quinta-feira, 18 de setembro de 2025

Almir, o bobo

    

     Isolado em pensamentos, acendeu um cigarro imaginário entre tantos outros, enquanto os demais convidados pareciam se divertir com as histórias contadas pela anfitriã, colega de longa data que, finalmente, comemorava a aposentadoria. Claudete gargalhava e, assim, puxava uma onda de risadas, a maior parte franca. Almir, por um instante, a observou, soltou uma baforada invisível e, cauteloso, sorriu para salvar seu disfarce. 

     Por um instante, tentou captar o conteúdo daquela conversa, mas, já no instante seguinte, voltou aos devaneios. Por que teria mesmo aceitado o convite para estar ali? Entre todos os colegas da repartição, até que possuía certa afeição por Claudete, mas não a ponto de perder uma noite de sexta-feira com as mesmas pessoas que passava a semana inteira entre reuniões e documentos sem fim. Mais uma tragada, agora mais profunda, clareou sua memória. Laura. Sim, a bela mulher de cabelos negros e enigmáticos olhos castanhos. 

    Sempre simpática, Laura costumava lhe sorrir nos momentos em que se esbarravam ao redor da mesa do cafezinho. Diga-se de passagem que raros eram por acaso, já que Almir, escondido atrás de um ou outro processo, observava cada movimento de pernas da mulher, que se sentava próximo à sua mesa. Ele adiantava-se e, mesmo não sendo o melhor dos atores, caminhava de maneira quase natural em direção à garrafa térmica.

      Do jeito que tomamos café, talvez até descontem do nosso salário.

      O quê?

      O café, Almir.

      Ah, tá!

    Laura sorria do modo desajeitado do companheiro de labuta, que, então, ficava ruborizado.

     Será que vão mesmo descontar a gente?

      Claro que não, né, Almir!

      Tem certeza?

      Sim! Tô só brincando, seu bobo.

    Bobo. Bobo. Bobo. Almir guardou aquele verbete como regalo fosse. Tanto é que, entre uma tragada e outra, observou a namorada utópica sentada ao canto, cuja cintura estava envolvida pelos braços do marido. No entanto, assim que foi descoberto por Laura, o sujeito baixou os olhos e, engasgado por causa da fumaça, começou a tossir. 

      Você está bem, Almir?

      Ah, sim, sim, Claudete.

      Quer um pouco de água?

      Não, obrigado. Estou bem. 

   Almir tentou retornar aos seus pensamentos. Todavia, desmascarado, não conseguiu acender mais nenhum cigarro. Bobo. Sim, completamente bobo. Percebeu que precisava por um fim naquele romance antes que a coisa ficasse séria. Também decidiu parar de fumar e tomar tanto café. Melhor mesmo evitar uma possível gastrite. 

  • Nota de esclarecimento: 'Almir, o bobo' é mais um dos contos do escritor Eduardo Martínez que foi publicado por Notibras. 
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quarta-feira, 17 de setembro de 2025

Murilo, o pavão

         Era cretinamente lindo. Sempre fora, mesmo na fase ingrata da adolescência, quando os hormônios estão mancomunados com os mais esdrúxulos desalinhos. De tão belo, causaria repulsa até mesmo ao mais frondoso dos pavões. Inclusive as casadas costumavam dizer: Vai ser harmonioso assim lá em casa!

         Murilo não prestava, e não era pouca coisa. Não valia colherada pequena de sopa rala. Um traste. Mesmo assim, não lhe faltavam pretendentes, todas, obviamente, cientes de que nem mesmo elas suportariam ir além de uma noite. Pois, caso não bastasse ser um biltre, o canalha não fazia questão nem mesmo de coçar o bolso na hora de pagar a conta do motel.

      Destino é algo que, geralmente, é tão previsível, que chega a entediar, tamanha a monotonia. Todavia, quando sai da rota prevista, pode surpreender até mesmo aqueles propensos aos maiores devaneios. E foi justamente isso que aconteceu ao pulha.

       Pois é, o imprevisto se deu na manhã de certa segunda-feira, quando Murilo, peito estufado, desfilava pelas calçadas do bairro, certo de que provocaria os desejos mais reprimidos nas mulheres que tivessem a sorte de se deparar com figura tão digna de olhares cheios de vontades. Nenhuma novidade até que, de repente, uma jovem, do nada, virou-se para o gajo. Olhou-o de cima a baixo, torceu os lábios desdenhosamente e, pasmem, virou-se e foi embora. 

