sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Moacir, um cara de sorte

      Moacir, apesar de nunca ter sido arroz de festa, também jamais se esquivara de confraternizações. Comedido, é verdade, mas sempre polido e disposto a enfrentar mais algumas horas junto aos amigos, mesmo que fosse para escutar bobices dos cada vez mais alcoolizados. 

          Por conta desses festejos, o gajo conquistou a promoção que seria de outro, que, aos olhos do chefe, parecia possuir maior competência. E o patrão não estava enganado, pois o funcionário, a princípio escolhido, detinha qualificações dificilmente igualáveis em toda a região, quiçá no país. No entanto, Osório, o preferido, não tardou, entrou em desgraça. O motivo? Tinha ojeriza a comemorações. 

          — O homem é um animal social! - entonava o dono da empresa.

          — Aristóteles, né chefe? – Moacir disse.

          — Sim, meu jovem!

          Não pense você que foi por saber o autor de tal pensamento que fez Moacir ser o nomeado para o tal posto. É que havia uma segunda opção, justamente o Dimas. Pobre sujeito, pegou gripe e não pôde ir para os festejos. Também havia um terceiro nome, que, por conta do alto nível alcóolico do patrão, foi esquecido, da mesma forma como aconteceu com o quarto e o quinto. 

          Já quase no final do evento, Moacir era um dos raros que permaneciam no salão. Sorte mesmo foi ele estar justamente ao lado do chefe na hora deste, finalmente, anunciar o novo gerente de vendas da empresa. Totalmente desorientado, o homem se levantou e deu de cara com o Moacir.

          — Qual é mesmo o seu nome, meu rapaz?

          — Moacir, seu Ludovico.

          — Moacir! MO-A-CIR! Pois você, a partir de segunda-feira, é o novo gerente de vendas da Ludovico comércio Ltda. 

          Na segunda-feira seguinte, nem mesmo o Ludovico se lembrava da bobagem que havia dito. Todavia, como disse diante da pequena plateia que ainda estava na festa da firma, não teve como voltar atrás. Entretanto, aquela impulsividade não foi tão ruim assim, pois Moacir se mostrou um ótimo gerente nos anos seguintes. Melhor ainda, já que o patrão e o Moacir se tornaram amigos, desses que confidenciam quase tudo que pode ser confidenciado a alguém além do que é dito para o próprio reflexo diante do espelho.

          Quando já estava prestes a completar dez anos no cargo, eis que surgiu uma nova possibilidade de promoção. Moacir sabia que não era o que detinha os melhores atributos, mesmo porque o eleito precisava ter fluência em inglês, quando ele não ia muito além do The book is on the table. Carta fora do baralho, o homem declinou do convite para a festa daquele sábado, justamente a data em que Ludovico anunciaria o novo gerente de exportações.

           — Chefe, desculpe, mas não vou ao evento de amanhã.

           — Ué, por que não vai, Moacir?

          — É que a minha bateria social acabou.

           Ludovico, incrédulo, observou o empregado durante um minuto ou dois. Em seguida, fingiu que precisava fazer uma ligação, e Moacir saiu da sala, certo de que, além de não ter qualquer chance de ganhar uma promoção, corria sério risco de perder o cargo de gerente de vendas e, até pior, ser posto no olho da rua. 

          O final de semana foi repleto de angústia para Moacir, que não conseguia parar de pensar na bobagem que havia feito. Tentou pegar um cinema, mas caiu um temporal tão forte, que preferiu não arriscar. Ficou em casa e decidiu assistir a uma partida de futebol pela televisão. Acabou ficando ainda mais desanimado, pois seu time tomou aquela goleada. 

          Na segunda-feira, Moacir se arrumou para ir trabalhar. Não vestiu a melhor roupa nem a pior, mas a que serviria para qualquer ocasião. Mal chegou à empresa, Lúcia, uma colega, disse que o patrão queria lhe falar urgentemente. Moacir quase enfartou, até que se recompôs e se dirigiu à sala do chefe. Mal entrou, encontrou o dono da empresa ao telefone. 

          Alguns minutos se seguiram, que pareceram horas, até que Ludovico desligou o celular e soltou um palavrão. Moacir, temendo a maior desgraça, abaixou os olhos. 

