quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Memórias de uma senhora entre dois amores

        

          Não me casei com o grande amor da minha vida, é verdade, mas é com ele que ainda vivo momentos de luxúria, até chegar o dia em que terei que prestar contas com Deus, isto é, se é que Ele exista ou, então, não passe de devaneio da mente humana. Que seja uma coisa ou outra, não estou preocupada hoje, diante do meu marido, que repousa no caixão ornado de flores. Um bom homem, creia-me, que, durante quase 40 anos, me fez companhia nas noites solitárias, enquanto eu, talvez ingrata, só possuísse pensamentos voltados para o outro.

          O outro, por assim dizer, é meu primo Orlando, cujas promessas de um futuro juntos foram repentinamente quebras por uma gravidez inesperada. Não minha, mas de outra parenta, a Judite. Sem poder fugir da responsabilidade, meu grande amor desposou a mulher, com quem ainda vive sob o mesmo teto. Como ele próprio me confidencia durante os momentos de alcova, casamento é que nem fumo de rolo, tem que ir até a última tragada. 

          Não guardo rancor de Judite, que, aos 17 anos, se deixou seduzir ou seduziu nosso primo. E o que teria sido uma aventura, acabou em casamento antes da barriga despontar. E foi justamente nesse dia que conheci Júlio, amigo da família, que me fez par. Éramos padrinhos daquele casal, cujo noivo, pecadora que sempre fui, desejei passar a lua de mel. Não o fiz, obviamente. Pelo contrário, me afastei de todos alguns dias após. Fui estudar na capital.

          Meti a cabeça nos livros e consegui passar no vestibular para o curso de ciências contábeis. Durante as férias na faculdade, evitava voltar para minha Belmonte. Resisti quase sempre, até que, já perto de concluir o curso, visitei meus pais. Tudo corria bem, mas mamãe fez questão de me levar para uma visita à casa do Orlando e da Judite, que já estava na terceira gravidez. 

          Ao chegarmos, fomos recebidos por Orlando, que ostentava um bigode, o que o deixou parecido com o jogador de futebol Rivelino. Um charme, por assim dizer. Conheci os dois pequenos, Lúcia e Joaquim, que timidamente me receberam. Judite, perto de parir novamente, sorriu e me deu um longo abraço. Apesar de querer me livrar daquela situação o mais rápido possível, acabei aceitando de bom grado, pois senti o cheiro impregnado do nosso homem nos cabelos de Judite. 

          Enquanto estávamos sentados no amplo sofá da sala, ouvindo as várias conversas sobre a vida de casados dos meus parentes, a campainha tocou. Para minha surpresa, era Júlio, que estava na cidade por causa do falecimento do pai. Aqueles olhos tristes me fizeram querer confortá-lo. Abracei-o de modo prolongado, o que despertou um olhar de ciúme em Orlando. Sei que não deveria sentir o que senti, mas meu coração se encheu de regozijo.

          Dois dias depois, reencontrei Júlio na rodoviária. Por coincidência, ele havia comprado passagem de volta para a capital no mesmo ônibus que eu. Os nossos assentos não eram próximos, mas isso não foi empecilho, pois consegui convencer a senhora que estava ao lado dele de trocarmos de lugar. Como consegui? Simples. Agarrei Júlio pela cintura e menti que éramos recém-casados. 

          Durante o trajeto de Belmonte a Salvador, Júlio não parou de me chamar de doida por ter inventado que éramos casados. Falei para ele que aquelas horas de viagem seriam como nossa lua de mel. Não chegou a tanto, mesmo porque o ônibus estava lotado. Quase comportados, meu marido de mentirinha pegava na minha mão e a acariciava. À noite, enquanto a maioria dos passageiros adormecia ou fingia fazê-lo, tomei a iniciativa de beijar aqueles lábios tímidos. Apesar de surpreso, Júlio soube retribuir ardentemente. 

          Assim que chegamos a Salvador, combinamos de nos encontrar em breve. Não foi tão breve assim, pois eu precisava me dedicar aos estudos, já que enfrentaria o último semestre na faculdade. Falávamos por telefone uma ou duas vezes por semana, até que marcamos de tomar uma cerveja num domingo. Quando cheguei, percebi que Júlio estava ainda mais bonito. 

          Após alguns copos, comecei a imaginar como terminaríamos aquela tarde. Saímos do bar e fomos para o apartamento que eu dividia com uma amiga de curso. Ela, por sorte, tinha ido passar o final de semana na casa dos pais, em Feira de Santana. Todavia, para meu azar, Júlio se mostrou muito respeitador e fez questão de me acompanhar somente até a porta. 