        O que foi aquilo? Murilo, perplexo, não conseguiu acreditar. Seria possível alguma mulher desprezá-lo, ainda mais depois do que a natureza havia feito com o seu magnífico ser? Não, não e não! Deveria ter alguma explicação lógica para aquele episódio. Cegueira. Sim, aquela pobre garota, não mais de 20 anos, deveria ser cega. No mínimo, sofria de miopia severa. Sim, sim e sim!

           Por sorte ou azar, Murilo se deparou novamente com a misteriosa mulher alguns dias depois. E o encontro aconteceu por acaso, justamente na casa da Fernanda, antiga namorada de uma noite como tantas outras. Ele tentou puxar conversa, mas Larissa, era como se chamava a jovem, nem lhe deu bola. Mesmo assim, foi educada o suficiente para desfazer qualquer dúvida sobre suas vistas.

            Míope? Não, senhor! Pois vejo muito bem.

            Não é possível!

            Pois acredite, senhor Murilo! Enxergo de longe um safardana.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Murilo, o pavão" foi publicado por Notibras no dia 17/9/2025.
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terça-feira, 16 de setembro de 2025

Ismália, a mula do meu avô

    

    Não sei se já te falei da mula do meu avô. Quero deixar bem claro que vovô não era uma mula, apesar de certos rompantes, a maioria por conta de desavenças com os irmãos, já que, com o pai e, especialmente com a mãe, não tinha coragem de levantar a voz. Talvez seja por isso que vovó nunca tenha revelado qualquer briga que, porventura, tenha tido trancada com o marido no quarto. 

    Então, quer dizer que o seu Tenório era homem de fácil trato? Bem, enquanto sóbrio, diria que sim. Todavia, quando se deixava levar por uma dose de cachaça... Ih, a partir daí, a coisa desandava dum jeito, que não tinha santo que segurasse o ímpeto do vovô. Mas não pense você que era coisa de valentia, pois a única contenda que travou durante seus 78 anos foi contra a miséria. Venceu, não de lavada, mas por um placar tão apertado, que, aos olhos de algum desavisado, poderia imaginar que a derrota havia sido acachapante.

    Ismália. Pois era esse o improvável nome da mula do meu avô. Nasceu de enlace breve entre um jumento, o Lúcio, e a égua Laurentina, nome logo encurtado para Laura. Breve porque não passou de um mês, já que o pobre Lúcio, inquieto como ele só, era afeito a pular cercas e, numa dessas, deu de cara com um zeloso sitiante, proprietário de caríssima mangalarga tordilha. Furioso, o sujeito descarregou a garrucha antes que o Don Juan dos equídeos pudesse consumar o ato. 

      Órfã de pai, parece que Ismália não cresceu traumatizada, ainda mais porque a doce Laura demonstrou ser excelente mãe. Quando chegou a idade apropriada, começou a receber ensinamentos que a tornaram a melhor montaria da região. De tão afamada, teve fazendeiro endinheirado que ofereceu pequena fortuna. No entanto, o então jovem Tenório declinou da possibilidade de se desfazer do incrível animal, que, inclusive, passou a fazer parte da família, com direito até a duas graúdas cenouras logo nas primeiras horas do dia, além de um punhado de milho no final da tarde. 

        Tais mimos eram de bom alvitre, pois Ismália fazia trabalho de três homens, carregava meu avô no lombo para cima e para baixo, sem contar as vezes que o livrou da peçonha de jararacas e cascavéis que se embrenhavam em moitas à espreita de presa. Não que vovô fosse o alvo de tais serpentes, mas as pobres criaturas rastejantes encaravam aquele ser bípede como ameaça. E com razão. 

        Ismália, quando percebia o perigo, zurrava e dava meia-volta. Nas primeiras vezes, Tenório embirrou e quis forçar a mula a prosseguir, até que quase foi derrubado e, ao se preparar para ralhar com a companheira, percebeu uma enorme jararaca pronta para o bote. A partir de então, percebeu que a danada detinha a sapiência dos prudentes e, por isso, nunca mais teimou com ela. 