          — MO-A-CIR!

          — Sim.

           — MO-A-CIR!

           Silêncio.

          — Meus parabéns, meu amigo! Você é o nosso novo gerente de exportações. 

     Moacir não podia acreditar no que estava ouvindo. Como assim? Gerente de exportações? Logo ele, que nem falava inglês? Pior, pois declinou de comparecer à festa. Mal sabia ele que o Ludovico tinha lá as suas razões. É que o patrão temia ter falado demais em suas confissões para o subalterno. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Moacir, um cara de sorte" foi publicado no dia 22/11/2024 por Notibras.
  • https://www.notibras.com/site/moacir-simplorio-e-premiado-por-sua-lucidez/


terça-feira, 19 de novembro de 2024

Que nem hamster na roda

    

        Hoje acordei indisposto. E pensar que logo ontem estava que nem hamster dando voltas intermináveis naquelas rodas, ritmo frenético que nem... Que nem? Ah, que nem textos daquele escritor gaúcho... Melhor nem falar quem. Vá que alguém comece a me xingar? Nem sei se você já leu, mas vou logo avisando que o rojão é daqueles que provocam o maior estrondo. Emoção à flor da pele. Não nasci com aquela coragem toda que ele possuía de se expor. Covarde que sempre fui, prefiro me esconder atrás das minhas personagens. 

          Do jeito que estou, que me venha um poema ou um conto do Daniel Marchi. Melhor poesia, que me transporta para algo que pinga fora da prosa. Ademais... De onde tirei esse ademais? Que seja ademais. Então, ademais, poesia me perturba a mente, que vaga toda vagabunda por ruelas tipo aquelas próximas ao Centro Cultural Banco do Brasil no Rio. Conhece? Pois deveria. 

          Ando desgostoso, não da vida, mas da humanidade. Que lástima ter nascido preso ao corpo de uma espécie tragicamente fracassada. Que duraremos pouco, não tenho dúvida, só não calculo o estrago que ainda poderemos fazer. Enquanto isso não chega, e creio que ainda levará algumas gerações, estou aqui apreciando meu café gourmet, ao mesmo tempo em que ouço os vizinhos gritando gritos aos berros. 

          Aliás, dia desses, lá estava no Uber, quando resolvi puxar assunto com o motorista. Quanta asneira em míseros quilômetros! É incrível a capacidade que um homem possui de juntar tantas e tantas bobices numa só mente. Somente numa! 

          Por sorte, na volta, peguei outro motorista, este esclarecido. Contei-lhe sobre a viagem anterior, o que o fez gargalhar, mas, logo em seguida, ficamos taciturnos. Pois é, taciturnos, macambúzio, quietos, olhando para o trânsito que ia e vinha, como se alguns carros quisessem fugir, enquanto outros talvez desejassem nos atingir em cheio. Isso é que dá ter consciência de que não temos mais jeito. 

          Tudo está aqui dentro, mas nada acontece. Uma hora essa vida tosca acaba. Só desejo estar confortavelmente acomodado em uma rede preguiçosa na varanda, sonhando com a praia, que desejo estar logo em frente, o barulho das ondas quebrando. Se o tempo ajudar, arrisco até um tchibum.

  • Nota de esclarecimento: A crônica "Que nem hamster na roda" foi publicada por Notibras no dia 19/11/2024.
  • https://www.notibras.com/site/vontade-de-mergulhar-em-aguas-frescas-mas-no-paranoa-nao-da/

sábado, 16 de novembro de 2024

Romildo, o herdeiro cheio de desejos

    

Romildo nasceu herdeiro e, por conta de tal situação, nunca precisou sonhar nada na vida. Quanto aos desejos, eles chegavam aos montes, cada vez mais intensos, porém breves. Sem tempo para birras, os pais tratavam logo de comprar tudo o que o menino quisesse. Quer dizer, quase tudo.

       Quando completou 18 anos, além de um conversível incrementado, o jovem queria porque queria uma ilha. Pois é, uma ilha! Até que dava para retirar uma bela quantia de aplicações, mas aquilo era demais. Já estava na hora de colocar um freio no rapaz ou, do contrário, daqui a pouco ele iria querer um pedaço da Lua. Aliás, por que apenas um pedaço, se os pais poderiam comprá-la inteira para o filho único?

