terça-feira, 17 de setembro de 2024

Lembranças do Natal de 1962

 

        Desde que minha avó materna se foi, nunca mais os Natais foram os mesmos. Ela era a matriarca da família e, do alto de tamanha e doce autoridade, fazia-nos rumar para a farta ceia, sempre posta na enorme mesa de madeira na sala de jantar. É engraçado falar assim, pois hoje moro em um mísero apartamento, onde mal cabe uma mesa para dois lugares na cozinha minúscula. Quanto à sala, além do sofá puído, dorme uma televisão pregada na parede.

          De todos os Natais que passei na casa da minha avó, o primeiro que me recordo foi em 1962, quando estava prestes a completar seis anos. Sei porque passei a noite inteira envergonhado por conta de uma coisa que, hoje, me parece tão boba. Mas não devemos menosprezar as agruras das crianças, que possuem lá suas aflições.

          Papai estava colocando os presentes no porta-malas do carro, quando me aproximei. Ele sorriu e disse para eu ir chamar mamãe e meus irmãos para não nos atrasarmos para a ceia na casa dos meus avós. No entanto, certamente por curiosidade, quis saber qual daqueles embrulhos era o meu. Meu velho apontou para o maior e, impetuoso que era, quis abri-lo ali mesmo. Meu pai me impediu, mas não antes de eu conseguir rasgar o papel que o cobria.

          Não demorou, todos estávamos dentro do automóvel a caminho da festa de Natal. No entanto, meu pensamento era com aquele rasgo feito no meu presente. Será que alguém iria notá-lo? Que vergonha! Eu, que já não era de falar muito, fiquei mudo durante todo o trajeto.

          Assim que papai estacionou, fomos recebidos pelos familiares. Beijos, abraços, que até hoje não me recordo, pois não conseguia tirar da mente aquele meu imprudente ato. Por que eu havia feito aquilo? De tão envergonhado, imaginei que todos ali lançavam olhares inquisidores sobre mim. Para piorar, o meu presente, o maior de todos, foi colocado em posição de destaque debaixo da enorme árvore de Natal. 

          Enquanto meus irmãos e primos ansiavam pela chegada da meia-noite, eu me esgueirava pelos cantos, como querendo que aquele pesadelo acabasse o mais rápido possível. Para piorar, aquele que seria o meu presente parecia me encarar como se querendo dizer: "Lúcio, você deveria ter vergonha do que fez. Olha como todos os outros presentes estão embrulhados. Só o seu que está com esse rasgo. Que vergonha!"

          E lá estava eu repleto de culpa quando vovó anunciou que o tão esperado momento havia chegado. Foi uma correria para debaixo da árvore. Em minutos, todos os embrulhos foram abertos, menos o meu, que continuava ali imóvel me encarando. Foi preciso minha mãe me cutucar e perguntar onde estava o meu presente. Abaixei os olhos e chorei. Minha avó percebeu e se aproximou.

          — O que foi, Lúcio?

          — Eu rasguei o papel do meu presente.

          — E daí, meu amor? O que importa não é o pacote, mas o que está dentro.

          Levei décadas para entender as palavras da minha avó. Ela era tão sábia. Entretanto, o rasgo naquele papel colorido, vez ou outra, ainda é algo que me perturba.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Lembranças do Natal de 1962" foi publicado por Notibras no dia 17/9/2024.
  • https://www.notibras.com/site/lembrancas-doloridas-de-um-longinquo-natal/

segunda-feira, 16 de setembro de 2024

A memorável vida que nunca tive

    

                Desde menino rodo a minha Salvador numa página do tempo, como se dono do meu destino. Ledo engano, ainda mais que estou no epílogo da vida. Será que estou lendo o último parágrafo? Ou será que já comecei o dia na derradeira linha, que fatalmente terminará com o ponto final?

          Tenho pensado muito numa época que minha avó me contava histórias da sua infância. De tão distante, creio que o mais apropriado seria usar era e não época. Seja como for, ainda me lembro de duvidar de vovó, como se ela sempre tivesse sido velha. Na verdade, naqueles idos, ela era bem mais nova do que sou hoje. E eis que estou com aquela vontade de colocar todas essas memórias no papel, mas me falta talento ou, então, medo de perceber que a minha existência foi medíocre. 