         Que cavalo sabe o caminho de casa, sei disso desde a mais tenra idade. Entretanto, Ismália, até mesmo por conta de sua condição de mula, era dona de inteligência mais arguta. Tanto é que, quando Tenório exagerava na bebida lá na bodega do Jurandir, bastava o homem montar na mula ou, dependendo da situação, alguém o colocasse sobre ela, para que fosse levado de volta ao sítio da família. Tudo dentro dos conformes, se não fosse por um porém. É que Ismália, certamente para defender a reputação do Tenório, passava por dentro do riacho, cuja água era tão gélida, que era capaz de despertar até defunto de três dias. 

        O bebum chegava encharcado ao lar, mas tão desperto, que ninguém suspeitava que Tenório havia bebido. Vá lá, que tivesse bebido além da conta. No máximo, era como se o gajo tivesse ingerido a dose que todo filho de Deus merece após um dia inteiro no cabo de uma enxada.

            Ismália chegou aos 42 anos, quando Tenório e Carlota já contavam com três netos, sendo eu uma delas. Há muito aposentada, viveu uma vida inteira dedicada ao meu avô. E a nossa família reconhece tamanha devoção. Tanto é que todos nós guardamos com carinho as suas fotografias, cada vez mais apagadas, mas jamais esquecidas.  

  • Nota de esclarecimento: O conto "Ismália, a mula do meu avô" foi publicado por Notibras no dia 16/9/2025.
  • https://www.notibras.com/site/ismalia-a-mula-do-meu-avo/

segunda-feira, 15 de setembro de 2025

Daniel Marchi, o escritor cinematográfico

    

    Não raro, ao ler um conto, especialmente os escritos pelo Daniel Marchi, tenho a sensação de que estou assistindo a um filme. E por amar cinema e ter o hábito de rever a mesma película uma, duas, quinze vezes, também adoro reler a mesma história, como quem busca reviver aquela sensação gostosa de imaginar a trama se desenrolando na telona. 

      Entre tantos contos maravilhosos, talvez a minha preferência seja por 'A febre do gelo', cujo enredo se passa no escaldante verão de 1930 no Rio de Janeiro, então capital do país. Um homem angustiado não consegue tirar da mente a esposa, a bela Luísa, enquanto tenta conseguir, por motivos só no fim revelados, barras e mais barras de gelo, que estavam em falta em toda cidade. Junte-se a isso o ambiente de uma mercearia fechada, um professor de música tocando violoncelo, o sol inclemente, um acidente com bonde... Imaginou a cena? Quão cinematográfica ela é!

    'Um amor de chapéu', outro conto do Daniel, certamente já passou da hora de ser estrelado por... Hum... Lázaro Ramos ou, então, Matheus Nachtergaele. Precisaria ver com o próprio escritor, então, telefono no horário que sei que ele está debruçado sobre o computador escrevendo mais um texto. De tão ciente desse hábito do meu amigo, nem me dou ao trabalho de perguntar se posso telefonar.

        — Oi, Edu! Já ia te ligar. Você precisa ler o que acabei de escrever. 

        — Oi, Dan! Mas antes preciso tirar um dúvida.

        — Diga lá!

        — Lázaro Ramos ou Matheus Nachtergaele?

         Adoro os dois.

        — Também. Mas qual dos dois?

        — E por que preciso escolher um apenas?

        — Pro chapéu.

        — Chapéu? Que chapéu?

        — 'Um amor de chapéu'.

        — Hum... Pensei no Vladimir Brichta.

       — Hum... É. Você tem razão. Mas que o Lazinho também poderia fazer bem esse papel, né?

       — É verdade!

       — E que tal o Wagner Moura em 'A febre do gelo'?


       — Edu, acho que o papel deve ser do Nachtergaele. O Wagner Moura ficaria perfeito no seu 'Odisseia pernambucana'. Ele, o Lazinho e a Leandra Leal. Já pensou?

       — Nossa! Seria maravilhoso! Mas quem seria o defunto? 

       — Ah, melhor deixar pra Leandra decidir isso.

      Rio da piada do meu amigo e, antes de me despedir, peço para que ele me mande o seu mais novo conto. Mesmo assim, deixo para lê-lo apenas no dia seguinte acompanhado de uma generosa xícara de café gourmet. O momento era todo de 'A febre do gelo' e, ao adormecer, o tema musical chega em meu sonho: 'Pavana', de Gabriel Fauré.

