sexta-feira, 19 de dezembro de 2025

A misteriosa chuva de cartas

 

          Todos ali naquele vilarejo aguardavam pela chuva, que não dava as caras há quase dois anos, como se Deus estivesse testando a fé daquela gente. Ajoelhados ao lado da cama, os moradores suplicavam, enquanto a lavoura se perdia naquela seca, que parecia não ter fim. Foi então que algo aconteceu em mais uma manhã ensolarada, o que causou espanto em muitos, admiração em outros e desconfiança em alguns.

          Em vez da tão esperada água, o povo viu envelopes de cartas caindo do céu. Sim, inúmeras, centenas, milhares de correspondências, todas sem remetente e com destinatário a quem pudesse interessar.

          Laura, mãe de quatro crianças arteiras, não tinha tempo disponível para ler. Mesmo assim, talvez por curiosidade ou receio de perder oportunidade de algo desconhecido, tratou de catar um envelope antes mesmo dele cair no chão. Guardou-o no bolso da saia e retornou para casa, onde havia muita coisa para ser feita naquela manhã. 

          Juvenal, já passado dos 80 anos, viu aquilo como insanidade e, por isso, retornou para sua residência antes que a loucura o atingisse. Assim que entrou em casa, passou a chave na porta e cerrou as janelas. Foi só quando tirou o casaco e o pendurou no gancho preso à parede que percebeu que um sorrateiro envelope havia se instalado em um dos bolsos.

          Juliana e Dionísio, casal que andava às turras por coisas que nem se lembrava, também pegaram, cada um, um envelope. Intrigados, nem sabiam por que haviam feito aquilo. Talvez pelo simples motivo de não querer ficar fora de algo que poderia mudar seus destinos. Mas uma carta? Como um mero pedaço de papel teria a capacidade de transformar vidas? Bobagem. 

        Ninguém ficou de fora. Um envelope para cada um dos quase três mil moradores. Como aquilo era possível? O mais incrível é que, ao abrirem as missivas, eles constataram que as cartas lhe eram direcionadas. E nada de mensagens aleatórias, não apenas por dizerem coisas específicas, mas por citarem os nomes de cada um dos destinatários. 

          Não se sabe se foi por impulso, curiosidade ou suspeita de que se tratava de algo grandioso, mas todos resolveram responder as cartas. E foi o que fizeram e, não se sabe por qual razão, decidiram colocar todos os envelopes empilhados no meio da única praça da pequena vila. 

          Os dias passaram e nada. Foi aí que o pequeno Francisco, filho da Laura, resolveu contar os envelopes. Achou estranho, mas talvez tivesse errado na conta. Pediu ajuda à Lúcia, a irmã mais sábia. Realmente estava faltando uma carta. 

          Não tardou, as crianças descobriram que havia sido o velho Juvenal o ausente. Não se sabe se teria sido por esquecimento ou implicância, o sujeito ainda não tinha aberto o seu envelope, que continuava no bolso do seu casaco, que ainda estava pendurado no gancho preso à parede. 

          Decididos, Francisco e Lúcia foram bater à porta do antigo morador. Eles questionaram Juvenal, que achou aquilo uma tremenda baboseira. Seja como for, finalmente resolveu abrir o tal envelope, leu a mensagem e, impactado com aquelas palavras, pegou papel e lápis e, compulsivamente, escreveu, escreveu, escreveu...

          Missiva escrita, lá foram Francisco, Lúcia e o agora animado Juvenal depositarem o envelope lacrado sobre a pilha dos outros milhares. E todos os moradores se aproximaram, como se aguardassem algo grandioso acontecer. Aquele mundaréu de olhos fixos naquelas cartas. Nada. Nada parecia acontecer, até que alguém disse que aquilo tudo era um completo despropósito.

          Quando a multidão começou a se dispersar, eis que um redemoinho se formou do nada. Assustada, aquela gente não conseguiu se mover. E o redemoinho, impávido, se aproximou e se apoderou do monte de cartas e as levou embora. 

           Boquiabertas, as pessoas não acreditavam no que haviam acabado de assistir até que as suas faces começaram a sentir os primeiros pingos de chuva. E, felizes, sorriram.

  • Nota de esclarecimento: O conto "A misteriosa chuva de cartas" foi publicado no Notibras no dia 19/12/2025.
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quinta-feira, 18 de dezembro de 2025

Um velório muito louco

         

        Aquele velório prometia. Quer dizer, tudo indicava que seria muito concorrido, já que o defunto, apesar da fama duvidosa, era benquisto por parcela dos que o conhecia. Já a outra parte, melhor nem comentar, pois, dizem, falar mal dos mortos dá azar. 

      Arlindo Teixeira... Quem? Hum! Também, por esse nome, talvez nem a parentada soubesse quem era. Capaz de achar que fosse engano. 

      Arlindo Coca-Cola enfartou aos 67 anos e não teve quem desse jeito. Morreu a caminho do hospital. E motivos é que não faltaram para o triste fim desse Policarpo Quaresma desprovido de ideais.

        Bebia igual a uma porca. Gordo que nem um capado. Não fazia ginástica. Desse modo, não tinha como ajudar. Diziam os mais chegados que até durou muito.

       Lúcio Amendoim e Márcio Minhoca, os tais chegados, até a derradeira noite antes do último respiro, faziam companhia ao desprovido de cuidados com a própria saúde no botequim do Zeca. Como você já deve ter percebido, os dois também não eram adeptos da malhação, nem mesmo a contra Judas no sábado de aleluia. 

        Já no cemitério Campo da Esperança, na Asa Sul, em Brasília, enquanto davam o último adeus ao agora finado, Amendoim e Minhoca, talvez impressionados com a feição pálida do parceiro imóvel dentro do féretro, imaginaram, ao mesmo tempo, terem ouvido vozes. Eles se entreolharam e, então, deu-se o seguinte interlúdio.

        — Tu ouviu o que eu ouvi, Amendoim?

        — Como pode isso, Minhoca?

        — Num sei! Só sei que é a voz do Coca-Cola.

        Os dois fitaram o rosto do falecido, que parecia imitar o sorriso de Monalisa. Seria possível? Diante da dúvida, Minhoca arriscou.

          — Coca-Cola, foi tu que falou?

          Nada. Nem mesmo um ai. No entanto, assim que os dois estavam prestes a voltar à realidade, eis que Arlindo Coca-Cola, direto do féretro, arregalou os olhos e gargalhou. Minhoca e Amendoim tomaram um baita susto e se abraçaram de medo.

            Ainda com um resquício de coragem, Minhoca quis dar um pito no morto.

            — Pô, Coca-Cola! Quer matar a gente de susto?

          Foi como se aquelas palavras fizessem o rosto do Arlindo Coca-Cola voltar à palidez mórbida. Os colegas até tentaram puxar assunto, mas parecia que o moribundo não queria mais papo. Tanto é que permaneceu calado até que o caixão foi fechado. 

            Amigos em vida, os três esquifes foram depositados lado a lado. Quem sabe não continuariam aquela conversa no além?

  • Nota de esclarecimento: O conto "Um velório muito louco" foi publicado no Notibras no dia 18/12/2025.
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quarta-feira, 17 de dezembro de 2025

O dia em que tietei a Simone Magalhães, a poetisa inquieta

Foto Gaia Sophia

             Gente, e não é que conheci a poetisa inquieta do Café Literário? Sim, a própria! Simone Magalhães. Com aquele sorriso que envolve qualquer um. E eu, obviamente, me deixei ser envolvido, mesmo porque estava diante de uma das mais atuantes autoras do nosso tempo. Exagero? Sou fã, e fã tem dessas coisas! Então, é! Pronto e acabou!

          Pois é, confesso que a vida me leva para os superlativos, ainda mais diante de alguém que sabe pintar e bordar o sete, o oito, o milhão e o zilhão num guardanapo que seja, só para ficar de olho na reação do leitor. Simone é assim.

          O encontro aconteceu na Biblioteca Demonstrativa de Brasília, na Asa Sul, no dia 13 de dezembro de 2025. Por que escrevo a data completa? Coisa de fã, coisa de fã... Quem é me entende.

          Tietei, tietei e tietei, e ela se deixou tietar. Simpática além do infinito. E como aqueles olhos brilham! Brilham com a timidez da escritora. Sim, ela é tímida. Como é que pode? 

          A Simone e outros autores estavam lançando a Coletânea Estilo & Poesia, Volume 10, pela Editora Brunsmarck. E a minha agora amiga... Sim, ainda sou fã, mas, após esse encontro, nos tornamos amigos. Que nem minha filha Mariana diz: "Desculpa aí!"

          Mas como estava dizendo, a minha amiga Simone Magalhães tem um lindérrimo poema nesse livro que já devorei: Nos palcos da vida. Demais!!!

          Durante a nossa conversa, surgiram alguns nomes lembrados pela Simone, com destaque para a Cecília Baumann, o Daniel Marchi e o José Seabra. Todavia, do nada, ela me confidencia sua admiração pelo escritor J. Emiliano Cruz, figura constante no Café Literário.

          — Edu, o J. Emiliano é bom pra caramba!

          — Excelente! Um dos melhores! E gente boa demais!

          Simone Magalhães, uma poetisa talentosíssima, que escreve com inquietude e beleza incomuns. Sigo por aqui ainda muito fã e, agora também, amigo. 

  • Nota de esclarecimento: A crônica "O dia em que tietei a Simone Magalhães, a poetisa inquieta" foi publicada no Notibras no dia 17/12/2025.
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terça-feira, 16 de dezembro de 2025

Rebu no condomínio

   

          Arlete andava às turras com Eliosmar, vizinho de prédio na Asa Norte, na capital do país. Não que esse imbróglio fosse antigo, até porque, não fazia muito tempo, os dois mantinham, digamos, excelente relacionamento, mesmo que ambos fossem casados com pessoas distintas. Por sorte ou discrição, o romance, enquanto durou, parece não ter ido além da alcova. 

          O término do relacionamento não se deu por incompatibilidades ou falta de desejos. Nisso, aliás, os amantes pareciam ter nascido um para o outro, como adultos que, de repente, se percebem adolescentes diante da primeira paixão. O problema foi outro, que pegou Arlete de surpresa: eleição condominial.

          A mulher, que há tempos reclamava da conduta do síndico, o Juarez, resolveu lançar candidatura própria. Até aí, nenhum problema aparente, mesmo porque o desafeto havia decido não concorrer. E a situação caminhava para uma vitória da Arlete, já que ela era a única candidata ao cargo. No entanto, no minuto final da reunião, eis que alguém resolveu lançar-se no pleito. 

          Carla. Sim, justamente a Carla. Pois saiba você que a dita cuja era nada mais, nada menos do que a esposa, de papel passado e tudo, do Eliosmar. E isso, aliás, deixou o gajo numa sinuca de bico, pois, apesar de não querer se meter, foi obrigado pela mulher a fazer campanha para ela. 

          — Não é possível que você vai ficar ao lado daquela lambisgoia.

          — Arlete, mas a Carla é a minha mulher.

          — Hum! E eu o que sou?

          — Bem, você é... 

          — Sou o quê, Eliosmar? Diga! Diga!

          — Ué, você é mulher do Adamastor.

          — Ah, agora, então, eu sou mulher do Adamastor. É isso mesmo?

          — E não é?

          — Pois você é um cínico! Sim! Um cínico! 

          — Mas, Arlete...

          — Chega! Já entendi tudo! Sou apenas um passatempo pra você.

          — Não é isso, meu amor.

          — Amor? Não sou o seu amor! O seu amor é aquela usurpadora.

          — Usurpadora?

          — E não é? Desde quando ela quis ser síndica? Aposto que se candidatou apenas pra me apezinhar. E você... Ah, e você ainda tem a petulância de ficar ao lado dela?

          O término foi inevitável. E a campanha eleitoral, que parecia ser mais uma entre tantas outras, se tornou uma verdadeira guerra. E nenhuma das duas candidatas estava disposta a perder. 

          As ofensas mútuas aconteceram de modo vexaminoso. Nada era deixado de fora, inclusive um possível par de chifres que a Carla teria ganhado por suposta traição. E o pior é que quem espalhou a fofoca foi justamente o pivô do adultério. Anonimamente, é óbvio!

          No dia da votação, a Carla expôs seus planos de melhorias. Todavia, os moradores pareciam mais interessados no imbróglio, ainda mais por causa de um comentário maldoso da Arlete.

          — Pois é, Carla, como é que você vai dar conta de administrar o nosso condomínio, se não consegue nem mesmo tomar conta do seu marido?

          Por pouco, a assembleia não se tornou um ringue. Contidas pelos presentes, as concorrentes, cada uma no seu canto, ouviram a contagem de votos. Por 18 a 7, e 11 abstenções, eis que a Arlete foi eleita a nova síndica do condomínio. Mas não pense você que a pendenga acabou por aí.

          Ainda naquela noite, todos os moradores voltaram os ouvidos para a discussão vinda do apartamento 401. E a briga foi tamanha, que o Eliosmar achou por bem deixar a esposa falando sozinha e, então, foi passar a noite em um hotel. 

          Já na unidade 402, eis que o Adamastor comentou com a amada sobre aquele rebu.

          — Arlete, amor da minha vida, será que a Carla vai pedir o divórcio?

       — Hum! Não tô nem aí. Quero mais é ver o circo pegar fogo e o palhaço morrer queimado.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Rebu no condomínio" foi publicado no Notibras no dia 16/12/2025.
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segunda-feira, 15 de dezembro de 2025

Camila e o imbróglio da amiga

    

    Tudo havia começado como uma brincadeira. Bem, não exatamente assim. Seria, talvez, que nem válvula de escape. O problema é que a coisa pareceu fugir do controle, o que fez Marinês recorrer à melhor amiga. 

       Camila disse que poderiam conversar por telefone, mas Marinês achou melhor um encontro num café. Andava paranoica, temia que tivessem grampeado seu aparelho celular. 

      Assim que chegou ao local combinado, Camila percebeu a figura inquieta da colega. O que teria acontecido? Teria ela brigado com Bruno? Duvidava dessa possibilidade, ainda mais porque os dois pareciam se dar tão bem. Seja como for, aproximou-se com um sorriso nos lábios.

        — Você demorou.

        — Marinês, não atrasei nem cinco minutos.

        — Desculpe. É verdade. Você tem razão.

        — O que foi, mulher? Por que está assim?

        — Você não vai acreditar.

        — No quê? 

        — O Bruno.

        — O que tem ele?

        — Enlouqueceu.

        — Ah, bom! Pensei que fosse algo pior.

        — Pior? E o que poderia ser pior, Camila?

        — Sei lá! Vá que ele é casado ou algo assim.

        — Sem chance!

        — E como tu sabe? 

        — Tenho meus contatos.

        — Virou espiã agora, é?

        — Ah, esquece isso!

        — Tá bom! Mas o que o Bruno aprontou pra você estar tão nervosa?

        —É que ele me pareceu tão sincero.

        — Como assim?

        — A forma como disse que me amava.

        — Mas ele não mentiu. Acredito que ele te ama mesmo. Basta olhar pra cara de bobo dele quando fica perto de você.

         — Não duvido. Sei que ele me ama.

         — Tá! E qual é o problema?

         — É que ele me pediu em casamento.

         — Hum... E você aceitou?

         — Tu tá maluca, Camila? Esqueceu que já sou casada?

  • Nota de esclarecimento: O conto "Camila e o imbróglio da amiga" foi publicado no Notibras no dia 15/12/2025.
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domingo, 14 de dezembro de 2025

O plano da dona Pérola

        

         Alícia, mulher dos seus quase 40 anos, desfilava com desenvoltura por onde passava, o que despertava olhares de desejo, inveja, repulsa ou mesmo de mera curiosidade. Não que fosse tão mais bela ou tão mais inteligente do que as outras. Era por conta da atrevida independência, daquele seu modo despojado perante a vida que provocava tanto reboliço.

          A dama havia acabado de se mudar para um prédio na folclórica quadra 312 da Asa Norte, em Brasília. Logo foi notada por todos, e isso não é exagero. Até mesmo dona Pérola, cuja catarata avançada a impedia de reconhecer os próprios netos, não ficou alheia à nova moradora. Tanto é que sentiu um misto de ciúme e desejo reprimido desde que fora desposada pelo Antônio na década de 1970.

          Sem coragem para investir em possível romance, dona Pérola resolveu juntar forças com as matronas do condomínio a fim de proteger os respectivos maridos, bem como colocar um fim na provável ameaça. Coube, então, convidar a Alícia para um café de fim de tarde no apartamento de Dolores, uma das mais antigas residentes. 

          O evento aconteceu em um sábado chuvoso. Alícia, que até pensou em desistir de comparecer, achou por bem evitar tentar a sorte lá fora, ainda mais porque havia risco de alagamento nas tesourinhas, o que costuma dificultar o trânsito na capital. 

          Mal entrou no apartamento da Dolores, foi recepcionada esfuziantemente por todas. Afinal, o pensamento era de que se não dá para vencê-la, junte-se a ela. E foi imbuído desse espírito que a conversa teve início.

          — Alícia, seja muito bem-vinda ao nosso prédio. 

          — Muito obrigada, dona Dolores.

          — Por favor, não me chame de dona, que assim você me deixa ainda mais velha do que sou.

            — Ah, desculpe! A senhora... Quer dizer, você ainda é muito jovem, Dolores. 

           Papo vai, papo vem, as mulheres começaram a se simpatizar de verdade com Alícia. Mas eis que a Pérola fez questão de lembrar a todas o verdadeiro objetivo daquele café. 

           — Alícia, cadê o seu marido?

           — Marido? Que marido o quê, Pérola?

           — Ué, uma moça tão bonita que nem você precisa casar.

           — Nãããããoooo!!!

           — Ué, não gosta da fruta?

           — Amoooo!!!

           — Então?

           — Então o quê, Dolores?

           — Por que não se casa, mulher?

           — Ih, Dolores! Não troco o meu forrozinho por homem nenhum.

           Como já deu para perceber, o plano arquitetado pela Pérola não funcionou. Aliás, diria até que saiu pela culatra. É que, após o término, quando a Alícia e duas outras convidadas, a Amélia e a Lucinda, ambas octogenárias, já dentro do elevador para retornarem aos respectivos apartamentos, tiveram o seguinte interlúdio.

            — Alícia, a Lucinda e eu queríamos te perguntar uma coisa.

            — Pois pergunte.

            — É que...

            — Hum?

            — Ah, fale você, Lucinda, que não tenho coragem.

            — Sabe, Alícia?

            — Só vou saber se você me falar, Lucinda.

            — Ah, é que nós queremos saber se você pode nos levar nesse forrozinho da próxima vez. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "O plano da dona Pérola" foi publicado no Notibras no dia 14/12/2025.
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sábado, 13 de dezembro de 2025

Uma banca muito maluca

          

        Há quem diga que a Banca do Guima, que vende desde periódicos, refrigerantes, doces, chaveiros e canetas até o que Deus duvida, deveria fazer um puxadinho para atendimento psiquiátrico. É que por ali anda tanta gente, digamos, fora da curva, que não faltariam pacientes para o novo negócio. 

        Localizado na aprazível Sobradinho, no Distrito Federal, o pequeno, mas pujante comércio possui clientes do quilate do Bin Laden, folclórico morador da região, que já furtou, sem querer, obviamente, a chave da banca. Nesse dia, o Guima teve a vida virada do avesso. Entretanto, até onde me consta, tudo acabou bem ou, pelo menos, quase isso. 

       Além do ladrão de chaves alheias, há outros clientes impagáveis como, por exemplo, o Capitão, quase centenário, cuja esposa, dona Finória, só o chama de "Meu General". Outro tipo é o Gavião, que jura de pés juntos que já foi espião do antigo SNI. Ninguém acredita, mas não há quem duvide. Ainda perambula por lá, o Dr. Pocotó, alma serena até demais, que vai à banca sempre de forma discreta e tranquila para não chamar atenção, principalmente, do Zé Boião, verdadeiro chato de galocha. 

            A despeito de tanta gente que poderia muito bem passar uma temporada no Pinel, eis que por ali também anda a dona Sônia. No auge dos seus 75 anos, a mulher fala como se fosse narrar uma partida de futebol pelo rádio. É a tagarelice em pessoa, que desanda a falar justamente quando a banca está lotada. E o pobre Guima, que sempre procura atender a sua clientela de modo o mais gentil possível, fica completamente desnorteado. Todavia, até ele já não aguenta mais escutar tanta ladainha, ainda mais porque a tagarela não para um minuto sequer de tagarelar, tagarelar, tagarelar...

            Por conta desse estresse do dia a dia, o Guima não costuma abrir a banda aos domingos. É o seu dia de relaxar, tomar uma cerveja no sofá e assistir ao seu time do coração, que, até hoje, ninguém descobriu qual é. Talvez porque o sujeito não quer causar pendengas desnecessárias com os clientes malucos que perambulam por sua banca. É mesmo uma ótima estratégia. 

            Pois bem, lá estava o Guima em seu apartamento, quando percebeu que o tempo estava propício para um bom banho de piscina. Sorte a dele que no prédio tem uma na cobertura. E lá foi o gajo devidamente paramentado para um mergulho.

           Mal chegou, colocou os apetrechos sobre uma cadeira e, de sunga amarelo-limão discretíssima, caminhou até a borda da piscina. Sentou-se e, com os pés, experimentou a temperatura da água. Gelada, mas que lhe trouxe certo alívio, ainda mais porque o calor estava de rachar. 

       Quando já estava decidido a entrar na piscina, eis que, do nada, surgiu a dona Sônia de biquíni rosa-choque. O Guima precisou pegar um pouco de água e lavar os olhos. Não era possível, era mesmo ela. Mas como? Guima nem precisou pensar muito, pois, não tardou, lá foi a dona Sônia conversar com ele. 

          Guima, você por aqui! Que surpresa agradável! Blá-blá-blá...

                 — Dona Sônia, o que a senhora está fazendo aqui?

                — Você acredita que comprei um apartamento neste prédio. E não é só isso.

                — Tem mais?

              — Sim! Somos vizinhos de porta! Olha que coisa maravilhosa! Blá-blá-blá...

               — Ih, dona Sônia, a senhora vai me desculpar, mas me esqueci de abrir a banca. 

                E, tremendo mais do que vara verde, o Guima se despediu sem mais delongas e foi se trancar no seu apartamento. Decidiu que não sairia de lá nem se o prédio pegasse fogo. Por sorte, não se tem notícia de incêndio na localidade. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Uma banca muito maluca" foi publicada no Notibras no dia 13/12/2025.
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sexta-feira, 12 de dezembro de 2025

Peripécias de um viúvo

         

         Deoclécio, que há pouco perdera a mulher, Lourdes, companheira de quase 40 anos, andava cabisbaixo. Já havia pensado em dar cabo da própria vida, mas faltava-lhe ímpeto para tal. Não se engane, no entanto, pois o casal, após os filhos criados, até pensou em separação, coisa que definitivamente foi deixada de lado. Muito tempo de união, mesmo que aos solavancos, os corpos se acomodam e consideram deveras trabalhoso um possível recomeço. 

         Além das memórias e dos álbuns de fotografias, o viúvo manteve o falante papagaio Lourival, presente de casamento. A ave sempre pendeu para o lado de Lourdes, que lhe retribuía os agrados com pão molhado no leite. 

          — Lourdes, meu amor, o veterinário já falou que isso faz mal pro papagaio.

          — Hum! E desde quando veterinário sabe o que é bom pro Lourival?

          — Ué, ele estudou pra isso.

          — Bobagem! Quem sabe o que é bom pro meu menino sou eu.

         A despeito de fazer bem ou mal, o fato é que o papagaio quarentão aparentava dar e vender saúde. E, apesar da ausência inesperada de Lourdes, ainda mantinha certa distância do Deoclécio, que até tentou se aproximar. No entanto, após algumas bicadas, o homem declinou da ideia, apesar de não guardar rancor do Lourival. Tanto é que, não raro, fritava alguns pedaços de aipim e oferecia um quinhão para o louro, que não fazia desfeita. 

          Certo dia, enquanto degustava aipim com bons goles de café, o velho percebeu que o tempo havia mudado. Uma lufada de vento balançou a cortina, fazendo com que a parte de baixo do tecido lhe tocasse a face. Levantou para fechar a janela, quando constatou que o céu estava carregado de nuvens densas e escurecidas. Logo começou a cair um temporal.

          Transeuntes corriam de um lado para o outro em busca de abrigo. Nisso, uma jovem, não mais de 30 anos, talvez nem tenha percebido que um livro acabara de cair dos seus braços, que carregavam vários outros volumes. Aquela cena chamou a atenção de Deoclécio, que se sentiu incomodado por ninguém se preocupar em pegar aquele exemplar, que parecia castigado pelos pingos cada vez mais fortes. 

            O idoso tentou avisar as pessoas, mas ninguém parecia lhe dar bola. Por impulso, abriu a porta do apartamento, desceu as escadas e, decidido a resgatar aquele pobre livro, atirou-se debaixo da tempestade. Raios, trovões, água que batia sem piedade na pele. Deoclécio, afinal, conseguiu chegar ao lado da vítima. Agachou-se, tomou o livro em suas mãos, o segurou junto ao peito e, curvado, voltou correndo para o seu edifício. 

          Mal entrou no apartamento, Deoclécio pegou uma toalha e tentou enxugar ao máximo capa, folhas, tudo. Tudo encharcado. Ele não sabia se iria conseguir salvar aquele livro. Ainda assim, teve a ideia de deixá-lo atrás da geladeira, como fazia com suas meias úmidas, a fim de secá-lo. 

           Torcedor de nenhum time, resolveu buscar um filme na televisão. Por sorte, percebeu que iria começar um clássico do cinema nacional: "Matar ou correr", com Oscarito e Grande Otelo. Pensou em convidar o Lourival para ver o filme, mas constatou que o papagaio já estava nos braços de Morfeu. 

          Pipoca pronta, Deoclécio abriu uma lata de refrigerante e se acomodou no carcomido, mas aconchegante, sofá. Enquanto assistia ao filme, o sujeito fez uma viagem até a sua infância, quando teve seu primeiro contato com o cinema, justamente com "Matar ou correr". E, desde então, se apaixonou pela famosa dupla de atores. 

          Após o filme terminar, Deoclécio ainda buscou algo mais na televisão. Mudou de canal diversas vezes até que, sonolento, adormeceu. 

        Deoclécio acordou e buscou o relógio de parede. Quase meio-dia. Atordoado, levantou-se, cumprimentou o Lourival, encheu o pote de ração, trocou a água e lhe serviu o tradicional pão embebido em leite. Resolveu tomar banho. Quem sabe, assim, despertaria de vez?

          Enquanto a água quente caía sobre o rosto, Deoclécio pensava na vida. