormal. Quer dizer, um sobrepeso, que poderia ser facilmente resolvido com dieta e ginástica. 

           O casal retornou para casa. O problema é que, na semana seguinte, nova certeza de morte acometeu o sujeito. E lá foi a Maria Lúcia levar o amado novamente para o hospital, onde, dessa vez, o médico achou por bem interná-lo. Não porque considerasse situação de risco, mas para aplacar a ansiedade do paciente. 

          No dia seguinte, após alta médica, Sandoval, sorriso nos lábios, retornou para o lar doce lar. Entretanto, alguns dias depois, nova internação. No dia seguinte, nova alta. E assim aqueles dois passaram a viver, pois, pelo menos uma vez por mês, dormiam entre uma e três noites no hospital. Sandoval como paciente; Maria Lúcia, acompanhante.

          Certa feita, os pombinhos, já acomodados no sofá da sala para assistir a um filme, perceberam que o vizinho estava dando uma festa de arromba, com som nas alturas. Maria Lúcia, que não era afeita a discussão, olhou para o Sandoval e disse:

          — Amor, que tal uma noite tranquila no hospital?

  • Nota de esclarecimento: O conto "Sandoval, o hipocondríaco" foi publicado por Notibras no dia 23/11/2024.
  • https://www.notibras.com/site/hipocondriaco-usava-hospital-como-um-motel/

sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Moacir, um cara de sorte

      Moacir, apesar de nunca ter sido arroz de festa, também jamais se esquivara de confraternizações. Comedido, é verdade, mas sempre polido e disposto a enfrentar mais algumas horas junto aos amigos, mesmo que fosse para escutar bobices dos cada vez mais alcoolizados. 

          Por conta desses festejos, o gajo conquistou a promoção que seria de outro, que, aos olhos do chefe, parecia possuir maior competência. E o patrão não estava enganado, pois o funcionário, a princípio escolhido, detinha qualificações dificilmente igualáveis em toda a região, quiçá no país. No entanto, Osório, o preferido, não tardou, entrou em desgraça. O motivo? Tinha ojeriza a comemorações. 

          — O homem é um animal social! - entonava o dono da empresa.

          — Aristóteles, né chefe? – Moacir disse.

          — Sim, meu jovem!

          Não pense você que foi por saber o autor de tal pensamento que fez Moacir ser o nomeado para o tal posto. É que havia uma segunda opção, justamente o Dimas. Pobre sujeito, pegou gripe e não pôde ir para os festejos. Também havia um terceiro nome, que, por conta do alto nível alcóolico do patrão, foi esquecido, da mesma forma como aconteceu com o quarto e o quinto. 

          Já quase no final do evento, Moacir era um dos raros que permaneciam no salão. Sorte mesmo foi ele estar justamente ao lado do chefe na hora deste, finalmente, anunciar o novo gerente de vendas da empresa. Totalmente desorientado, o homem se levantou e deu de cara com o Moacir.

          — Qual é mesmo o seu nome, meu rapaz?

          — Moacir, seu Ludovico.

          — Moacir! MO-A-CIR! Pois você, a partir de segunda-feira, é o novo gerente de vendas da Ludovico comércio Ltda. 

          Na segunda-feira seguinte, nem mesmo o Ludovico se lembrava da bobagem que havia dito. Todavia, como disse diante da pequena plateia que ainda estava na festa da firma, não teve como voltar atrás. Entretanto, aquela impulsividade não foi tão ruim assim, pois Moacir se mostrou um ótimo gerente nos anos seguintes. Melhor ainda, já que o patrão e o Moacir se tornaram amigos, desses que confidenciam quase tudo que pode ser confidenciado a alguém além do que é dito para o próprio reflexo diante do espelho.

          Quando já estava prestes a completar dez anos no cargo, eis que surgiu uma nova possibilidade de promoção. Moacir sabia que não era o que detinha os melhores atributos, mesmo porque o eleito precisava ter fluência em inglês, quando ele não ia muito além do The book is on the table. Carta fora do baralho, o homem declinou do convite para a festa daquele sábado, justamente a data em que Ludovico anunciaria o novo gerente de exportações.

           — Chefe, desculpe, mas não vou ao evento de amanhã.

           — Ué, por que não vai, Moacir?

          — É que a minha bateria social acabou.

           Ludovico, incrédulo, observou o empregado durante um minuto ou dois. Em seguida, fingiu que precisava fazer uma ligação, e Moacir saiu da sala, certo de que, além de não ter qualquer chance de ganhar uma promoção, corria sério risco de perder o cargo de gerente de vendas e, até pior, ser posto no olho da rua. 