          Nunca me casei. Apesar da minha aparência pouco agradável, não me faltaram pretendentes, a maioria mais digna do que o meu insignificante ser. No entanto, é lógico que me envolvi com algumas mulheres, mas, quando a felicidade começava a querer se instalar, algo me repelia. Como sempre fui um covarde, inventava alguma coisa para instigar a então amada a me dar um fora. 

          E se não quis me casar, também jamais tive vontade de ter filhos. Provavelmente por opção ou falta de coragem de dividir meu tempo com alguém que precisaria depender de mim por muitos anos. E não me venha com críticas a respeito disso, pois até hoje não sou autossuficiente para atender às mais básicas necessidades. Imagine se eu tivesse que me preocupar com as de outro alguém. Nem cachorro quis ter, apesar de sempre considerar essa hipótese, que nunca foi além de impulsos logo contidos pela razão. 

          Também nunca plantei uma árvore além daqueles feijões depositados em chumaço de algodão embebido em água na escola. E nem mesmo uma mísera daquelas sementes germinou, como se já prevendo meu destino infrutífero. Por conta disso, sempre imaginei que feijão possui cérebro ou algo que o valha, pois impediram que aquele garoto cometesse o desatino de querer formar uma família. 

          Mas e um livro? Ando com essa irresistível vontade de escrever um, desde que não me cause tédio. Todavia, para não provocar fastio, eu precisaria fugir da minha desinteressante existência. E mentirei descaradamente para o leitor se deliciar, se surpreender e, o mais importante, sentir aquela retumbante inveja da magnífica vida que levei. 

          Pelas batalhas vencidas, serei comparado a Napoleão; pelas conquistas amorosas, nem Don Juan será páreo. Destemido que fui, serei assunto nas rodas de conversas de gente que nunca vi. Miserável que fui em vida, serei celebrado pelas memórias que estarão eternamente impregnadas nas páginas que escreverei. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "A memorável vida que nunca tive" foi publicado por Notibras no dia 16/9/2024.
  • https://www.notibras.com/site/velho-saudosista-marca-em-livro-vida-que-nunca-teve/

Mais enrolado do que briga de polvo

    

Almir era sujeito faceiro, garboso até dizer chega, mas tinha lá seus defeitos. O mais flagrante era que o cabra, quando queria, podia ser mais enrolado do que briga de polvo. Se dizia uma coisa, facilmente desdizia o que disse ou, pior, assumiria que jamais teria dito. E assim levava a vida, como se todos devessem acreditar em tanta armação. 

    Não se pode afirmar, entretanto, que Almir estivesse de todo errado quando o assunto era o desgosto por trabalhar. Afinal, quem, em sã consciência, o faz por prazer? Mas ele não havia nascido milionário nem mesmo poderia ser considerado pertencente à tão almejada classe média alta. Era, no máximo, média medíocre e olhe lá. Por isso, fazia-se necessário labutar para conquistar o quinhão que lhe fizesse manter a despensa abastecida com o suficiente, para caso de, valha-me Deus, fosse demitido. 

    Como o leite das crianças precisava ficar garantido por, ao menos, um mês, o homem até que tentava se esforçar, mas a sua natureza, nem sempre, colaborava. Que a culpa caísse, portanto, sobre ela! Ainda mais porque o acontecido caiu logo numa segunda-feira, cuja terça seguinte nem era feriado.

    Antônio, patrão do Almir, já estava mais angustiado do que piolho em cabeça de careca, cuspia marimbondos e lacraias por mais aquele atraso do funcionário. Cadê aquele maldito? Onde será que se meteu o pilantra? Só falta chegar aqui no final do expediente com aquela cara lavada para dar a desculpa mais estapafúrdia. 

    De tão nervoso, Antônio telefonou dezenas de vezes pro Almir, mas só ouvia a mensagem de que o celular estava desligado ou fora de área. Fora de área ficaria o salafrário, ou melhor, a vontade do patrão era dar uma bicuda no traseiro do subordinado para que ele nunca mais aparecesse. Tentou até se acalmar, mas trocou o chá pelo cafezinho, o que o fez ficar ainda mais transtornado.