         Sem expectativas de se tornar astronauta, Romildo acordou numa chuvosa manhã de novembro e pensou: "Bem que um cafezinho cairia bem!" 

        E o que é um simples café para quem poderia comprar um cafezal? Pois é, aquele singelo cafezinho se tornou obsessão. Tanto é que Romildo passou a estudar minuciosamente sobre tudo o que envolvia a mais tradicional bebida nacional. 

        Fez cursos e mais cursos, viajou pelos quatro cantos do mundo para degustar os mais famosos cafés. Todavia, por mais que procurasse, sentia que faltava algo. E, após quase dois anos de buscas infrutíferas, retornou cabisbaixo para o Brasil.

        Desceu no aeroporto Juscelino Kubitschek, em Brasília. Passaria não mais do que alguns dias na capital para ajustar certos negócios de família. E foi o que fez, pois pretendia rumar para uma das suas casas de praia no Nordeste para curtir a paisagem e pegar uma cor. Mas eis que tais planos foram adiados. O motivo? Bem, o velho conhecido: aquele cafezinho.

        Lá estava o homem sentado à mesa de negociação, quando entrou Maria para lhe servir uma xícara de café. Pra quê? Romildo, ao encostar os lábios na bebida, arregalou os olhos, depois os fechou suavemente. Mas antes de prosseguirmos a história, vale aqui um adendo sobre quem é Maria.

         Maria Lúcia, nascida e criada entre Luziânia-GO e o Distrito Federal, também nascera herdeira. Todavia, por conta de jogo e bebida, o pai perdeu tudo. Tudo mesmo! Inclusive a formosa esposa, que foi buscar aconchego debaixo dos lençóis de um primo e por lá ficou. 

        E lá foi a então menina arrastada pelas mãos da mãe e, graças a isso, sobreviveu. Do contrário, era provável que o pai a tivesse apostado numa mesa de truco. Sem fortuna, é verdade, mas sob a proteção de um teto.

        Maria Lúcia, ou melhor, Maria. É que a moça até gostava do seu nome composto, mas preferia a simplicidade de Maria. E foi assim que as pessoas passaram a chamá-la desde então.

            Pois bem, alguns anos se passaram e eis que voltamos ao ponto em que Romildo, xícara nos lábios, olhos cerrados, parecia inebriado.

             — Quem fez?

            — Fui eu. Mas se o senhor quiser que eu faça outro.

          — De jeito maneira, senhorita! Este é o melhor café que já provei em toda a minha existência.

            Romildo, após sorver o último gole, esticou o braço com a xícara na mão em direção à Maria.

               — Tem mais, senhorita?

           Maria tratou logo de servir ao rapaz, que parecia encantado com aquela descoberta. Ele, que andara pelos mais longínquos países do planeta, foi encontrar o elixir que procurava justamente ali no Cerrado. 

                — Desculpe por chamá-la de senhorita. Nem sei se você é casada.

                — Não sou.

                — Que bom! Então, caso a senhorita não se sinta ofendida, quero lhe fazer uma proposta.

                  É engraçado como certas coisas acontecem. Maria encarou aquele sujeito e lhe lançando um olhar de desejo que ela jamais havia visto. Sem pensar, ela respondeu:

                  — Pois diga! 

                A proposta, obviamente, não era de casamento ou coisa parecida, mas de sociedade. Romildo, podre de rico que era, investiu alguns milhões em cafeterias espalhadas pelo país. Ficou ainda mais rico, enquanto Maria, responsável pela qualidade do café, também foi beneficiada. Ainda não ficou milionária, mas vive muito bem em uma cobertura no Sudoeste. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Romildo, o herdeiro cheio de desejos" foi publicado por Notibras no dia 16/11/2024.
  • https://www.notibras.com/site/romildo-cheio-de-desejos-vira-rei-do-cafe/

sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Augusto Cavalcante, o astro

    

        Josias Santos. Certamente, você nunca ouviu falar desse sujeito. No entanto, basta mencionar o nome artístico do gajo para que a memória o transporte ao mais brilhante período das telenovelas: Augusto Cavalcante. Um metro e oitenta, olhos azuis e o doce sorriso canalha das telinhas. Qual mulher nunca o desejou? Que homem não quis estar na pele do maior galã das tramas acompanhadas por milhões de telespectadores?

