sábado, 31 de agosto de 2024

Lúcia e o namorado da prima


             Um tipo arrancado dos anos 60 do século passado. Alto, esguio, topete obviamente influenciado por certo cantor, apesar das costeletas comportadas, Orlando era o que se pode dizer de colírio para os olhos. Talvez tenha sido essa aparência milimetricamente desalinhada que atraiu a atenção da quase tímida Lúcia. 

        Não que a moça fosse santa, pois, até entre os familiares, já possuía fama de desajustada. Olhar disperso para a maioria dos eventos, Lúcia só parecia enxergar aquilo que era de seu interesse. E foi assim quando viu o chamativo acompanhante da prima, a Dulce, adentrar a sala. Muda e sem papas nas ideias, tratou logo de se sentar defronte ao rapaz na ampla mesa onde foi servido o tradicional estrogonofe com arroz branco da família. 

            Dulce, que não soltava o braço do namorado, não percebeu os leves toques dos pés de Lúcia e Orlando debaixo da mesa. Era nítida a atração que aqueles dois sentiam um pelo outro, o que foi notado por quase todos, a não ser pela traída, que não percebeu o quão canastrão seria seu amado se tentasse carreira no cinema. Quanto à Lúcia, apesar do parceiro de cena sem qualquer talento, certamente mereceria um Oscar, pois sabia como ninguém se fazer de sonsa. 

         O romance começou assim que os olhares se tornaram dispersos. No entanto, o primeiro toque de lábios só aconteceu na penumbra do jardim, quando a noite já havia caído. Rápido, é verdade, mas suficientemente ardente para que aqueles dois tivessem a certeza de que precisariam ir até o fim da linha, pois estavam cientes de que já haviam cruzado a barreira da moral e dos bons costumes. 

         Traições em família não eram novidades. Flertes e até casos extraconjugais aconteciam de tempos em tempos, e todos fingiam não saber, e os segredos eram guardados a sete chaves ou, dependendo da ocasião, rememorados pelos que eram apenas plateia. Todavia, até onde se tem notícia, roubar namorado da prima era algo novo. Por conta disso, Lúcia e Orlando acharam por bem manter o relacionamento longe dos holofotes dos fofoqueiros.

           Os traidores se embrenharam pelos lençóis dos hotéis mais mundanos no centro. Amaram-se durante quase um mês, quando o encanto se quebrou. Lúcia constatou que a aparência de bom amante era apenas fachada. Orlando era, na verdade, um porre na cama.

           O rapaz, sem que Dulce soubesse daquela falta de decoro familiar, reatou os laços com a antiga namorada. Não tardou, os dois se casaram e, no ano seguinte, a barriga da mulher já anunciava um herdeiro. E, segundo se conta à boca pequena, Orlando e Dulce formam um casal perfeito. Morno, mas perfeito.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Lúcia e o namorado da prima" foi publicado por Notibras no dia 31/8/2024.
  • https://www.notibras.com/site/lucia-e-o-namorado-da-prima-um-porre-na-cama/

sexta-feira, 30 de agosto de 2024

Carta ao amigo


Rio, 20 de março de 2024.

Querido Elias

            Poderia começar com desculpas pela demora na resposta da sua carta, mas melhores amigos não precisam dessa hipocrisia. A verdade é que ando exausta e, que nem aquela música do Raul Seixas, esperando a morte chegar. Mas eis que me lembro daqueles idos de 1973, quando ele teria comprado o tal Corcel do ano, e eu larguei o grande amor da minha vida e prossegui para Brasília neste casamento de fachada. 

            De domingo até ontem, fiquei só andando com o Marcos, passeando do hospital pra casa, de casa pro hospital. O intestino dele ficou preso de certa maneira, que precisou fazer uns procedimentos. O médico receitou mais fibras e água e, caso precise, de um laxante. 

            Estou esgotada!  Cansada de tanto andar pelos corredores do hospital. Quanto ao Marcos, ou estava sentado na cadeira de rodas ou fazendo força no vaso. Graças a Deus e aos enemas, o Marcos conseguiu fazer o que ninguém poderia fazer por ele. 

            A velhice chegou, meu amigo. Creio que também deve ter chegado por aí, pois temos praticamente a mesma idade. Afinal, somente dois meses e quatro dias nos separam. O seu aniversário, aliás, é o único que consigo me lembrar. Nem os dos meus filhos, nem o do Marcos, que sempre reclama que foi esquecido. Quanto ao meu, só sei porque você me manda mensagem logo cedo. 

            Quando os filhos são pequenos, parece que a tristeza não tem lugar. Muita coisa para ser pensada, aliás, urgências cheias de prioridades. No entanto, quando eles batem asas pra fora do ninho e vão em busca dos próprios destinos, parece que a melancolia resolve dar as caras.

            Hoje me arrependo de ter ficado tão acomodada. Fui covarde, eu sei. Todavia, agora é tarde ou, talvez, inapropriado tomar a atitude que deveria ter tomado em 1973. Seja como for, sinto que preciso continuar, apesar do cansaço que se abate sobre este meu corpo envelhecido.

            Mas é isso, meu AMIGO ETERNO, estou na área, só que escondidinha. 

            Beijos da sua AMIGA ETERNA,

                                                              Maria Lúcia

  • Nota de esclarecimento: O conto "Carta ao amigo" foi publicado por Notibras no dia 30/8/2024.
  • https://www.notibras.com/site/marilu-escreve-a-elias-e-deixa-incognita-no-ar/

quinta-feira, 29 de agosto de 2024

Robson Achiamé, anarquista e fanático pelo Botafogo

    

Conheci o Robson Achiamé em 2004 através da mãe da minha filha mais velha. Eu, com o original do meu primeiro romance em mãos, "Despido de ilusões"; ele, dono da editora Achiamé e incansável divulgador da cultura libertária. Gostei de cara do sujeito, cuja voz rouca e arrastada me fez lembrar a do ator José Lewgoy.

          — Edu, eu conheço o Lewgoy. É um cara muito interessante e com ótimas ideias. 

          Além do Lewgoy, que eu já era fã desde que assisti à chanchada "Matar ou correr", onde ele fazia o vilão Jesse Gordon, percebi que o Robson era um alucinado torcedor do Botafogo. Mais um motivo para a nossa amizade vingar, seja no sofrimento, seja nos momentos de parcas alegrias. 

          Foi na sede da editora, na Tijuca, que conheci o diagramador e faz tudo José Carlos, o Zé, magro que nem palito. Como o próprio Robson gostava de dizer, prefiro que você, leitora ou leitor, tenha ideia do que era o companheiro de trabalho dele.

          — Edu, esse é o Zé, meu braço-direito, meu braço esquerdo, minhas pernas e todo o resto do corpo.  

          Durante a revisão do texto de "Despido de ilusões", tive o prazer de conhecer um pouco mais sobre o Zé, assim como trocar ideias com o Robson. Aprendi algumas coisas em relação à edição de livros, da luta que é para divulgar uma publicação, dos entraves que o ofício apresenta. No entanto, a despeito de todos esses percalços, um me incomodava demais. É que não queria que meu livro saísse com erros gramaticais. 

          Enquanto o Zé trabalhava com os olhos voltados para o meu original sobre a mesa, o Robson me chamou para tomarmos um café, que, por sinal, estava delicioso. 

          — Muito bom! Você que fez?

          — Não. Meu café é horrível. O Zé é que sabe fazer. 

          Entre um gole e outro, o Robson pousou carinhosamente sua mão sobre meu ombro e começou a falar algo que, até hoje, reconforta meu coração.

          — Edu, se o Zé ficasse ali trabalhando sobre o seu livro durante dez anos, ainda assim sairia com algum erro.

          — Robson, mas vai chegar uma hora que não vai ter mais erros. 

          — Não. Há uma premissa que nunca falha, meu amigo escritor.

          — E qual é?

          — Não se descabele por conta das falhas. Todos os textos possuem artimanhas que, quando impressos, fazem com que os erros saltem aos olhos.

  • Nota de esclarecimento: A crônica "Robson Achiamé, anarquista e fanático pelo Botafogo" foi publicada por Notibras no dia 29/8/2024.
  • https://www.notibras.com/site/robson-achiame-anarquista-e-fanatico-pelo-botafogo/

quarta-feira, 28 de agosto de 2024

Pavio curto

    

          Glória, cujo nome não poderia ser mais glorioso, não era de fazer rodeios quando precisava dizer algo. A mulher, ao que tudo indicava, teria nascido sem freio na língua, pois desde sempre falava o que lhe vinha na telha. Se acaso alguém se sentisse ofendido, problema. Ela nem ligava ou, então, se fazia de desentendida e continuava a vida como se nada tivesse acontecido. 