    Quase duas da tarde, lá foi o patrão tocar a campainha da residência do Antônio. Tocou, tocou, tocou! Mas nada! Será que ele havia saído? Esmurrou a porta, até que, finalmente, surgiu o gajo, com remela nos olhos de tanto dormir. 

    — Seu Antônio, acredita que até agora estou procurando as chaves do carro? 

    — Ah, é? E faz quanto tempo que você acordou agora?

  • Nota de esclarecimento: O conto "Mais enrolado do que briga de polvo" foi publicado por Notibras no dia 16/9/2024.
  • https://www.notibras.com/site/almir-enrolado-como-briga-de-polvo-tem-emprego-ameacado/

domingo, 15 de setembro de 2024

Inocente, mas nem tanto

            Yasmin, no alto dos seus quase 12 anos, que seriam completados dali a uma semana, parecia respirar sapiência quando lançava aquele olhar arguto. Salete, a mãe, sabia que, apesar da capacidade perceptiva da filha, ela ainda era uma criança. Tanto é que procurava segurar a língua para não falar além do necessário.

          É verdade que Yasmin já sabia de cor uma penca de palavrões, a maioria aprendida assistindo aos embates da genitora nas reuniões com as amigas da igreja. Religiosa que era, Salete já havia perdido as esperanças de tornar o próprio vocabulário mais limpo. Não por acaso, o povo costumava falar que o seu corpo podia pertencer ao Senhor, mas a língua certamente era do próprio Capeta. 

          Apesar de tantas palavras feias, Salete se viu em uma encruzilhada. É que uma das primas, a Lorena, largou o marido e fugiu com outro. Aliás, não fugiu por fugir, como se o problema fosse apenas a traição. Essa parte é até irrelevante, tamanho o número de casos de trocas de maridos e esposas na família. O caso era outro.

      Salete, tentando proteger a pequena Yasmin de algo que pudesse abalá-la psicologicamente, não deixava que essa conversa chegasse aos ouvidos da filha. Mas eis que no domingo, justamente após o pastor liberar os fiéis, juntou-se aquele mundaréu de gente ao redor da Salete, que estava acompanhada da filha e do marido.

          — Salete, minha amiga, cadê a Lorena que nunca mais deu as caras?

          — Viajou.

          — Viajou ou fugiu?

          — Gilda, por favor, em nome de Jesus, vamos mudar de assunto.

          — Mamãe, o que aconteceu com a Lorena?

          — Yasmin, minha filha, ela foi viajar. 

          — Ih, Salete, mentindo para a criança?

          — Gilda, vá cuidar da sua vida, e me deixa cuidar da minha filha.

          — Salete, se você não quer contar, eu conto. Olha, Yasmin, a Lorena fugiu porque se juntou com um cara que matou um homem e está foragido. É isso! Pronto! Contei!

          Salete, com fogo nos olhos, já queria partir para cima da Gilda. No entanto, a pequena Yasmin, na maior naturalidade, parece que conseguiu apaziguar a situação.

          — Ah, é isso? Pensei que fosse algo cabuloso.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Inocente, mas nem tanto" foi publicado por Notibras no dia 15/9/2024.
  • https://www.notibras.com/site/yasmin-sabe-diferenciar-traicao-de-fuga-cabulosa/

sábado, 14 de setembro de 2024

Entre galinhas e corujas

Quando menino, imaginava que a noite era dos adultos. Por isso, não estranhava quando meus irmãos mais velhos iam dormir mais tarde, enquanto o sono sempre me pegava antes das 20h.  O tempo passou e meus vinte e poucos anos me pegaram de surpresa. Pois é, eu havia me tornado adulto e cheio de responsabilidades.

          Meus amigos, animados para esticar as horas após mais um dia de trabalho, quase sempre conseguiam me arrastar para um bar. Quando me dava conta da situação, o desânimo e o sono invadia todo o meu ser. Era um martírio manter os olhos abertos, enquanto aquele turbilhão de vozes ecoava pelo ambiente. Afinal, o que eu estava fazendo naquele lugar? E bastava a simples menção de que eu iria embora para que um dos meus colegas gritasse para o garçom: "Chefe, mais uma rodada! E sem colarinho!"

          Com o acúmulo de noites em claro, percebi que aquela tentativa de me enturmar com os notívagos era algo incompatível com o meu relógio biológico. E foi justamente numa sexta-feira, início de mês, quando todos estávamos com dinheiro na conta, a mesa do bar lotada de tulipas, tira-gostos diversos, que, sem avisar, resolvi me levantar e rumar para o único local que, àquela hora da quase madrugada, desejava estar: minha cama.

          Lembro-me dos apelos do Paulo e do Julião, que não entendiam como é que eu poderia ir embora, justamente quando o Rômulo, nosso chefe, começava mais um dos seus embriagados discursos. Ademais, a Rúbia, a colega mais desejada do ambiente, parecia arrastar asa para mim. Mal sabiam que ela estava tão interessada em mim quanto uma onça por uma salada de alface e tomate. Como sei disso? Bem, a própria Rúbia me confidenciou que, após algumas desilusões amorosas, andava de caso com seu vizinho de porta, no prédio para onde havia se mudado há pouco.

          Não quero me prolongar nesse romance da minha amiga. No entanto, vale aqui mencionar que o gajo era recém-casado e que, após alguns meses de luxúria, a coisa esfriou. Cada um foi para o seu lado e, até onde sei, a esposa do amante não descobriu a traição.

          Mas como disse, logo que me levantei, cumprimentei os presentes com um leve movimento de cabeça e saí. Enquanto me afastava, minha mente foi se sentindo mais aliviada com o barulho diminuindo até que, ao entrar no carro, o murmurinho se tornou música na voz do Gil: "Vamos fugir deste lugar, baby..."

          Desde aquele longínquo dia no bar, nunca mais me deixei levar pelos convites, por mais insistentes que fossem, dos meus amigos. Eles sabem que sou esquisito, que não gosto de trocar a noite pelo dia. Durmo com as galinhas, enquanto eles passam as noites com as corujas. No entanto, parece que eles perceberam algo naquela última noite, que, até há pouco, não havia sido captado pelo meu radar. É que estou aqui na cozinha preparando o café da manhã para a Rúbia, que ainda adormece sob os lençóis da cama no quarto ao lado.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Entre galinhas e corujas" foi publicado por Notibras no dia 14/9/2024.
  • https://www.notibras.com/site/chope-pra-distrair-de-diniz-sai-de-cena-e-entra-vamos-fugir-baby-de-gil/

sexta-feira, 13 de setembro de 2024

Casa de Família

   

        Risoleta era famosa por ser mulher de negócio. Mas não pense você que era qualquer mercancia. Não mesmo! Era algo que mexia com os desejos e luxúrias de toda aquela cidade no sertão nordestino, envolvendo desde o mais simplório dos cidadãos até o de maiores posses. 

          Casa de Família. Pois é, era esse o nome do comércio da senhora Risoleta. Nome mais apropriado não havia, apesar de certas línguas ferinas contestarem o lema do estabelecimento: "O prazer do cliente acima de tudo". 

          Entre os insatisfeitos, encontrava-se dona Neusa, esposa do seu Viriato. Este, apesar de já passado dos 80 anos, era dos mais assíduos frequentadores do afamado lupanar. Não era por acaso que a mulher andava possessa com a Risoleta. Por conta disso, dona Neusa, naquela manhã de domingo, resolveu ter uma conversa de mulher para mulher com a dona da Casa de Família.

          A esposa do seu Viriato, já com o pé na calçada, avistou a alcoviteira caminhando para a igreja. Isso mesmo! Para a igreja. E não é que a proxeneta teve a audácia de entrar no recinto religioso? Pois é, disparate maior não podia!

          Dona Neusa, tomada de fúria justa, foi ao encalço da cafetina, que, sem qualquer pudor, estava sentada justamente no banco em frente ao padre. Que atrevimento! Obviamente que dona Neusa, católica fervorosa que era, não poderia fazer um escândalo bem ali na casa do Senhor. 

          Missa de domingo é longa e aquela pareceu durar uma eternidade. No entanto, assim que o padre encerrou a palavra, o público foi saindo aos poucos. Todavia, Risoleta foi dar um dedo de prosa com o pároco, certamente em busca de redenção de tantos pecados. Conversa vai, conversa vem, a mulher beijou a mão do religioso e, já do lado de fora da igreja, foi abordada por uma impaciente dona Neusa.

          — Preciso conversar com a senhora.

          — Comigo?

          — Sim! Com a senhora!