          Ator... Quer dizer, galã! Afinal, como todo galã que se preza, nunca fora ator, mas o mais notório canastrão. Bastava! Tanto é que, desde que começara no ofício, a única coisa que possuía era a beleza, que, após décadas, foi-se esvaindo. Seja como for, o público o amava, por mais clichê fossem suas falas. 

          Augusto, ao longo de gerações, contracenou com várias atrizes. Atrizes! Todas seguraram, literalmente, a cena. Algumas se apaixonaram pelo parceiro de trabalho, mas a maioria logo percebeu que daquele mato não saía coelho nem mesmo lebre faceira. Sequer derradeira esperança, que fosse, por um preá fujão. 

          Há quase dois anos, lá estava o herói nacional contracenando com uma garota de não mais de 20 anos. Na verdade, a ninfeta era o mais novo par do astro. O problema foi que ele percebeu como o tempo havia corrido. É que a tal garota, cujo nome era Júlia, carregava sobrenome há muito conhecido: Rufino. 

          Augusto havia contracenado com a bisavó de Júlia, a finada Elisa Rufino, bem como a avó, Maria Lúcia Rufino. Poderia tê-lo feito com a mãe da atriz, a conceituada Patrícia Rufino, mas esta preferiu atuar apenas no teatro. O canastrão, ciente das próprias limitações, nunca se atreveu a encarar uma plateia ao vivo, ainda mais porque sabia que o público do teatro era exigente. 

          Diante da jovem Júlia, Augusto percebeu, pela primeira vez, que seu rosto derretia na telona. Sentiu-se ridículo em viver um romance improvável em mais uma história criada para agradar ao seu público, que, apesar do período inimaginável de sucesso, mantinha-se fiel. Todavia, aquilo deixou de fazer sentido para o velho canastrão e, então, ele pediu algo inusitado para o roteirista.

            — Jorge, por favor, preciso de um grande favor.

            — Pois diga, minha estrela maior!

            — Quero me mate.

            — O quê?

            — Isso mesmo! 

            — Como assim, Augusto? Você é o maior astro que temos. Sem você, a história não faz sentido.

            — Invente algo. Você é bom nisso.

            Após vários argumentos usados pelo autor da novela, todos rebatidos pelo galã, a trama foi alterada. Ficou absurda, é verdade. No entanto, parece que o público aceitou de bom grado.

Luís Fabiano, papel vivido por Augusto, por puro descuido, ingeriu uma poção mágica, que o transformou em um belo rapagão de lá seus 25 anos. Dessa forma, saía de cena definitivamente o lendário Augusto Cavalcante, enquanto ganhava as telas Lauro Gomide, o novo queridinho do país. 

          Não se sabe ao certo o que o antigo astro anda fazendo. Todavia, segundo renomado colunista de fofocas, não demora, será publicado um livro de memórias do eterno ator Augusto Cavalcante. Quer dizer, galã. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Augusto Cavalcante, o astro" foi publicado por Notibras no dia 15/11/2024.
  • https://www.notibras.com/site/certeza-que-tempo-leva-a-velhice-um-dia-chega/

 

Mais uma doidivana na família

         

         Cresci rodeada de mulheres, algumas ousadas, outras contidas, sem contar duas ou três doidivanas, que até hoje me fazem querer ir muito além do que nos é permitido. É certo que, para sobreviverem, todas tiveram que ser submissas em algum momento da vida.

          Vovó, toda vez que uma de nós casávamos, vinha com uma frase feita, que sempre odiei:

          — Foi-se o tempo do biquíni. 

          É difícil, ao menos para mim, falar sobre algo que me causa repulsa, ainda mais quando dito por alguém que tanto me deu carinho. Minha avó tinha lá seus defeitos, como todos nós. Entretanto, com seu jeito matrona, sempre soube nos proteger de alguma forma. Levei tempo para entendê-la, pois as amarras naquele tempo eram tantas, que já nascíamos acostumadas a encará-las como próprias da condição de mulher. 