  • Nota de esclarecimento: A crônica "Daniel Marchi, o escritor cinematográfico" foi publicada por Notibras no dia 15/9/2025.
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domingo, 14 de setembro de 2025

Dalva e o quadro de Cora Coralina

    

    Dalva não queria guerra com ninguém, mas tal intento não a livrava de embates, ainda mais quando esbarrava com gente que se achava o último biscoito do pacote. Nessas ocasiões, encarava o desafeto de última hora, e não havia quem a demovesse de arredar pé. E se era um deus nos acuda, nem ele seria capaz de apaziguar o imbróglio

    Dona de uma  das mais concorridas bancas de artesanato na Torre de TV em Brasília, a mulher fazia questão de explicar a origem de cada peça vendida, quando lhe davam abertura, é óbvio. Sem contar que, não raro, eram os clientes que indagavam a vendedora.

      No caso específico, foi uma mulher de pele rosada, com seus lá 60 ou 65 anos, que desejou saber sobre determinada pintura onde aparecia uma senhora sentada em frente a uma casa. Intrigada, ela se virou e, com sotaque carregado, quis saber quem era.

           Cora Coralina.

           Cora Coralina?

           Sim. Cora Coralina.

           E quem é Cora Coralina?

        Dalva olhou para a possível compradora e, com ar professoral, deu uma aula sobre a renomada poetisa goiana. Não satisfeita, ainda declamou alguns poemas de Cora Coralina para a cliente, que ficou completamente inebriada com tamanha beleza. 

          A mulher pagou o valor cobrado e, então, virou-se para ir embora, quando Dalva, cujo espírito curioso andava aflorado naquele dia, quis saber se a cliente era do Rio Grande do Sul, de Santa Catarina ou do Paraná.

         Sou americana.

         Ah, também sou. Mas de qual local você é?

         Dos Estados Unidos.

         Ah, tá! É que aqui no Brasil chamamos vocês de estadunidenses.

         Sou americana!

      Sim, eu sei, pois você também nasceu na América. Você sabe que América é um continente, né? 

        Pra quê? A cliente disse algo em inglês que pareceu ser palavrão, virou-se e foi embora. E é lógico que levou consigo o quadro da Cora Coralina. É que até ela sabia que poesia boa era mesmo a brasileira.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Dalva e o quadro de Cora Coralina" foi publicado por Notibras no dia 14/9/2025.
  • https://www.notibras.com/site/dalva-e-o-quadro-de-cora-coralina/

sábado, 13 de setembro de 2025

Pobre Eliosmar

    

    Aquele tipo de ambiente não era de todo estranho para Eliosmar. Ele nunca havia sido preso. Preso de verdade, quero dizer. Preso por cometer um crime, talvez até um desses que todos nós já cometemos, mas, espertos ou sortudos que fomos, não acabamos atrás das grades. 

    Eliosmar fora internado compulsoriamente diversas vezes. Incontáveis. Provavelmente, nem mesmo as inúmeras páginas do seu prontuário médico seriam capazes de sabê-las por completo. Mas eram muitas, muitas de verdade e sem precisar inventar uma ou outra, já que a quantidade, por si só, era espantosa sem qualquer maquiagem. 

     Mas eis que lá estava Eliosmar trancafiado naquela cela com mais 32. Sim, um total de 33, idade de Cristo. Deus me livre! Imagine você confinado em um espaço do tamanho de um quarto com três dezenas mais três. Desumano. Ah, mas ninguém ali é santo. E daí? Por causa disso precisa viver no inferno?

     Eliosmar, alcoolista desde que um tio começou a lhe oferecer a inocente espuma de cerveja. Ninguém teve coragem ou ímpeto de dizer não. Ah, era apenas espuma. Melhor aprender em casa, com quem quer o seu bem. Seis anos, foi quando o agora detento experimentou pela primeira vez. E foi tarde, já que os primos, precoces que eram, para dormirem naquela paz, recebiam mamadeira batizada. 

       Pior mesmo foi uma tia solteirona. Inventou de dar uns tapas no cigarro do Capeta. Mas isso foi antes da descriminalização. Bandida! E, ainda por cima, aparenta aquela tal normalidade dos inocentes, como se não assumisse as próprias falhas. Antes tivesse bebido. 

