Sorte no jogo dos negócios, Hildebrando,
conduzindo seu Porsche, chegou à sua mansão de oito quartos. Estacionou na
garagem ao lado de duas relíquias das mais tradicionais marcas italianas:
Ferrari e Lamborghini. Desceu do veículo, caminhou até a enorme porta de
madeira de lei e, antes de entrar, olhou para o lado e sorriu para a ampla
piscina.
Já dentro de casa, admirou os quadros de
artistas famosos nas paredes. Pensou em se servir um drink, mas lá estava
Lúcio, o mordomo, com um copo de whisky do mais puro malte escocês sobre a
bandeja de prata. Agradeceu e deu dois goles, um breve, outro profundo. Em
seguida, subiu as escadas até a suíte principal, onde repousou o copo sobre a
cabeceira.
Em frente ao espelho do banheiro,
encarou o reflexo e sentiu saudade de se apaixonar. Tentou puxar pela memória o
gosto dos lábios da última namorada, mas mal se recordava do seu nome. Lúcia?
Ou seria Jane? Pensou por mais alguns instantes, até que teve certeza de que
era mesmo Lúcia. Jogou um pouco de água fresca no rosto, enxugou com a felpuda
toalha.
Hildebrando, antes de decidir
tomar banho, bebericou o resto de whisky. Retirou a roupa e a despejou no cesto
de vime. A ducha forte tocou-lhe as costas como um gesto agradável diante de
mais um dia voltado apenas à labuta. Levou mais tempo do que de costume, até
que, quase meia hora após, estava deitado. Cerrou as pálpebras e, num impulso,
levantou o tronco. Mariana!
Mariana havia sido a última
mulher que se deitou ao lado de Hildebrando. Como pôde esquecê-la? Por que
mesmo se separaram? Adormeceu antes de se lembrar de que a namorada havia se
apaixonado por um francês e, não tardou, foi com ele para Paris.
Hildebrando despertou bem mais
tarde do que de costume. Olhou o relógio e já passava das 11h. Tudo bem, era
sábado e não precisaria ir trabalhar. Na verdade, ele havia se comprometido a
analisar alguns documentos naquele final de semana, mas era algo que não
levaria mais do que duas ou três horas. Decidido, preferiu deixar a tarefa para
o dia seguinte.
Como já era
tarde demais para o café da manhã e muito cedo para o almoço, o sujeito decidiu
fazer um lanche na rua. Tal costume, assim como relacionamentos amorosos, não
era algo comum. Seja como for, não tardou, Hildebrando, cabelos ao vento,
dirigia a Ferrari pelas ruas da cidade, quando reparou certa aglomeração em uma
padaria na Asa Norte. Ali deveriam servir algo do seu gosto ou, então, poderia.
ao menos, parar para tomar um suco.
O contraste entre os outros carros
estacionados e a Ferrari logo chamou a atenção das pessoas. Mesmo em Brasília,
não é todo dia que se vê um automóvel tão luxuoso, ainda mais estacionado em
frente a uma padaria, digamos, popular. Hildebrando fingiu naturalidade, apesar
do ego inflado que fez seu coração bater a 300 quilômetros por hora.
Diante do balcão,
Hildebrando pareceu não gostar do que viu. No entanto, pediu uma coxinha e um
refrigerante. Não porque desejasse aquilo, mas porque percebeu o olhar de uma
linda mulher ao lado. Era nítido o interesse dela, não necessariamente por ele,
mais provável que fosse por conta da sua situação de, vá lá, homem com situação
financeira estável. Que fosse, mesmo porque era sábado, e não fazia qualquer
sentido o sujeito fazer juízo de valores.
No minuto seguinte,
lá estava o casal de última hora sentado a uma das inúmeras mesas do local.
Sorrisos para cá, sorrisos para lá, a timidez parece ter sido abandonada no
balcão, tanto é que Hildebrando, talvez por conta da Ferrari, se sentiu suficientemente
encorajado para pousar sua mão esquerda sobre a direita da beldade, que pareceu
aceitar de bom grado a investida.
Da padaria, foram dar um passeio pela
orla do Lago Paranoá. Hildebrando estacionou o veículo na Ermida Dom Bosco.
Shirley, este era o nome da gata, não se fez de rogada e tascou um ardente
beijo nos lábios do homem, que fingiu surpresa. E, o que parecia ser apenas um
encontro de uma tarde na capital federal, se transformou em relacionamento
sério.
Hildebrando há muito não se sentia tão
apaixonado e, a princípio, não se incomodou com certas interferências da
namorada. O problema foi que ela não se contentou apenas em fazer com que o
gajo se vestisse de maneira mais sóbria ou que parasse de falar tanto palavrão.
Ele até tentava fazer tudo para agradá-la. Mas eis que ele percebeu que Shirley
começou a exagerar na questão religiosa.
— Hildebrando, meu amor, você precisa se
dedicar mais seu tempo a Deus.
— Como assim?
— Pra que tanta
ostentação? Você deveria doar esses carros exorbitantes para igreja.
— Como assim? Deus por acaso tirou a carteira
de motorista?
A piada
pronta parece que não surtiu o efeito desejado. Tanto é que Shirley evitou o
toque do sujeito por quase uma semana. Na verdade, ele até começou a pensar que
poderia doar ao menos um dos veículos para igreja, quando, então, a mulher veio
com mais uma das suas ideias.
— Hildebrando,
andei pensando em uma coisa.
— Diga, minha
flor.
— Não gosto do serviço desse seu mordomo.
— O Lúcio?
— É.
— Como
assim?
— Andei conversando
com Deus, e Ele me disse para falar para você contratar o Aloísio no lugar
dele.
— O seu
colega da igreja?
— Sim, o
próprio.
Não se sabe
como essa conversa terminou, mas o Lúcio não perdeu o emprego de mordomo da
luxuosa mansão no Lago Sul. Quanto ao romance, parece que terminou naquele
mesmo dia, pois Shirley voltou a ser vista na mesma padaria. Já o Hildebrando
comprou um Fusca 1972 e tem mantido seus carrões devidamente estacionados na
garagem.
- Nota de esclarecimento: O conto "Hildebrando e a Ferrari" foi publicado por Notibras no dia 8/1/2025.
- https://www.notibras.com/site/empresario-de-sucesso-da-chega-pra-la-em-namorada-que-so-falava-em-religiao/