          — E quem é você?

          — Sou a esposa do Viriato.

          — Viriato? E quem é esse Viriato, mulher?

          Dona Neusa sacou da bolsa uma fotografia do marido e a mostrou para Risoleta.

          — Ah, o Vivi.

          — Vivi?

          — Sim. Ele é o mais querido mingau de aveia que frequenta o meu estabelecimento.

          — Mingau de aveia? 

          — Sim. É que dividimos nossos clientes entre mingau de aveia e mucilon.

          — Que história é essa? 

          — Mucilon é como chamamos os novinhos, os mais impetuosos. Mingau de aveia é um jeito carinhoso de nos referirmos aos velhinhos que já aposentaram o amigo. Então, a senhora pode ficar tranquila, pois o seu marido só vai ao meu estabelecimento para conversar e tomar um drink com as minhas garotas. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Casa de Família" foi publicado por Notibras no dia 13/9/2024.
  • https://www.notibras.com/site/vivi-com-o-cabo-morto-vira-mingau-na-casa-de-risoleta/

Breves prazeres

          

           Não preciso florear os meus longínquos tempos de menina, mas também não desejo expor todos os podres que presenciei ao longo dos anos que se seguiram. Que fiquem guardados em algum canto ou mesmo debaixo do tapete. E, caso a curiosidade se abata sobre alguém, que vá remexer por sua conta e risco o que todos fingimos ter esquecido. Afinal, as aparências, não raro, se fazem providenciais em um mundo repleto de culpas.

          Papai nunca me falava isso é errado ou certo. Ele gostava de contar histórias e, no final, deixava-nos tirar nossas próprias conclusões. Juliano, meu irmão, tagarelava ideias, enquanto eu preferia ir até o quintal, onde me deitava no chão ao pé da pitangueira imaginando coisas. De vez em quando, floreava, mas certas conjunturas me mostraram que a vida pode ser dura e, geralmente, é o que temos.

          Com minha mãe, aprendi a degustar as amarguras da vida. Pode parecer estranho aos que imaginam que os momentos a serem lembrados devam ser os felizes. Discordo. Se fosse assim, o que teríamos para lembrar? A bicicleta que ganhamos no Natal? O primeiro beijo na boca? Prefiro recordar o dissabor do pote de sorvete carregado de lágrimas após qualquer uma das tantas desilusões amorosas. 

          Juliano, assim como todos os homens que conheço, é fraco. Não consegue entender como é que consigo enxergar o mundo de maneira tão pessimista. Na verdade, meu pobre irmão desconhece que as pessoas nunca estão verdadeiramente felizes. Somos meros animais permanentemente insatisfeitos em busca de prazeres efêmeros. 

          — Isabel, por que você é tão pessimista?

          — Juliano, meu querido e amado irmão, aprenda uma coisa.

          — O quê, minha irmã?

          — Tirando o Elvis, todos nós já nascemos fadados a morrer.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Breves prazeres" foi publicado por Notibras no dia 13/9/2024.
  • https://www.notibras.com/site/isabel-realista-indica-que-estamos-fadados-a-morrer/

quinta-feira, 12 de setembro de 2024

Falta de tato

    

            Não que fosse tão chato. Bem, a palavra adequada não é essa, assim como também não seria cricri. Talvez, usando a vastidão do vernáculo, cheio de dedos seja o que temos para os paladares mais requintados ou, então, o corriqueiro arroz e feijão.

          Lourdes Maria, mulher de família tradicional. Melhor! Era também abastada e poliglota e, talvez por conta de tantos predicativos, não possuía muita paciência com essa gente sem tempo para os livros. E não era sua culpa se a pobreza atingisse esse povo. Seja como for, vez ou outra, a madame se deparava com um desses habitantes sem classe, como aconteceu por esses dias, justamente na quitanda do seu Gomes. 

          — Sabe qual é o seu pobrema?

          — Problema, meu amigo!

          — Ué, já tamo assim de amizade?

          — Prossiga, que meu dia é longo.

          — Num sabia que dia de rico tinha mais que 24 horas.

          — Milhões de compromissos. Não posso perder meu tempo com tolices. Vou-me, antes que a agressão vá além do acinte contra o dicionário.

          — Dona Lourdes Maria, pelo visto, a senhora não tá perparada pra vida.