       Mas voltemos ao Eliomar, pois falar de gente criminosa não é o meu forte. Perco logo as estribeiras e falo o que não devo. Pobre rapaz, matou a namorada por ciúme. Também, quem mandou cumprimentar um colega na saída do trabalho? Precisava daquilo? Pois é, por causa daquela adúltera, o meu menino, que ainda nem completou 40 anos, vai passar uns bons anos na cadeia. Maldita rapariga!

  • Nota de esclarecimento: O conto "Pobre Eliosmar" foi publicado por Notibras no dia 13/9/2025.
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sexta-feira, 12 de setembro de 2025

Quem observa ao longe não quebra a magia da vida (Crônica de autoria da colunista Dona Irene)

   

     Algumas situações do meu dia a dia me trazem uma sensação de paz difícil de descrever. Uma delas acontece quando minha filha adormece depois de um dia cheio, daqueles em que ela correu, riu, explorou e viveu intensamente. Ver o rostinho tranquilo, entregue ao sono, depois de tanta alegria, é como se o tempo parasse por alguns instantes. Eu sinto que tudo valeu a pena.

    Outra cena que me enche de calma é quando a vejo brincando junto com o pai. Os dois têm uma cumplicidade que ultrapassa as palavras. Muitas vezes nem precisam conversar: basta um olhar ou um sorriso e, de repente, estão mergulhados em aventuras imaginárias (ou não) que só os dois sabem inventar. É um espetáculo silencioso e, ao mesmo tempo, vibrante de vida.

    Às vezes, claro, dá vontade de participar da brincadeira, de me juntar a eles naquele universo tão próprio. Mas, na maioria das vezes, fico quieta, apenas observando, com medo de quebrar a magia. Porque o que eles têm juntos é bonito demais, e eu aprendi a valorizar também o lugar de espectadora privilegiada dessa relação.

    São nesses momentos simples que encontro um tipo de paz raro, aquele que não se compra, não se planeja e não se força: ele simplesmente acontece.

  • Nota de esclarecimento: A crônica "Quem observa ao longe, não quebra a magia da vida" foi publicada por Notibras no dia 12/9/2025. 
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Regina, a (quase) fiel esposa do pastor

 

  Regina andava de olho no Reinaldo, que nem era essa Coca-Cola toda, mas fazia sucesso naquela parte quase esquecida pelos governantes do Distrito Federal. Quase apenas porque, de quatro em quatro anos, chovia aquele povo engravatado, que prometia mundos e fundos, em busca de votos. 

    O sujeito, que era praticamente amigado de Ludmila, não perdia oportunidade de pular a cerca quando surgia a mínima oportunidade. E não pense você que ele se importava se fosse bater a cara contra o muro, já que, como gostava de dizer, escondido num monte de nãos, sempre haverá um sim à espreita de quem não desiste da empreitada. 

    E não é que, no meio dessas inúmeras paqueras infrutíferas, Reinaldo conseguiu fisgar justamente a esposa do pastor Dorival? Sim, a Regina, que não teve dúvida em arriscar a reputação de mulher distinta, cuja função principal na igreja era a de se sentar recatadamente ao lado do marido e fazer feições dignas de pintura sacra. 

      Santa Regina? Bem, nem tanto, mas os fiéis pareciam colocar a mão no fogo por ela, ainda mais depois de sermões inflamados do esposo. E não havia quem não ficasse tomado de revolta contra os pecadores. Que morressem e fossem para o inferno, pois Deus não seria misericordioso com esses transgressores dos sagrados ensinamentos contidos na Bíblia.

        Como o santo é de barro, melhor andar a passos suaves de felino sobre a relva. Se bem que, por outro lado, há coisas neste mundo que são próprias dos hormônios, ainda mais os da Regina, que andavam represados há tempos, já que o cônjuge parecia preocupado demais em cuidar das outras ovelhas. Não todas, é verdade, mas apenas as que lhe davam certa abertura. E como davam!

        Pois aconteceu numa quarta-feira, dia mais improvável impossível para um romance não-programável pela própria imprevisibilidade. Todavia, destino é algo que, não raro, acontece sem estarmos preparados. Ou você foge ou, o que é mais provável, mete a cabeça e vive a loucura do instante, mesmo que saiba que não vai dar bom. 