          O final de semana foi repleto de angústia para Moacir, que não conseguia parar de pensar na bobagem que havia feito. Tentou pegar um cinema, mas caiu um temporal tão forte, que preferiu não arriscar. Ficou em casa e decidiu assistir a uma partida de futebol pela televisão. Acabou ficando ainda mais desanimado, pois seu time tomou aquela goleada. 

          Na segunda-feira, Moacir se arrumou para ir trabalhar. Não vestiu a melhor roupa nem a pior, mas a que serviria para qualquer ocasião. Mal chegou à empresa, Lúcia, uma colega, disse que o patrão queria lhe falar urgentemente. Moacir quase enfartou, até que se recompôs e se dirigiu à sala do chefe. Mal entrou, encontrou o dono da empresa ao telefone. 

          Alguns minutos se seguiram, que pareceram horas, até que Ludovico desligou o celular e soltou um palavrão. Moacir, temendo a maior desgraça, abaixou os olhos. 

          — MO-A-CIR!

          — Sim.

           — MO-A-CIR!

           Silêncio.

          — Meus parabéns, meu amigo! Você é o nosso novo gerente de exportações. 

     Moacir não podia acreditar no que estava ouvindo. Como assim? Gerente de exportações? Logo ele, que nem falava inglês? Pior, pois declinou de comparecer à festa. Mal sabia ele que o Ludovico tinha lá as suas razões. É que o patrão temia ter falado demais em suas confissões para o subalterno. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Moacir, um cara de sorte" foi publicado no dia 22/11/2024 por Notibras.
  • https://www.notibras.com/site/moacir-simplorio-e-premiado-por-sua-lucidez/


terça-feira, 19 de novembro de 2024

Que nem hamster na roda

    

        Hoje acordei indisposto. E pensar que logo ontem estava que nem hamster dando voltas intermináveis naquelas rodas, ritmo frenético que nem... Que nem? Ah, que nem textos daquele escritor gaúcho... Melhor nem falar quem. Vá que alguém comece a me xingar? Nem sei se você já leu, mas vou logo avisando que o rojão é daqueles que provocam o maior estrondo. Emoção à flor da pele. Não nasci com aquela coragem toda que ele possuía de se expor. Covarde que sempre fui, prefiro me esconder atrás das minhas personagens. 

          Do jeito que estou, que me venha um poema ou um conto do Daniel Marchi. Melhor poesia, que me transporta para algo que pinga fora da prosa. Ademais... De onde tirei esse ademais? Que seja ademais. Então, ademais, poesia me perturba a mente, que vaga toda vagabunda por ruelas tipo aquelas próximas ao Centro Cultural Banco do Brasil no Rio. Conhece? Pois deveria. 

          Ando desgostoso, não da vida, mas da humanidade. Que lástima ter nascido preso ao corpo de uma espécie tragicamente fracassada. Que duraremos pouco, não tenho dúvida, só não calculo o estrago que ainda poderemos fazer. Enquanto isso não chega, e creio que ainda levará algumas gerações, estou aqui apreciando meu café gourmet, ao mesmo tempo em que ouço os vizinhos gritando gritos aos berros. 

          Aliás, dia desses, lá estava no Uber, quando resolvi puxar assunto com o motorista. Quanta asneira em míseros quilômetros! É incrível a capacidade que um homem possui de juntar tantas e tantas bobices numa só mente. Somente numa! 

          Por sorte, na volta, peguei outro motorista, este esclarecido. Contei-lhe sobre a viagem anterior, o que o fez gargalhar, mas, logo em seguida, ficamos taciturnos. Pois é, taciturnos, macambúzio, quietos, olhando para o trânsito que ia e vinha, como se alguns carros quisessem fugir, enquanto outros talvez desejassem nos atingir em cheio. Isso é que dá ter consciência de que não temos mais jeito. 

          Tudo está aqui dentro, mas nada acontece. Uma hora essa vida tosca acaba. Só desejo estar confortavelmente acomodado em uma rede preguiçosa na varanda, sonhando com a praia, que desejo estar logo em frente, o barulho das ondas quebrando. Se o tempo ajudar, arrisco até um tchibum.

  • Nota de esclarecimento: A crônica "Que nem hamster na roda" foi publicada por Notibras no dia 19/11/2024.
  • https://www.notibras.com/site/vontade-de-mergulhar-em-aguas-frescas-mas-no-paranoa-nao-da/

sábado, 16 de novembro de 2024

Romildo, o herdeiro cheio de desejos

    

Romildo nasceu herdeiro e, por conta de tal situação, nunca precisou sonhar nada na vida. Quanto aos desejos, eles chegavam aos montes, cada vez mais intensos, porém breves. Sem tempo para birras, os pais tratavam logo de comprar tudo o que o menino quisesse. Quer dizer, quase tudo.