           Para evitar confrontar a atrevida, as pessoas preferiam fugir da discussão desnecessária. Não dava mesmo para competir com tanta petulância, ainda mais alguns dias antes das regras, que vinham e iam mês a mês. Até a mãe, da qual a mulher havia herdado a completa ausência de paciência, preferia não bater de frente com a filha. 

          Apesar dessa quase perene falta de combatentes à altura, eis que aconteceu logo no ambiente de trabalho. Para ser mais preciso, o fato se deu justamente nas festividades de fim de ano, quando os funcionários resolveram fazer aquela costumeira brincadeira que todos são praticamente obrigados a participar para não receber a indesejável alcunha de chato. 

          Judite, que possuía um cargo logo abaixo do chefe e um tanto acima dos demais, foi a escolhida para passar a lista de presentes que todos queriam receber. Tudo ia bem, até que chegou a vez da Glória preencher o tal rol.

          — Lista de presentes?

          — É.

          — Mas não é amigo-oculto?

          — É.

          — E qual é a graça da pessoa já saber o que vai receber?

          — O chefe falou que assim é melhor, pois evita frustrações.

          — Há, há, há! Que coisa mais ridícula!

          — Glória, por favor, não vá criar caso. Preenche logo a lista.

          — Não vou participar.

          — Por quê? Vai dar uma de inconveniente agora?

          — Inconveniente?

          — É. Você sempre faz questão de ser do contra.

          — Judite, vai ver se tô ali na esquina. Aliás, melhor ir catar coquinho. Ah, e mais uma coisa.

          — O quê?

          — Não amola!

          — Glória, você deveria ser mais respeitosa.

          — Respeitosa? Mulher, eu sou é afrontosa!

  • Nota de esclarecimento: O conto "Pavio curto" foi publicado por Notibras no dia 28/8/2024.
  • https://www.notibras.com/site/gloria-de-pavio-curto-bate-de-cara-doa-a-quem-doer/

terça-feira, 27 de agosto de 2024

Valdinho, o gênio da matemática

    

       Valdinho, filho do seu Valdo, era um menino atento, apesar de, não raro, tirar conclusões não muito acertadas. Todavia, nada além do que acontece nessa fase da vida, tão repleta de imaginação. O problema, dizem os mais sábios, é quando tais enganos permanecem no avançar dos anos, e percebemos adultos preferindo explicações divinas e desacreditam a ciência. 

          Na escola, o menino, depois de receber as primeiras aulas sobre as operações matemáticas, já arriscava até a fazer contas de cabeça. Dona Jurema, a mãe, ficava toda orgulhosa do caçula. Tanto é que a mulher não perdia oportunidade de se vangloriar com as amigas.

          — Valdinho, venha cá, meu filho!

          — Mamãe, a senhora chamou?

          — Chamei, sim. Mostre aqui pra Margarete como você é bom na soma e na subtração.

          Apesar de acanhado, o moleque não errava uma. Se perguntassem quanto era seis mais oito, logo saía quatorze dos lábios do Valdinho. Dezoito menos sete era prontamente respondido pelo gênio dos números.

          — Onze, mamãe!

          — Que rapazinho inteligente você tem, Jurema.

          — Obrigada, amiga.

          Jurema não se continha, tamanha a felicidade de expor as qualidades do rebento, até que ela ouviu a campainha tocar. 

          — Atende pra mamãe, Valdinho.

          E lá foi a criança abrir a porta. Era Alberto, marido da Margarete. Não tardou, o homem se juntou às duas mulheres. Margarete, talvez para agradar a amiga, fez questão de enaltecer o Einstein dos números.

          — Meu bem, você sabia que o Valdinho sabe fazer contas de cabeça?

          — Sério?

          — Pois não estou dizendo? Quer ver?

          — Faço questão!

          — Valdinho, quanto é quinze mais doze?

          — Vinte e sete, dona Margarete.

          — Que mocinho inteligente a senhora tem, dona Jurema.

          — Obrigada!

          Nisso, Alberto foi até o guri e apertou a sua mão.

          — Valdinho, meu rapaz, você é um crânio! Verdadeira pujança!

          O menino, que desconhecia tal palavra, imaginou que o significado fosse outro. Tanto é que, envergonhado, abaixou os olhos, colocou as mãos sobre a barriga e disse quase mudo.