          — Hum, pois, sim! Eu é que não estou pre-pa-ra-da? Pois me parece que é justamente o senhor o desprevenido.

          — Como mamãe sempre dizeu lá em casa, a vida é uma sopa, mas tem gente que só sabe usar galfo. E se ela dizeu isso, eu também dizo e tenho dizido! 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Falta de tato" foi publicado por Notibras no dia 12/9/2024.
  • https://www.notibras.com/site/lourdes-maria-impaciente-se-coca-ao-ouvir-muitas-razoes-do-seu-pobrema/

quarta-feira, 11 de setembro de 2024

Martinha, a colorada de última hora

          Martinha, maranhense de Caxias, aos 18 rumou para a grande São Paulo, não tanto por necessidade, foi para acompanhar o irmão. Na metrópole, acabou por ser empurrada pelos companheiros de labuta a torcer para o Corinthians. No entanto, não se interessava por futebol, até que, por um desses acasos da vida, foi convidada para assistir à comentadíssima estreia do Sócrates pelo Timão. 

      Na falta de melhores amores, namorou em preto e branco por pouco mais de uma década. Sem arroubos de felicidade, resolveu buscar novos horizontes. Talvez o litoral, pensou. Talvez. Pois bem, foi o que Martinha decidiu numa tarde típica, quando a garoa chorava as lágrimas dos solitários de Sampa. 

      A mulher, poucos dias antes de completar 30, se mudou para o Rio de Janeiro, onde começou a namorar o Valdir, um fanático torcedor do Vasco da Gama. Não tardou, já estava de casório marcado. Não que tivesse que correr antes da barriga despontar, haja vista ter tomado todos os cuidados severamente aprendidos com a mãe. Era por pura vontade de formar a própria família, cheia de crianças correndo pelo quintal da casa no subúrbio carioca. 

      Aos 32, Martinha deu à luz pela primeira vez. Uma menina, que ganhou o nome de Salete. Dois anos após, veio um menino, que recebeu o mesmo nome do pai. Mais dois anos, nasceu a pequena Doroteia, cujo parto complicado veio acompanhado da infertilidade da mulher. Nada mais de enjoos por conta de gravidez. Com o dinheiro curto, até que Martinha se sentiu mais que satisfeita com a prole. Estava de bom tamanho. 

      Salete e o irmão, influenciados pelo entusiasmo do pai, logo se viram cruz-maltinos. Quanto à pequena Doroteia, numa noite sombria de relâmpagos e trovões, decidiu ser torcedora do Botafogo. Pois é, talvez, a caçula fosse dessas que encontram felicidade no sofrimento. Seja como for, dos pais aos filhos, todos viviam uma vida em preto e branco.

    O tempo correu ligeiro. Martinha, quase setentona, sentada na varanda, buscou recordações dos filhos, agora todos crescidos, cada qual no seu canto. Rosto firme, tentou recolher uma lágrima que já se encontrava à beira dos lábios. Não queria que o marido percebesse tamanha tristeza. Dissimulado, o homem fingiu que nada notara, ao mesmo tempo em que lhe lançou uma proposta: "Quer conhecer Porto Alegre?"

       Não foi no mesmo dia nem na semana seguinte, mas não passou de mês. Tomaram um leito para a capital gaúcha numa noite sem estrelas. O casal, talvez por conta da aventura, se viu enamorado novamente e, caso não fosse pelo local impróprio, certamente avançaria todos os sinais durante a viagem. Todavia, promessas não faltaram. 

       O ônibus, finalmente, chegou à rodoviária de Porto Alegre. Exaustos, Martinha e Valdir só pensavam em descansar os corpos castigados pela longa viagem. Pegaram um táxi e rumaram para o hotel. Apesar de longe de casa, dormiram o sono dos justos naquela cama estranha. 

        A mulher foi a primeira a se levantar no dia seguinte. A princípio, estranhou o lugar, até que a ficha caiu e ela se lembrou de que estava em outra cidade. Curiosa, ela foi até a janela, abriu as cortinas e se deparou com um estádio de futebol bem ao fundo. Percebendo que o marido havia despertado, ela o questionou. 

       — Valdir, o que é aquilo lá?

       — Ah, é o Beira-Rio.

       — Beira o quê?