       Quando completou 18 anos, além de um conversível incrementado, o jovem queria porque queria uma ilha. Pois é, uma ilha! Até que dava para retirar uma bela quantia de aplicações, mas aquilo era demais. Já estava na hora de colocar um freio no rapaz ou, do contrário, daqui a pouco ele iria querer um pedaço da Lua. Aliás, por que apenas um pedaço, se os pais poderiam comprá-la inteira para o filho único?

         Sem expectativas de se tornar astronauta, Romildo acordou numa chuvosa manhã de novembro e pensou: "Bem que um cafezinho cairia bem!" 

        E o que é um simples café para quem poderia comprar um cafezal? Pois é, aquele singelo cafezinho se tornou obsessão. Tanto é que Romildo passou a estudar minuciosamente sobre tudo o que envolvia a mais tradicional bebida nacional. 

        Fez cursos e mais cursos, viajou pelos quatro cantos do mundo para degustar os mais famosos cafés. Todavia, por mais que procurasse, sentia que faltava algo. E, após quase dois anos de buscas infrutíferas, retornou cabisbaixo para o Brasil.

        Desceu no aeroporto Juscelino Kubitschek, em Brasília. Passaria não mais do que alguns dias na capital para ajustar certos negócios de família. E foi o que fez, pois pretendia rumar para uma das suas casas de praia no Nordeste para curtir a paisagem e pegar uma cor. Mas eis que tais planos foram adiados. O motivo? Bem, o velho conhecido: aquele cafezinho.

        Lá estava o homem sentado à mesa de negociação, quando entrou Maria para lhe servir uma xícara de café. Pra quê? Romildo, ao encostar os lábios na bebida, arregalou os olhos, depois os fechou suavemente. Mas antes de prosseguirmos a história, vale aqui um adendo sobre quem é Maria.

         Maria Lúcia, nascida e criada entre Luziânia-GO e o Distrito Federal, também nascera herdeira. Todavia, por conta de jogo e bebida, o pai perdeu tudo. Tudo mesmo! Inclusive a formosa esposa, que foi buscar aconchego debaixo dos lençóis de um primo e por lá ficou. 

        E lá foi a então menina arrastada pelas mãos da mãe e, graças a isso, sobreviveu. Do contrário, era provável que o pai a tivesse apostado numa mesa de truco. Sem fortuna, é verdade, mas sob a proteção de um teto.

        Maria Lúcia, ou melhor, Maria. É que a moça até gostava do seu nome composto, mas preferia a simplicidade de Maria. E foi assim que as pessoas passaram a chamá-la desde então.

            Pois bem, alguns anos se passaram e eis que voltamos ao ponto em que Romildo, xícara nos lábios, olhos cerrados, parecia inebriado.

             — Quem fez?

            — Fui eu. Mas se o senhor quiser que eu faça outro.

          — De jeito maneira, senhorita! Este é o melhor café que já provei em toda a minha existência.

            Romildo, após sorver o último gole, esticou o braço com a xícara na mão em direção à Maria.

               — Tem mais, senhorita?

           Maria tratou logo de servir ao rapaz, que parecia encantado com aquela descoberta. Ele, que andara pelos mais longínquos países do planeta, foi encontrar o elixir que procurava justamente ali no Cerrado. 

                — Desculpe por chamá-la de senhorita. Nem sei se você é casada.

                — Não sou.

                — Que bom! Então, caso a senhorita não se sinta ofendida, quero lhe fazer uma proposta.

                  É engraçado como certas coisas acontecem. Maria encarou aquele sujeito e lhe lançando um olhar de desejo que ela jamais havia visto. Sem pensar, ela respondeu:

                  — Pois diga! 

                A proposta, obviamente, não era de casamento ou coisa parecida, mas de sociedade. Romildo, podre de rico que era, investiu alguns milhões em cafeterias espalhadas pelo país. Ficou ainda mais rico, enquanto Maria, responsável pela qualidade do café, também foi beneficiada. Ainda não ficou milionária, mas vive muito bem em uma cobertura no Sudoeste. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Romildo, o herdeiro cheio de desejos" foi publicado por Notibras no dia 16/11/2024.
  • https://www.notibras.com/site/romildo-cheio-de-desejos-vira-rei-do-cafe/