        Bastou breve troca de olhares, entre as prateleiras do mercadinho da vizinhança, para que Reinaldo visse na mulher uma oportunidade de extravasar a luxúria que transbordava de seu ser. E, enquanto colocava um pacote de macarrão no carrinho, Regina não se fez de rogada e, impetuosa que se sentiu naquele instante, abriu seu melhor sorriso para o alvo. 

        O romance durou o tempo seguro para não gerar fofocas, apesar de, dizem, Ludmila acabar descobrindo a traição do amado. Seja como for, preferiu manter silêncio, pois, também dizem, tinha o rabo preso por conta de troca de beijos e coisitas mais justamente com o pastor Dorival. Pois é! Com o marido da amante do seu Reinaldo. 

        Parece até que as improbabilidades acontecem com certa frequência naquele lugar, já que, do nada, mas do nada mesmo, lá estavam a Regina e a Ludmila no mesmo mercadinho, cada qual com seu pacote de macarrão nas mãos. As duas, surpresas, se olharam por um instante, até que a mulher do Reinaldo quebrou o clima.

          O pastor gosta desse macarrão?

          Sabe que nem sei. Sempre compro o mesmo desde que nos casamos.

          E não seria hora de trocar?

          Hum... Pensando bem, creio que não.

         E por que não trocar, amiga?

          Don Juan sem muita poesia. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Regina, a (quase) fiel esposa do pastor" foi publicado por Notibrss no dia 12/9/2025.
  • https://www.notibras.com/site/regina-a-quase-fiel-esposa-do-pastor/

quinta-feira, 11 de setembro de 2025

Boquinha, Expedito e o Corcel 1973

    

    Boquinha, o mecânico mais tarimbado da Magnu, afamada oficina localizada na bucólica Sobradinho, no Distrito Federal, anda cabreiro.  E a coisa chegou a tal ponto que, não tardou, lá foi o sujeito ter uma conversa com o patrão.

     Leopoldo, tô precisando de um tempo pra espairecer.

    — Tempo?

     Sim.

     Quanto tempo?

     Sei lá! Uns dias aí.

     Tá bom. Tire uma semana, que falo pro Zero-Zero me dar uma força.

    Leopoldo, que não gostava da fama de fofoqueiro que corria por toda a região, preferiu não perguntar qual o motivo daquele pedido do seu funcionário. Entretanto, bobo que não era, tinha lá suas suspeitas, que preferiu deixar guardadas sob a língua ferina.

    Bem, se o Leopoldo não quis revelar o segredo, não serei justamente eu que irei guardá-lo. E nem adianta me chamar de boca-de-balde, pois visto a carapuça com aquele sorriso de satisfação. Então, lá vai!

    Aqui precisaremos retornar há quase dois anos, quando Expedito, batendo à porta dos 90, puro, besta e inocente que era, levou seu velho Corcel 1973 para simples limpeza de carburador até a Magnu, onde fez as tratativas com o Boquinha, já que o Leopoldo estava numa pescaria inadiável com seu grande amigo, o Gilmarildo, no Araguaia. 

    Pode ficar tranquilo, seu Expedito. Isso aí é serviço pequeno. O senhor pode passar no final da tarde, que o seu possante estará pronto para outra.

    Pois é, mero serviço pequeno, segundo as palavras do Boquinha. Entretanto, tal empreitada não findou naquela longínqua tarde. Nananinanão! Acredite ou não, ela se estendeu até os dias atuais, apesar das inúmeras reclamações do insatisfeito, e com razão, cliente. 

    Seu Boquinha, o senhor é um tratante! Mentiroso de marca maior!

    — Mas, seu Expedito, é que o serviço é complexo.

    — Complexo? Uma tarde! Foi o que você me disse quando tive a infeliz ideia de deixar o meu carro aqui com você.

    — É que falta uma peça.

    — Peça? Mas o senhor é muito cara de pau! Que peça? O senhor nunca me falou de peça nenhuma.

    Para encurtar o imbróglio, o Corcel continua parado na oficina. Todavia, o Expedito teve um piripaque e precisou ser socorrido ao hospital. Pobre homem, não resistiu.