          — Desculpe, seu Alberto, acho que foi por causa da omelete de cebola que comi no almoço.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Valdinho, o gênio da matemática" foi publicado por Notibras no dia 27/8/2024.
  • https://www.notibras.com/site/valdinho-so-erra-quando-mistura-ovos-da-omelete/

segunda-feira, 26 de agosto de 2024

Herança de aventureiro

  

            Apesar de ter sido criado desde as primeiras horas de nascido na capital, lembro-me de um tempo que papai me pegava para rodarmos pelo interior. Não sei se ele fazia isso para me mostrar como é que parte da gente deste país vive ou, então, era apenas para me fazer crer que o leite, a carne, as hortaliças, as frutas e tudo mais que comemos saíam daquele lugar tão distante do asfalto carregado de fumaça e buzinas. 

          Certa feita, meu pai cismou em desbravar o cerrado, que, naquele tempo, estava praticamente intacto, caso não fossem pelas estradas de terra e algumas cercas que dividiam as propriedades. Mamãe nem se atreveu a arrumar as malas, pois sempre foi afeita às benesses que a vida urbana pode proporcionar. Por conta disso, meus dois irmãos mais novos, que mal tinham largado as fraldas, também ficaram naquela vida de apartamento.

          Não sei ao certo quantos quilômetros rodamos até pararmos em um hotel de beira de estrada. Estava frio e papai me cobriu com seu casaco. Não sei por que, mas me senti um homem usando as vestes de um adulto. Na manhã seguinte, tomamos café e prosseguimos viagem aparentemente sem rumo. Coisas do meu velho, que sempre teve espírito aventureiro. Se tivesse nascido na época das grandes navegações, certamente estaria a bordo de uma nau desbravando os sete mares. 

        Foi já no final de tarde que papai estacionou o Jeep Willys diante da porteira da fazenda do Ivan, amigo de longa data do meu pai. Eles se conheceram ainda rapazes, quando trabalhavam em um cartório no centro. Ivan, depois de mexer naquele amontoado de documentações, disse que a vida precisava de menos papel e mais mato. E foi assim que partiu para a roça em meados de 1969, logo após Neil Armstrong dar os primeiros passos sobre a superfície lunar. 

        Fomos recebidos pelo sorriso largo do amigo do meu pai. Eu, que naquela época achava meu coroa o cara mais alto e forte do mundo, fiquei impressionado com o tamanho do Ivan. Ele devia ter dois metros, enquanto descobri, anos mais tarde, que papai mal chegava a um metro e setenta. 

        Na manhã seguinte, acordei bem cedo e fui dar uma volta na propriedade. Havia de tudo que um garoto de oito anos poderia desejar. Cavalos, porcos, vacas, galinhas, um lago cheio de peixes, patos e até algumas tartarugas, árvores para escalar, um mundo a ser explorado, tamanha a imaginação que eu herdara do meu pai. Como desejei que mamãe e meus irmãos estivessem ali para sentir que a vida vai muito além do tapete da nossa sala e do parquinho no final da rua. 

        Após passarmos uma semana inteirinha naquele paraíso, chegou a hora da despedida. Promessas de novas visitas, apesar de ditas com sinceridade naquele tempo, jamais se concretizaram. Nunca mais voltei a ver o Ivan, que talvez nem tivesse mesmo dois metros de altura. 

        No caminho de volta, paramos em uma vendinha, cujo dono, ainda recordo, se chamava Valdir. Papai apontou para uma lata de salsicha empoeirada sobre a prateleira de madeira. O comerciante a pegou e a esfregou na camisa, como se aquele gesto simplório fosse desinfetá-la. Enquanto eu o observava, o homem pegou o abridor e nos serviu. Até hoje, eu me recordo do gosto daquela iguaria no meio do cerrado. Que saudade!

  • Nota de esclarecimento: O conto "Herança de aventureiro" foi publicado por Notibras no dia 26/8/2024.
  • https://www.notibras.com/site/longo-giro-pelo-cerrado-acaba-em-lata-de-salsicha/

Vagabundo como todos nós

    

    Esdras não gostava de trabalhar. Não que isso o fizesse diferente dos colegas, pelo contrário, pois era mais uma das coisas que o tornava mais próximo a eles, além da explícita paixão pela famigerada, apesar de tão desejava, vagabundagem. No entanto, como todos reles mortais, o homem precisava acordar cedo e cumprir sua sina de contribuinte para o sucesso da fantástica fábrica de sonhos destruídos. Afinal, as contas não paravam de surgir pela fresta da porta. 

          Sujeito de raras pretensões além de passar o dia inteiro em frente à praia do Costa, em Itacaré, Bahia, bebericando uma cerveja barata e degustando qualquer petisco para encher o bucho, Esdras não via razão para se frustrar em sonhos impossíveis. Não deseja possuir uma Ferrari nem morar numa cobertura na Vieira Souto ou até mesmo passar férias em Paris. 

          Nada mais de pisar com sapatos apertados nas duras calçadas na incessante gana por fechar aquele negócio das Arábias. O lance era andar descalço à beira-mar, e a única pressa seria a da completa esbórnia. E que todas as faturas fossem extintas por vontade popular.

          Sentiu-se tão reconfortado com seus pensamentos, que acabou adormecendo na rede na sacada. Sonhou que todos aqueles desejos eram reais, que o aroma da maresia lhe chegava ao mesmo tempo do doce quebrar das ondas. Que delícia! Só faltava sentir a espuma da cerveja tocando seus lábios. 

          Não demorou, Esdras saboreava aquela bebida estupidamente gelada, quando algo começou a incomodá-lo. Ele havia se esquecido de calçar as meias e, não tardou, a incômoda brisa começou a gelar seus pés. O homem acordou, arregalou os olhos e, por fim, constatou o pesadelo diante dos seus olhos.

        _ Que droga!!! Nada mais cinzento do que uma manhã fria de segunda-feira! 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Vagabundo como todos nós" foi publicado por Notibras no dia 26/8/2024.
  • https://www.notibras.com/site/baiano-cai-na-real-e-pula-da-rede-para-trabalhar/

domingo, 25 de agosto de 2024

Bate-papo de jovens

    

        Uma moça e um rapaz conversavam na fila do banco. Conhecidos há pouco, ainda estavam na fase do quase nada sei sobre você. No entanto, jovens que eram, ainda não haviam sido atingidos pela hipocrisia característica dos mais velhos.

— Joana, tá sabendo da festa que vai rolar no apartamento do Ricardo?

— Sim.

— E você vai?

— Não.

— Ué, por quê?

— Nem conheço o Ricardo direito.

— E daí?

— E daí que preciso que alguém me convide.

— Quer ir comigo?

— Não consigo.

— Por quê? 

— Carlos, você me parece ser um cara decente.

— Então, vamos juntos?

— Não dá.

— Ué, você acabou de dizer que sou um cara decente.

— Esse é o problema. Você tem coração.

— Como assim?

— É que eu não presto.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Bate-papo de jovens" foi publicado por Notibras no dia 25/8/2024.
  • https://www.notibras.com/site/bate-papo-de-jovens-antecipa-hipocrisia-adulta/

sábado, 24 de agosto de 2024

Sina de família

    

          Minha bisavó, Maria de Fátima, a Fatinha, se casou aos 15 anos com um homem escolhido pelo meu trisavô. Sei que, no dia do casamento, minha bisavó se trancou no quarto e chorou o dia inteiro, até que, no dia seguinte, cheia de fome, sentiu o cheiro do pão saindo do forno a lenha. 

          Se o meu bisavô, Seixas, era um bom homem, não se sabe ao certo. Ele adoeceu dois meses após o casamento. Acamado, sofreu horrores, vomitou os bofes e mais o que nem tinha. Alguém se lembrou de chamar o padre e, no dia seguinte, foi enterrado sem demora. A despeito da partida inesperada do marido, a viúva carregava no ventre o fruto das indesejadas investidas nas noites de alcova. 

          Pouco tempo antes do esperado, vovó foi arrancada a fórceps das entranhas da mãe, que parecia não desejar que o fruto de tanto desamor viesse ao mundo. Pois veio e, apesar das agruras anteriores ao parto, algo despertou naquela adolescente, que, a partir daquele ponto, se sentiu na obrigação de dar algo além do que o leite que começou a jorrar das tetas túrgidas.

          Sem tempo para esperar que o vangloriado amor materno surgisse, Fatinha, determinada,  apesar de tanta insegurança que a cercava, fez uma promessa que, até aquele momento, ela desconhecia poder cumprir. Seja como for, olhou para a filha e disse que, a partir de então, as duas teriam um acordo. Ela iria proteger aquele ser a todo custo, enquanto vovó precisaria guardar para si todas as perguntas sobre o falecido pai. 