          Sei que as conquistas, por mais módicas que pudessem parecer, foram cruciais para que eu entrasse na faculdade. E nem fui a primeira da família a fazer um curso superior, já que duas primas cursaram letras e história. No entanto, quando chegou a minha vez, a escolha por engenharia, ainda mais civil, causou certo reboliço na parentada. 

            — Engenharia civil? 

            — Pra você ver!

            — E desde quando isso é profissão de mulher?

            — Pois é!

            — Por que não escolheu ser professora?

             — Ou enfermeira?

              — E quem vai ter coragem de morar num edifício construído por uma mulher? Me poupe!

              — Aposto que não conclui. Muitos cálculos!

               — É verdade. Esse negócio de matemática não é pra mulher.

                Obviamente que não fui a primeira mulher a se formar em engenharia civil, mas ouvi muitas frases imbecis como as ditas pelos meus parentes. Vovó, creio, também não gostou da minha escolha. Todavia, não me lembro de qualquer frase desabonadora sobre a neta estudar para ser engenheira. 

              Após me formar, ainda escutei algumas tolices. Diziam que, finalmente, eu poderia arrumar marido e voltar para o mundo reservado às moças. Em vez disso, comecei a trabalhar e, em alguns anos, já assinava algumas construções importantes aqui em Natal. 

                Também me casei com um colega de profissão. Minha avó, entretanto, jamais me disse sua famosa frase sobre biquíni. Não sei se porque percebeu que a neta havia chegado a um ponto que nunca imaginou possível para uma mulher ou, então, teve certeza de que eu passaria a vida inteira usando biquíni. 

                Mas deixe-me confessar um segredinho. É que vovó estava certa. Foi-se o tempo do biquíni. E hoje mesmo vou visitar o município de Conde, na Paraíba, e andar completamente pelada pelas areias de Tambaba.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Mais uma doidivana na família" foi publicado por Notibras no dia 15/11/2024.
  • https://www.notibras.com/site/moca-poderosa-ou-outra-doidivana-na-familia/

quinta-feira, 14 de novembro de 2024

Honorato, o café e a superstição

  

       Diante do fogão, Honorato apreciava o momento em que as primeiras bolhas se formavam no fundo da chaleira.  Era o instante exato para desligar o fogo e derramar a água em suaves movimentos circulares sobre o pó de café depositado no coador de pano. Ensinamentos da sua falecida avó, que o homem, hoje tão velho como a saudosa parenta, havia aprendido quando menino.

          Preparar o café, além de ato inicial de todas as manhãs, era o que prenunciava se aquele seria ou não um bom dia. É verdade que, de tão calejadas eram aquelas mãos enrugadas, quase sempre a bebida saía a contento. Não obstante, e a despeito do pó sempre de elevada qualidade, quando era para dar ruim, ficava pior do que café de beira de estrada. Em tais ocasiões, aliás, Honorato fazia de tudo para não colocar os pés para fora do apartamento, mesmo que a bela praia de Cabo Branco, na encantadora João Pessoa, o convidasse para um passeio. 

          Honorato se serviu e foi até a varanda do seu apartamento olhar o mar. O tempo estava agradável, e as parcas nuvens anunciavam que uma caminhada era bem-vinda. Pensou em pegar dinheiro para uma água de coco, mas, ao provar o café, quase o cuspiu. Que porcaria! 

          O sujeito sabia que não era de bom alvitre colocar a fuça para além da porta. E, para não correr risco de que algo o obrigasse a sair de casa, tratou de desligar o telefone, o interfone e a campainha. Passaria o dia inteiro lendo. No final, até gostou da ideia, pois precisava colocar a leitura em dia, ainda mais porque havia ganhado o livro "A verdade nos seres", cujo autor era um tal Daniel Marchi, que caíra no gosto da filha. 

          Honorato jogou fora o resto do café. Não era mesmo dia dessa iguaria, ainda mais porque a bebida não lhe saíra a contento. Não mesmo! Espremeu algumas laranjas, despejou em generoso copo e foi ler na varanda. 