   O velório aconteceu no dia seguinte. E lá estavam o Leopoldo e o Boquinha para prestarem a última homenagem ao cliente reclamão. Cumprimentaram a viúva, os filhos e os netos do defunto e, em seguida, se aproximaram do caixão para dar o último adeus. 

     Leopoldo foi breve e, após algumas palavras, foi se juntar a um grupo de conhecidos. Boquinha ficou mais alguns minutos, talvez para se desculpar por prováveis desavenças. E, assim que já pensava em ir para perto do patrão, percebeu um pedaço de papel nas mãos do falecido. Intrigado, conseguiu puxá-lo, apesar da rigidez do corpo. 

        O mecânico ficou branco, cambaleou e quase tombou. Era um bilhete, cujo destinatário era ele: "Seu Boquinha, nem que eu precise ir até o inferno, o senhor vai me devolver o meu Corcel."

  • Nota de esclarecimento: O conto "Boquinha, Expedito e o Corcel 1973" foi publicado por Notibras no dia 11/9/2025.
  • https://www.notibras.com/site/boquinha-expedito-e-o-corcel-1973/

quarta-feira, 10 de setembro de 2025

Chinelo escangalhado


    Maranhense de Caxias, o velho Antunes, há tempos radicado em Brasília, gostava de contar causos de quanto saiu de sua terra natal rumo a São Paulo em busca de fortuna. Não ficou rico, mas a vida lhe deu um empurrãozinho para frente e, anos depois, por conta de oportunidade de emprego melhor, mudou-se para a nova capital do país. 

    Como costumava mencionar, chegou matuto na metrópole paulista, onde trabalhou de quase tudo: empacotador de supermercado, ajudante de pedreiro, garçom, lanterninha de cinema, porteiro e, finalmente, chofer de praça. Parecia até que iria se fixar no ofício, ainda mais depois que conseguiu juntar os panos com Elvira e financiar um cafofo ajeitado. Já se imaginava brincando com os futuros paulistanos que, certamente, chegariam para aumentar a família. 

    Não aconteceu como o imaginado, ainda mais porque, com exceção da primogênita, o resto dos herdeiros nasceram brasilienses. Mas essa é uma outra história, já que Antunes, ao receber um velho amigo, resolveu lhe contar sobre seus primeiros dias em São Paulo.

    Pois você acredita que, assim que desci do pau de arara, meu chinelo escangalhou?

    E não tinha jeito de arrumar?

    Que nada! Já estava pedindo arrego fazia tempo.

    Comprasse outra.

    E não foi o que fiz?

    Problema resolvido, então.

    Não foi tão fácil assim, Matias.

    Não?

    Não.

    E por que não, homem?

    Por causa de desentendido.

    Desentendido por conta de uma sandália?

    E não é que foi mesmo?

    Sério?

    Sério. Mas me deixa contar, se não vamos ficar nessa falação até a Elvira terminar o almoço. 

    — Pois, então, conte logo, homem de Deus!

    Pois como estava dizendo, com o chinelo escangalhado, precisava de um novo porque não dá pra andar descalço em cidade grande, que perigava até ser preso por vadiagem. 

     Tem razão.

    E lá fui eu comprar o meu chinelo. Mal cheguei, o vendedor olhou para os meus pés descalços e já foi dizendo que não tinha esmola. Mas logo falei que era cliente. Tirei até dinheiro do bolso da calça e mostrei para que o sujeito não tivesse qualquer resquício de dúvida sobre a minha pessoa. 

      Que vendedor desaforado, Antunes!

      — E não é? Mas me deixa terminar a história, pois o pernil já tá cheirando.

      Pois conte logo, meu amigo, que a fome já chegou aqui.

     — Hum! Pois lá estava eu, peito estufado, com a mão erguida balançando aquelas notas, quando disse: "Quero um par de japonesas!"

      — Tudo resolvido, né?

      — Que nada, Matias! Aí que a coisa degringolou de vez.

      — Ué, por quê, homem?

      — É que o sujeito arregalou aqueles olhos maiores que biloca e respondeu: "E quem não quer, meu amigo? Até eu, que sou casado, tô procurando, mesmo que seja apenas uma pra beijar no escurinho do cinema."

  • Nota de esclarecimento: O conto "Chinelo escangalhado" foi publicado por Notibras no dia 10/9/2025.
  • https://www.notibras.com/site/chinelo-escangalhado/