       — Beira-Rio, o estádio do Internacional.

       — Quero conhecer!

      Os dois velhos tomaram um belo café da manhã. Em seguida, Valdir chamou um táxi e foi realizar o desejo da amada. Não demorou, o casal desembarcou diante daquela construção enorme. Passaram pela estátua do Fernandão e rumaram para o museu do Inter. 

     O homem, vascaíno que era desde criança, ainda tentou ser indiferente à grandeza do time vermelho e branco. Não conseguiu, ainda mais depois que descobriu que um dos grandes ídolos da história do Inter havia sido o Tesourinha, que também teve passagem gloriosa pelo Vasco. Quanto à Martinha, até onde se sabe, deixou para trás aquela vida em preto e branco e, desde então, só enxerga Colorado.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Martinha, a colorada de última hora" foi publicado por Notibras no dia 11/9/2024.
  • https://www.notibras.com/site/conheca-martinha-a-colorada-de-ultima-hora/

Amigos díspares

    

          Creio que todos possuem aquele amigo covarde, que prefere dar uma boiada para não entrar numa briga e, ao contrário daquela frase popular, também oferece outra boiada para sair de qualquer pendenga. Pois bem, no meu caso, o inimigo da coragem sou eu. Afinal, para que arrumar confusão, se a vida sem hematomas é tão mais prazerosa?

          Meu amigo Júlio é uma figura interessante. Ele, ao contrário de mim, é metido com essas coisas de artes marciais, enquanto sou afeito a esportes mais lúdicos como, por exemplo, adedanha. E, apesar dos gostos tão discrepantes, somos amigos desde os remotos tempos de criança, quando brincávamos no balanço ou na gangorra do parque no final da rua. Aliás, a mesma rua onde ainda residimos.

          Após tantos anos de convívio, o Júlio parece que não me conhece muito bem. É que, na semana passada, aconteceu algo conosco. Quer dizer, o lance ocorreu com ele, enquanto eu fui apenas um mero expectador de mais uma insanidade do meu amigo. Pois bem, lá estávamos nós dois no boteco do seu Aurélio, aqui mesmo no bairro, quando o instinto de galo de briga do Júlio não se conteve dentro das penas. 

          Dois trogloditas, desses que parecem que não saem da academia, ao passarem pela nossa mesa, deram aquela encarada. Para piorar a situação, um dos caras ainda esbarrou, certamente sem querer, na cadeira do Júlio, que não gostou. Pra quê? Ele quis porque quis tirar satisfação com aqueles homens muito maiores do que a maioria de nós, meros mortais. 

          Tentei trazer algo que meu amigo parece desconhecer, que é aquela dita cuja da razão. Não adiantou, pois ele tentou me convencer a acompanhá-lo naquela contenda sem qualquer sentido.

          — Vamos lá, cara!

          — Pra quê?

          — Vai deixar barato essa provocação?

          — Olha que o barato pode sair caro.

          — Tu é mesmo um frouxo, Roberto!

          — Não sou frouxo, Júlio. Apenas tenho noção da força que não possuo.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Amigo díspares" foi publicado por Notibras no dia 11/9/2024.
  • https://www.notibras.com/site/julio-brigao-e-contido-pelo-pacificador-roberto/

segunda-feira, 9 de setembro de 2024

O velho, o ipê e o novo amor

    

         Eustáquio, aos 74 anos, percebeu que já havia chegado o dia de guardar o luto pela perda da companheira de uma vida, que partira por conta desses acasos que, não raro, nos tomam por assalto. Há quase dois anos, ao atravessar a avenida mais movimentada da cidade, a velha teve um piripaque e caiu dura. Por sorte, o caminhão que vinha logo ali freou a tempo de não esmagar o frágil corpo da defunta. 

          Bizarrices à parte, o viúvo precisou abraçar a própria sina, já que ninguém o faria por ele. Não que fosse solitário, sem parentes e amigos. Não! Um ou outro gato pingado aparecia de vez em quando para visitá-lo, mas nada que durasse mais do que um par de horas, quando muito. Ademais, Eustáquio, por vontade ou teimosia, cismava em se manter distante da praça, onde os idosos costumavam gastar o pouco tempo que lhes restava em infindáveis partidas de dominó.