          A cada poema lido, o homem degustava por um tempo aquelas palavras até que, no momento seguinte, atrevia-se a ler próximo. Tudo ia bem, até que chegou à página 59, onde se deparou com "Amor de sábado". Não que os versos fossem ruins, pelo contrário. Eram magníficos e, por isso mesmo, o transportaram para um breve flerte ocorrido há poucos dias no elevador. 

          Trocaram telefones, mas, até aquele momento, ninguém havia feito contato, nem mesmo um "Oi!" por mensagem. Honorato, que quase nunca poderia ser chamado de inconsequente, sentiu-se propenso a agir como tal. E foi o que fez. Mandou uma mensagem via WhatsApp.

            — Oi!

            — Oi!

            — Tudo bem?

            — Tudo. E com você?

            — Tudo bem também.

            — Pensei que você tivesse perdido meu número ou, então, algo pior.

             — Como assim?

            — Ué, tivesse me achado atrevida.

            — Gostei muito!

            — Hum...

            A conversa se prolongou por mais algumas frases, até que Adélia, era esse o nome da viúva do terceiro andar, fez o convite fatal. Sem ter para onde correr, Honorato agiu como um irresponsável. Jogou para o alto todas as superstições e foi para o apartamento da mulher. Desde então, ele aprendeu que o café pode ser até ruim, mas a vida, vez ou outra, é doce. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Honorato, o café e a superstição" foi publicado por Notibras no dia 14/11/2024.
  • https://www.notibras.com/site/honorato-acaba-com-supersticao-de-cafe-ruim/

Cadê os pés de porco?

   

         Leopoldo, o mecânico mais afamado da região, gostava de acordar tarde, mas precisava abrir a oficina logo cedo, ainda mais porque havia clientes saindo pelo ladrão. E, por falar em apreciadores do alheio, eis que aconteceu algo por esses dias, que deixou o gajo de cabelo em pé. 

          Como era sábado, um dos clientes, o Vicente, resolveu fazer um churrasquinho enquanto esperava o Leopoldo consertar seu automóvel, um Opala 1973, verde que nem abacate. Colocou carvão na pequena churrasqueira e ficou por quase meia hora tentando acender o fogo, mas nada. Nisso, o churrasqueiro de primeira viagem foi buscar socorro no Gilmarildo, que sempre andava por ali na caça de boa prosa. 

          — Gilmarildo, tudo bem?

          — Opa, Vicente! Tudo certo! E com você?

          — Tudo. Você pode me dar uma força?

          — Diga lá!

          — Sabe acender fogo?

          — Quer incendiar o quê, homem?

          — O carvão ali.

          — Hum... Vai rolar um churrasquinho?

          — É. Comprei um cupim e uns pés de porco.

         Gilmarildo, com toda sua expertise de churrasqueiro, conseguiu acender o fogo em poucos minutos, para alegria do colega. No entanto, tal regozijo se transformou em desespero em seguida. É que o Vicente havia colocado as carnes dentro de uma caixa de isopor, que agora estava ali tombada e destampada. 

          — Ué, cadê meu cupim? Cadé meus pés de porco? - Vicente choramingou.

          Busca daqui, busca de lá, busca até de acolá, mas nada de encontrar a carne. Quer dizer, o Leopoldo, percebendo aquela quizumba, ficou cabreiro e, bobo que não era, logo percebeu que naquele mato tinha coelho. Aliás, cachorro!

          Não tardou, o mecânico encontrou o Caneco, o vira-lata da oficina, debaixo do Opala do Vicente, degustando os pés de porco. Quanto ao cupim, nem sinal. Certamente já estava no bucho do cachorro. 

          Para evitar imbróglio com o cliente, Leopoldo resolveu pedir no açougue ao lado um cupim e quatro pés de porco. Todavia, manteve em segredo a falcatrua do seu funcionário de quatro patas. Afinal, apesar de aprontar de vez em quando, era o que lhe dava menos dor de cabeça. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Cadê os pés de porco?" foi publicado por Notibras no dia 14/11/2024.
  • https://www.notibras.com/site/caneco-vira-o-isopor-e-some-com-os-pes-de-porco/

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Um dia ensolarado em Brasília

      

         Eis que estou aqui em casa, quando a minha esposa, a famosa Dona Irene, solta aquela gargalhada. Imediatamente, lanço um olhar e um sorriso bobo diante de tamanha beleza. 