          O choro veio como se fosse prelúdio de desavença. Que nada! Era o desconforto próprio de quem, a partir daquele momento, precisaria respirar o ar dos impuros. Fatinha, que não poderia resolver tamanha penúria, tratou logo de apaziguar a situação oferecendo o peito. Foi o suficiente, naquele momento, para acalmar o ímpeto de vovó, que, até o mês que se seguiu, só era chamada de bebê. 

          Sem tempo para pensar num nome para a criança, Fatinha se viu pressionada pela família do finado. Ela precisaria escolher um, e que fosse Beatriz ou Solange, duas antepassadas de boa fama entre a parentada do Seixas. Minha bisavó, num ímpeto de rebeldia, não queria saber daquela conversa. Até gostava de Beatriz, além de não ter qualquer empecilho relacionado a Solange. Todavia, decidiu que vovó se chamaria Salomé. E Salomé ficou, apesar do alvoroço que provocou na sogra e nas cunhadas. 

          Fatinha não teve vida fácil. No entanto, nada longe do que já estava acostumada desde sempre. Se comeu o pão que o Diabo amassou, não reclamava. Era sorte ter algum pão para saciar a fome que sempre a rondou. Quanto à minha avó, cresceu com as migalhes que lhe sobravam.

          Se Fatinha jamais pôde se sentar à mesa dos abastados, a filha teve melhor sorte ao optar por se sentar no colo dos figurões. E foi assim que acabou engravidando de um cliente, cuja dúvida da paternidade era mais que óbvia. Jamais exigiu nada além do que lhe foi ofertado. Criou a filha, no caso mamãe, com alguns dos mimos que os irmãos honestamente registrados tiveram. Também estudou em escolas de renome, o que, no final das contas, acabou por abrir certas portas até então proibidas para seus antepassados.

          Formou-se em administração e, não tardou, conseguiu um excelente posto na empresa do meu suposto avô. Histórias sobre o caso já não são tão corriqueiras, mas mamãe as sabe todas de tanto escutá-las por detrás das portas. Fingiu-se de surda e muda para não revidar tais fofocas, mesmo porque aprendeu desde cedo que não dá para se opor à locomotiva da hipocrisia. 

          Não sei se mamãe se casou por amor, mas estou certa de que não foi por imposição. Talvez tenha sido por conveniência. Afinal, papai, apesar da aparência pouco atrativa, conseguiu conquistar minha mãe, que sempre me disse que ele era excelente sujeito, além de possuir um patrimônio razoável. Infelizmente, ele começou a passar mal logo após os primeiros enjoos que ela sentiu. É uma pena, meu pai, inesperadamente, faleceu antes mesmo de eu nascer. Foi um tremendo baque na família, que sempre o viu como pleno de saúde. Uns falam que é destino, prefiro chamar de sina. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Sina de família" foi publicado por Notibras no dia 24/8/2024.
  • https://www.notibras.com/site/salome-sobrevive-bem-em-meio-a-mortes-repentinas/

Reticências do casório

    
        Tumulto era palavra de ordem naquele lar, quase sempre saturado de amargores. As tais promessas de harmonia feitas sobre o altar não passaram de falácias ditas pelos então inocentes jovens, que começavam a vida. Eram quase adolescentes e, por conta de tamanha ausência de sensatez, estavam inebriados de tolices escritas por José de Alencar e tantos outros. 

           Sem filhos para dividir as brigas, todas as agruras eram reservadas àqueles dois. Um mar de rosas despetaladas, que provocava a desarmonia necessária para o último estágio de qualquer casamento digno de menção. No entanto, se a separação não aconteceu naquele inverno nem na primavera, foi por conta de uma ideia, que, naquela ocasião, saiu dos carnudos lábios de Lígia, a esposa.

          Onofre, o marido, aceitou sem reclamações. Houve reticências, é verdade, mas que não chegaram a dar fim ao proposto. Uma viagem a Arraial do Cabo, com direito a passeios pelas aprazíveis locações das mais famosas cidades da esplendorosa Região dos Lagos. Era, nas palavras da mulher, a última tentativa de salvar o casamento, que parecia fadado a não chegar ao réveillon.

         Brigas, embates, desavenças diante das praias mais lindas do planeta. Jantares regados a frutos do mar não foram suficientes para aplacar tamanho desalinho entre aqueles dois seres inapropriadamente unidos pelas palavras irresponsáveis de um padre, talvez por causa da batina ainda respirando a inocência da aurora. Não restava dúvida, Lígia e Onofre concordaram. Nada de prolongar o martírio, quando a liberdade da separação estava tão próxima. 