          Disposto a não entregar os pontos, abriu as janelas do apartamento sem pilotis na antiga quadra da Asa Sul. Olhou em volta e, então, se deparou com um ipê florido de amarelo. Foi o estopim para empurrar o homem para a rua. Quem sabe, naquele dia, não encontraria algum motivo para continuar respirando o ar seco de Brasília?

          Já na calçada, Eustáquio rumou para a padaria. onde resolveu se sentar numa mesa ao canto. Pediu uma xícara de café e dois pães de queijo. Enquanto aguardava pelas iguarias, notou uma senhora em outra mesa. Tentou puxar pela memória o nome da mulher, mas seu pensamento foi logo interrompido pela garçonete, que lhe serviu.

          Enquanto sorvia o café e mordiscava o pão de queijo, Eustáquio, do nada, se lembrou do nome da conhecida. Veridiana! Sim, um nome incomum por esses tempos repletos de Júlias e Carolinas. Seja como for, o sujeito tratou de se levantar e ir dar um olá para a amiga.

          O cumprimento logo se tornou prosa das boas. Eustáquio pediu mais duas xícaras de café e biscoitos sortidos para degustar com a companhia, que se revelou receptiva. E, por quase dois meses, a padaria se tornou ponto de encontro daqueles dois.

          Viúvos que eram, Veridiana e Eustáquio resolveram tentar a sorte e marcaram de assistir a um filme na tarde de quarta-feira, quando os cinemas são mais vazios. Era o prenúncio de que algo além de café e biscoitos sortidos pudesse vir a acontecer. No entanto, somente o tempo poderia afirmar.

            No dia combinado, Eustáquio, provavelmente inspirado pelas flores do ipê-amarelo que havia visto há algum tempo, resolveu vestir a camisa da seleção brasileira. Bermuda branca com bolsos para todos os lados, tênis e meias soquete e, para completar o visual, os óculos escuros de certa marca italiana. E lá foi o coroa para o prédio da amada, de onde pegariam um táxi até o cinema.

          Veridiana, assim que avistou o quase namorado se aproximando, fez cara de espanto. Eustáquio parece que não percebeu a fisionomia contrariada da mulher, até que aconteceu o seguinte interlúdio.

            — Por favor, Eustáquio! Não vá me dizer que você só tinha essa camisa?

            — Não gostou?

            — Óbvio que não!

            — Ué, por quê?

            — Você está parecendo um ovo estrelado.

  • Nota de esclarecimento: O conto "O velho, o ipê e o novo amor" foi publicado por Notibras no dia 9/9/2024.
  • https://www.notibras.com/site/eustaquio-viuvo-se-veste-de-ipe-e-frustra-amiga-viuva/

domingo, 8 de setembro de 2024

Mentecapto até no sobrenome

     

       Pascácio e Pacóvio, cujo parentesco era nenhum, pareciam gêmeos, tamanha a coincidência do sobrenome que carregavam: Mentecapto. Coincidência ou artimanha do destino, aqueles dois estultos, que, dependendo do ângulo obtuso, poderiam ser facilmente confundidos por néscios, gastavam os ouvidos alheios com bobices sem tamanho. 

          Não se sabe ao certo se Pascácio e Pacóvio eram ineptos por natureza ou, então, a natureza os havia feito ignaros para que os dois tivessem uma sobrevida. Como mamãe sempre disse, sortudos são os tolos que desconhecem a própria tolice. Nem precisam buscar algo que não possuem e, por isso mesmo, são facilmente adestráveis.

          Mas não pense você que Pascácio e Pacóvio não possuíam utilidade. Aqueles dois eram ideais para o sistema se manter firme. Aceitavam tudo sem contestar, pois o mundo sempre fora daquele jeito e, reclamar, só traria problemas.

          O óbvio é óbvio. Deus ajuda quem madruga. Herança é meritocracia. O trabalho engrandece o homem. Pra que dar baculejo em branco, se as estatísticas mostram que só preto é bandido? 

          Senta! Sentou. Deita! Deitou. Rola! Rolou. Morto! Morreu. Deixou saudade.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Mentecapto até no sobrenome" foi publicado por Notibras no dia 8/9/2024.
  • https://www.notibras.com/site/pascacio-e-pacovio-gemeos-apenas-no-sobrenome/