        _ O que foi, amorzinho?

        _ Edu, lembra daquele dia em que estávamos naquela praça lá em Brasília com o Chengulo, e uma mulher apareceu e perguntou se você poderia responder a uma pesquisa?

         _ Lembro. E o que tem isso?

          _ É que você disse que tínhamos um filho de sete anos que se chamava Chengulo.

          _ E daí?

           _ Daí que ela fez uma cara de surpresa. Até repetiu o nome: "Chengulo?"

          Pois é, isso aconteceu numa manhã ensolarada na Asa Norte, quando estávamos passeando com o Chengulo. A moça da pesquisa não percebeu que estava diante do nosso filho, pois imaginou que ele estaria na escola. 

            É engraçado como a vida é tão curta, especialmente a dos cães. No entanto, parece que eles vivem de modo mais intenso, como se soubessem que não há tempo a se perder. Mas não na ânsia de ganhar cada vez mais e mais dinheiro, ser reconhecido por isso ou aquilo. E o Chengulo, com aquela cara achatada, faz muita falta. O que me conforta é que ele soube como ninguém levar uma vida plena de cachorro. 

  • Nota de esclarecimento: A crônica "Um dia ensolarado em Brasília" foi publicado por Notibras no dia 13/11/2024.
  • https://www.notibras.com/site/chengulo-o-filhote-teve-vida-plena-de-cachorro/

Erasto, o entediado

       

Erasto, velho que era há tanto tempo, afundado na poltrona da sala, aguardava pela finitude chegar. Incomodado pela demora, de vez em quando procurava algo para fazer. Um livro, que não poderia ser muito grosso, pois não suportava a ideia de não terminar de lê-lo antes da derradeira batida do coração. 

        Contos e crônicas, até pela pouca extensão, eram seus preferidos. No entanto, arriscava uma ou outra poesia, ainda mais do seu autor favorito, Daniel Marchi. Perdia-se nos versos, enquanto os dias se tornavam mais leves, mas sem afastá-lo por completo da ideia de que precisava morrer. Aliás, era uma questão de honra deixar a vida para quem tivesse sede, e não para um idoso carcomido de lamúrias por saudosismos inexistentes. 

          Enquanto folheava o livro "A verdade nos seres", Erasto escutou uma sonora gargalhada vinda lá debaixo na calçada, bem em frente à praia de Arapuama, na cidade do Cabo de Santo Agostinho-PE. Curioso, foi ver do que se tratava, quando viu uma bela mulher conversando com um vendedor de picolé. O que seria tão engraçado? Ele ficou ali na janela tentando imaginar, até que o telefone tocou.

            — Alô!

            — Erasto?

            — Sim. Quem é?

            — Sou eu, a Sofia.

            Sofia era uma amiga, dessas que somem e aparecem sem motivo aparente. Na verdade, ela e Erasto tiveram um caso extraconjugal há quase duas décadas. Não mais do que duas ou três saídas, até que ela, talvez sem esperança por algo além do que possuía em casa, resolveu não dar corda ao adultério. 

            — Oi, Sofia! Há quanto tempo!

            — Pois é. Muito tempo mesmo!

            — O que tem feito da vida?

            — Depois que me aposentei, algumas viagens. E você?

            — Quase não saio de casa, ainda mais depois que a minha mulher se foi.

            — Não sabia que você ficou viúvo.

            — Não fiquei. A Ruth simplesmente foi embora. 

            — Ah, tá!

            — E o seu marido?

            — Está bem. Adora pescar com os amigos.

            — Hum...

            — Tá fazendo o quê agora?

            — Nada.

            — Então, desce aqui.

            — Como assim?

            — Desce aqui. Estou debaixo do seu prédio tomando um picolé. Quer um?

            Erasto, por um instante, deixou o desejo de terminar o dia dentro de um caixão. Já no elevador, pensou: "Pois não é que, de vez em quando, o tempo passeia por aqui!"

  • Nota de esclarecimento: O conto "Erasto, o entediado" foi publicado por Notibras no dia 13/11/2024.
  • https://www.notibras.com/site/amor-e-traicao-voltam-a-paradisiaca-piedade/