        Na volta, sentados lado a lado, os dois estavam certos de que o divórcio era o único caminho digno para tamanha discórdia. Ela, sentada na poltrona à janela, observava o céu carregado de nuvens cinzentas. Era o prenúncio de que viveriam melhor sem a desagradável companhia um do outro. 

         O homem, olhar perdido no corredor, notou a aproximação do carrinho carregado de saquinhos de amendoim e refrigerante sem gás. Todavia, antes que os comissários pudessem oferecer tamanhas iguarias imperdíveis, eis que uma turbulência fez com que o avião subisse e descesse repentinamente. As luzes se apagaram, o que transformou aquele compartimento num ambiente hostil e tenebroso. 

         Onofre, instintivamente, buscou a mão da esposa, que, naquele instante, se mostrou receptiva àquele apelo. Os dois se abraçaram e, para surpresa de ambos, constataram que ainda se amavam. O beijo se tornou ardente e, caso as luzes não voltassem a se acender logo em seguida, não tardariam para se entregarem à luxúria em pleno voo.

          As promessas e juras de amor entre aquelas nuvens hostis, que rodearam a aeronave, parece que viraram realidade. Tanto é que, na primeira semana que se seguiu, Lígia e Onofre se amararam como nos tempos de namoro. Completou um mês, a família, os amigos e até o cachorro estranharam. Que harmonia! Até que, por conta de algo tolo, que nenhum dos dois se lembrava, os ruídos retornaram ao lar, doce lar. 

         Lígia, numa manhã fria de julho, acordou decidida a pôr um fim naquela situação. Mal se virou, não encontrou o esposo. A mulher quase pulou da cama, calçou o chinelo e foi procurar pelo desafeto, que estava sentado na poltrona da sala. Ele observou a adversária de tantas batalhas e, talvez em desalinho com o próprio pensamento, cuspiu algumas palavras.

        — Que tal Cabo de Santo Agostinho? Ouvi dizer que a praia de Arapuama é muito boa.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Reticências do casório" foi publicado por Notibras no dia 24/8/2024.
  • https://www.notibras.com/site/itapuama-vira-paraiso-e-mantem-harmonia-de-casal/

sexta-feira, 23 de agosto de 2024

Juarez e a ressaca

    

         Juarez começou a beber ainda adolescente para se enturmar. Coisas da juventude que, nos anos 70 do século passado, não costumavam vir com o alerta do Ministério da Saúde do tipo "cuidado onde você está pisando".  Se isso foi determinante, não se sabe, a não ser que o sujeito, quando percebeu, já estava totalmente emaranhado na teia do alcoolismo. 

          A despeito de tamanha dependência, Juarez foi alçado a um cargo público por conta da influência do pai, que era aliado de certo político de renome. E foi justamente esse apadrinhamento que manteve o rapaz no emprego, pois nunca se deu ao trabalho de aprender o serviço, mesmo nos períodos de sobriedade. Pendurava o paletó na cadeira, pedia um café para a copeira. Sorvia com sofreguidão o elixir dos sonolentos e, em seguida, dispensava a mulher, mas com a condição da garrafa térmica ficar. 

          Apesar das tempestades que vinham e iam, Juarez passava meses se esquivando da bebida. É verdade que a danada, vez ou outra, aparecia de supetão em algum convite para aquela esticada após o expediente ou, não raro, por causa de alguma comemoração na casa de amigos. Seja como for, o homem resistia até onde dava pé e, não aguentando mais, se afogava na cerveja, no vinho ou na cachaça.

          Pois foi numa dessas ocasiões que Juarez perdeu de vez as estribeiras. Pisou na jaca, chutou o pau da barraca, vomitou os bofes até dizer chega. Só descobriu que retornou para casa no dia seguinte e, mesmo assim, porque reconheceu a própria cama. Não se lembrava de como teria chegado ali, até que o telefone tocou insistentemente, o que lhe aumentou o desconforto da enxaqueca. 

          Para pôr fim àquele martírio, o homem atendeu. Era o Leopoldo, seu colega de trabalho. Não demorou mais do que um minuto de conversa para que o Juarez descobrisse que fora justamente seu amigo que o carregou quase nos ombros até o lar, doce lar. 

          — Obrigado, Leopoldo. Eu te devo mais essa.

          — Esquece, Juarez. Amigos são pra essas coisas.