          Nosso segundo encontro aconteceu apenas no mês seguinte, quando meu quase namorado me convidou para jantar. Era um sábado e o prato foi moqueca. Foi o encontro dos sonhos e, para minha sorte, Júlio me convidou para conhecer seu apartamento. Nem tive o trabalho de fingir constrangimento, pois era justamente o que esperava desde que passamos por marido e mulher naquele ônibus. 

          Não vou romantizar a noite que tivemos. Júlio, apesar de não ter se mostrado decepcionante debaixo dos lençóis, não conseguiu me impressionar. Seja como for, adorava estar ao seu lado e, após alguns encontros, ele me pediu em casamento. Aceitei como se fosse mais uma brincadeira e, duas semanas após minha formatura, oficializamos o noivado na casa de mamãe. 

          Casamos sem pressa quase um ano após na mesma igreja que Orlando e Judite. Por ironia, os dois foram nossos padrinhos. Lembro-me muito bem do beliscão que mamãe me deu ao percebeu que eu não tirava os olhos do meu primo. O engraçado é que o romance que tivemos antes da gravidez de Judite foi breve, apesar de intenso, e, até onde sei, ninguém soube. No entanto, parece que mães sentem as coisas no ar. Soube disso após dois anos, quando Maria Clara, minha filha, nasceu.

          Como morávamos em Salvador, mantínhamos pouco contato com os parentes em Belmonte, ainda mais após o falecimento de mamãe, ocorrido pouco antes do Natal de 1993. E, quando íamos, era coisa rápida e cada vez mais espaçada. De vez em quando, recebíamos um ou outro parente em nosso apartamento, momentos em que ficávamos sabendo que fulano havia se casado, sicrano morrido ou coisa assim. 

          Júlio e eu, que pensávamos que iríamos passar o resto da vida em Salvador, decidimos retornar para Belmonte em 2016, dois anos após nos aposentarmos. Maria Clara, casada com Paulo, um rapaz que havia feito faculdade com ela, nos deu duas netas lindas, Júlia e Roberta. 

          Alugamos nosso apartamento na capital e fomos morar na casa que recebi de herança de mamãe. Apesar de pequena, nos serviu muito bem, pois éramos somente dois velhos aposentados e sem muitas preocupações. Gostávamos de passear de mãos dadas pela orla, como se fôssemos namorados ainda.

          Júlio, logo que retornamos para Belmonte, voltou a ficar próximo de Orlando, o que me obrigava a, vez ou outra, encontrar meu primeiro grande amor. Judite, que há tempos andava acamada por conta de um acidente de carro, mal conseguia andar. Júlio, alguns meses depois, me confidenciou que os dois não se relacionavam intimamente há mais de 10 anos, bem antes do acidente. Não sei se ele disse isso como forma de convite, mas passei a desejá-lo como nos meus 18 anos, quando tivemos nossa primeira vez.

          Aconteceu quase por acaso alguns dias após. Meu marido precisou ir ao médico para exames de rotina. Ele me pediu para levar um livro de poesias para Judite, além de lhe fazer companhia, pois ela parecia cada vez mais definhada. Júlio me deixou na casa do meu primo e ficou de me buscar mais tarde, assim que saísse da clínica. 

          Sentada em uma cadeira ao lado da cama de Judite, comecei a ler o livro de poesias "A verdade nos seres", de Daniel Marchi, autor que até então desconhecia. Lembro-me de vê-la emocionada, ao ponto de marejar aqueles olhos tão tristonhos. A inveja, até então entranhada em meu ser, se transformou em compaixão pela esposa de meu primo. 

          Em determinado momento, levantei e fui até a cozinha pegar um pouco de água, quando percebi a porta se abrindo. Era Orlando, que me sorriu aquele sorriso que há muito eu havia esquecido. Ele se aproximou para me cumprimentar e, não sei o que me deu, eu o abracei e comecei a chorar. Orlando me fitou e, antes que pudesse me perguntar o motivo daquele choro, aproximei meu rosto do seu e nos beijamos ardentemente. 

          Meu ímpeto era largar tudo e cair nos braços do meu primo. Falei que poderíamos voltar a ficar juntos, mas ele disse que não poderia abandonar a esposa, ainda mais com ela praticamente inválida. Apesar de tamanho comprometimento com o matrimônio, Orlando não resistiu ao apelo do coração. Passamos, a partir daquele dia, a ter momentos só nossos, quando tentávamos recuperar tantos desejos reprimidos por décadas. 

          Não sei se meu marido desconfiou de algo, até porque há tempos vivíamos praticamente como colegas de quarto. Discreto como sempre foi, nunca me tratou de modo diferente. Sempre foi muito gentil e atencioso, além de ótima companhia. Nosso casamento, que começou como uma brincadeira naquele ônibus, provavelmente duraria mais uma década ou duas, caso o infarto não o tivesse pegado à traição. 

          Orlando veio me consolar e disse que, se eu precisasse de qualquer coisa, ele estaria sempre perto. Judite não pode vir, pois está cada dia pior. Os médicos já a desacreditaram e, talvez, não chegue ao próximo Natal. Isso me entristece muito. Digo isso de coração, acredite. Você pode até pensar que não estou sendo sincera, pois seria a oportunidade para viver livremente o amor que sinto por meu primo. Porém, gosto das coisas como estão.

          Edmar, filho mais novo do meu primo, também está aqui no velório. É incrível a semelhança com o pai. Minha filha também parece perceber, tanto é que não consegue tirar os olhos sobre o homem. Em vez de beliscão, seguro a mão de Maria Clara. Tenho certeza, mães sentem as coisas no ar. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Memórias de uma senhora entre dois amores" foi publicado por Notibras no dia 3/10/2024.
  • https://www.notibras.com/site/paixao-de-mae-corre-no-sangue-da-primogenita/

O informante

          

           Já faz um bom tempo que publico diariamente contos e crônicas no Notibras. Por isso, chega um momento em que as ideias para histórias vão se escasseando. Daí, uso uma artimanha que, talvez, outros escritores também utilizem: a crucial figura do informante. 

          Pois é, tenho cá as minhas fontes, algumas secretíssimas, guardadas a sete chaves; outras, nem tanto. Aliás, talvez o meu informante mais preocupado com o sigilo seja o Boca. Vamos chamá-lo assim, já que, como ele mesmo gosta de falar: "Edu, o anonimato é a melhor coisa que existe!"

          Frequentador de ambientes extremamente prolíferos de acontecimentos quase inverossímeis, caso não fossem todos verdadeiros e que poderiam até sair dos lábios do Papa Francisco, o meu amigo sempre me traz algo que viu ou ouviu na banca do Guima ou, então, na famosa oficina do Leopoldo. Quanto à minha parte, faço questão de não dar pistas de que as histórias se passaram nesses recintos. 

          O que eu não havia percebido é que o Boca é um excelente personagem para as minhas crônicas. Pense você em um sujeito que poderia muito bem sair das páginas daqueles mistérios desvendados pelo Sherlock Holmes. Não! Também não seria possível colocá-lo ao lado do outro quase tão famoso detetive, Hercule Poirot. 

          Não sei se você é afeito aos antigos filmes da Atlântida, quando os impagáveis Grande Otelo e Oscarito provocavam gargalhadas nos cinemas brasileiros. Pois bem, o Boca é uma figura que poderia ficar no meio do caminho entre os saudosos Wilson Grey e José Lewgoy, dois dos maiores atores daqueles idos. É que o meu informante insiste em cultivar um bigode singular, possui aquele olhar de peixe morto, além da voz arrastada para provocar suspense, mesmo quando me revela as coisas mais banais. 

        O Boca, aliás, trabalha como representante comercial de cosméticos. No entanto, gosta de ostentar aqueles óculos escuros e sempre caminha desconfiado de que está sendo seguido. Talvez ele se imagine em um filme de James Bond, mas sem aquela presença do Sean Connery ou o glamour do Roger Moore. 

        A minha fonte é um tipo comum, mas com a imaginação de Alice, aquela mesma de um certo país repleto de maravilhas. Aliás, nem sei por qual motivo me deu vontade de escrever sobre o meu amigo. Talvez seja porque acabei de ler o romance "A fonte", do escritor e jornalista José Seabra.

  • Nota de esclarecimento: A crônica "O informante" foi publicada por Notibras no dia 3/10/2024.
  • https://www.notibras.com/site/fonte-quando-e-boa-serve-para-reporter-e-cronista/

quarta-feira, 2 de outubro de 2024

Don Quilate e que canta

          Don Quilate Brinca Comigo. Pois é esse o nome desse rapazola de cara achatada e com o coração repleto de alegria. Tanto é que o Quiqui, como é carinhosamente chamado pela galera que convive com esse simpático buldogue, não perde a chance de enchê-lo de carinhos, beijos, apertos e afagos. 

          — Morde?

          — Não, mas canta. Serve?

          Geralmente, as pessoas que ouvem a Paula Aragão falar isso não acreditam. E desde quando cachorro canta? Ah, só deve estar de brincadeira! Que nada! O Quiqui não só canta, como também encanta quando resolve soltar a voz. Desse modo, até os mais incrédulos passam a acreditar que esse menino com jeitão de cachorro tem tudo para despontar nas paradas de sucesso. 

          — Quiqui, me dê um dó.

          — Aaauuu!

          — Agora um lá.

          — Aaaaaauuuuu!

          — Que tal um mi?

          — Aaaaauuuuuuuuu!

          Mas nem só de cantorias é a vida desse menino nascido no dia 23 de julho de 2013 em Brasília. É que ele herdou as maluquices da mãe, a saudosa Molly. E, apesar dos atuais 11 anos, o Quiqui ainda gosta de dar as suas corridinhas ao lado da Paula. 

          Apesar de tanta energia, tem hora que as pilhas alcalinas do mais serelepe buldogue precisam ser trocadas. Nada melhor, então, do que tirar aquela soneca no confortável sofá da sala. Mas não se enganem com essa carinha de sono, pois, não tarda, lá vai o Quiqui aprontar mais uma, ainda mais de degustar algo inusitado para o paladar canino: pequi.

  • Nota de esclarecimento: A crônica "Don Quilate e que canta" foi publicada por Notibras no dia 2/10/2024.
  • https://www.notibras.com/site/don-quilate-canta-e-encanta-quando-sai-a-passeio/

terça-feira, 1 de outubro de 2024

As afronesias de Lourdes Maria

   

          Lourdes Maria bem que poderia levar a vida na maciota. Aposentada que era, casa própria e filhos criados, não teria dificuldade de passar uma boa temporada no litoral, mas gostava de dizer aos quatro ventos que não trocava Sobradinho-DF nem pelas praias mornas do Nordeste. Por isso, nem vale a pena entrar no mérito, já que gosto é gosto, bem como é loucura bater de frente com a insanidade de certas pessoas. 

          Cada um com suas afronesias, como gostava de dizer a Martinha, amiga de longa data da Lourdes Maria. Aliás, pois foi justamente ela que presenciou um momento de desatenção da tresloucada, que foi até o posto da equina abastecer o Corcel, que não era do Raul Seixas, apesar de também ter sido fabricado no longínquo ano de 1973.

          Pois lá estava a Lourdes Maria ao volante, enquanto o frentista abastecia o carango. A mulher pensava nas mil coisas que precisava fazer ainda naquela manhã, quando o homem lhe devolveu as chaves do veículo. Distraída como ela só, a mulher deu partida e, em seguida, saiu sem pagar. 

          O frentista, atônito, ficou ali parado por um tempo, até que viu o automóvel pegar a pista e, logo adiante, parar em frente ao supermercado, justamente onde a caloteira entrou no momento seguinte. O homem não teve dúvida e foi até lá, onde teve um bate-boca daqueles com Lourdes Maria, que tentou a todo custo se desculpar pela distração. 

          — Senhor, a minha vida é uma correria só! 

          — E eu com isso? O que não pode é abastecer e sair sem pagar.

          — Pois quanto lhe devo?

          — Duzentos e cinquenta e quatro reais e oitenta e dois centavos.

          — Pois pode cobrar duzentos e cinquenta. 

          O sujeito passou o cartão da Lourdes Maria na maquininha. Imprimiu a via da cliente e a entregou. Depois saiu sem se despedir.

          Bem, tudo parecia resolvido. Entretanto, se dizem que o mundo é pequeno, Sobradinho é um ovo. Tanto é que, quase dois meses após aquele imbróglio, Lourdes Maria estava em uma festa de aniversário na casa da Salete, amiga de longa data. Pois, entre os convidados, lá se encontrava o tal frentista, que se chamava Roberval. 

          Lourdes Maria, assim que bateu o olho no gajo, torceu a boca, como se ainda ressentida pela falta educação do homem. Mas nada que a sapiência de uma outra convidada, justamente a Martinha, para colocar panos quentes na situação. Não se sabe como, mas ela percebeu que aqueles dois poderiam formar um belo casal. 

          — Tá maluca, Martinha?

          — Lourdes Maria, conheço o Roberval há tempos. Ele é um cara muito divertido.

          — Divertido? Pois ele é um troglodita!

          — Que nada, mulher! Sem falar que ele é um tipão. 

          — Tipão? Ah, me poupe!

          Apesar das reticências, lá pelo meio da festa, Lourdes Maria acabou se sentando à mesa do Roberval. Não se sabe se foi o efeito do álcool ou, então, pela agradável aparência do sujeito, a mulher começou a olhá-lo de outro jeito. Tanto é que trocaram telefones e, no dia seguinte, foram pegar um cinema. Desde então, a aposentada e o frentista sempre são vistos andando de mãos dadas pelas ruas de Sobradinho. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "As afronesias de Lourdes Maria" foi publicado no Notibras no dia 1º/10/2024. 
  • https://www.notibras.com/site/afronesias-de-lourdes-maria-acaba-em-namoro-firme-em-sobradinho/