          — Puxa, valeu demais.

          — Aposto que você deve estar com aquela ressaca. 

          — Tô, sim. Mas o pior mesmo é a ressaca moral.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Juarez e a ressaca" foi publicado por Notibras no dia 23/8/2024.
  • https://www.notibras.com/site/juarez-cai-na-tentacao-e-acorda-com-ressaca-moral/

quinta-feira, 22 de agosto de 2024

Salviano, o homem do sorriso fácil

    

      Salviano Quintanilha, por conta do sorriso largo, conseguia encantar as pessoas ao redor. Tanto é que, desde menino, percebeu o próprio charme, pois até a professora sempre lhe reservava maiores afagos nos lindos cachos negros que nem anu. Os coleguinhas, a despeito de possíveis queixumes, também se sentiam felizes pela inebriante presença do garoto. 

          O gajo cresceu e se tornou um rapagão boa-pinta. De tanto usar gel, as madeixas deram lugar a um cabelo rente, o que provocava reboliço entre as moçoilas solteiras, além de algumas comprometidas. Dizem que até as mulheres casadas se sentiam atraídas pelo bonitão, sem se importar com a presença dos maridos. No entanto, tudo ocorria na maior discrição, sempre na proteção das coxias. 

          O homem, diante do banquete, preferia manter a solteirice. Entretanto, percebeu que precisava arrumar um casório o mais rápido possível, mesmo porque fora picado pela mosquinha da política. Era de bom alvitre ser casado e ter alguns herdeiros para garantir o sucesso na carreira.

          Salviano tratou de escolher, entre tantas pretendentes, a que mais condizia com o almejado posto de vereador. Aldenora Carvalho de Albuquerque, além de boa procedência, era-lhe agradável aos olhos. O rapaz, após o pedido formal ao patriarca da família da moça, cumpriu o longo período de noivado para não restar dúvida da honestidade da senhorita. 

          Os pombinhos se casaram no primeiro dia de maio, justamente o mês das noivas. Diante do figurino mais que perfeito, foram passar a lua de mel na capital. Retornaram duas semanas após e, não tardou, a agora senhora Aldenora Carvalho de Albuquerque Quintanilha começou a sentir os primeiros enjoos próprios das mulheres desposadas. 

          Salviano Quintanilha Filho nasceu em fevereiro do ano seguinte, para alegria dos pais, dos avós e de toda a família. Enquanto o bebê era amamentado pela mãe, o pai iniciava a trajetória na vida pública. Candidatou-se a vereador e, para a surpresa de ninguém, elegeu-se com o maior número de votos que aquela região havia visto. 

          Político de sucesso nos anos seguintes, Salviano viu a família crescer com a chegada das gêmeas Maria Lúcia e Maria de Fátima. De tão confiante que estava, resolveu concorrer ao prestigiado cargo de prefeito. Elegeu-se com sobras e, não obstante às ações um tanto inescrupulosas, continuou com a popularidade em alta. Prova disso é que, após ser reeleito para a prefeitura, começou a se imaginar deputado estadual.

          Novas eleições, e os eleitores não negaram a maior votação ao amado candidato. Deputado estadual por dois mandatos seguidos. Sucesso que, à custa de emendas pouco probas, instigou Salviano a pretender galgar degraus mais elevados. E por que não deputado federal? Pois foi o que fez, com a coragem dos que sabem que a história é escrita por quem é destemido. 

          Aos 60 anos, o deputado federal Salviano Quintanilha, com alguns milhões de eleitores fiéis, estava sentado em sua confortável poltrona na sala de sua mansão. Filhos criados, todos com posição de destaque nas devidas profissões que escolheram, alguns netos correndo pelo quintal. O homem olhou para a esposa e sorriu aquele sorriso fácil, que ludibriava até o mais incrédulo dos seres.

          — Aldenora, meu amor, sabe que estava pensando aqui com os meus botões?

          — O quê?

          — Se eu tivesse escolhido ser padre, é possível que hoje o papa fosse brasileiro.

          — Talvez.

          — Quem sabe até eu fosse canonizado, não é verdade?

       — Salviano, meu amado marido, pegar algumas notas de cem e jogá-las pra plateia nunca o tornará um santo.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Salviano, o homem do sorriso fácil" foi publicado por Notibras no dia 22/8/2024.
  • https://www.notibras.com/site/salviano-do-sorriso-facil-so-nao-comprou-papado/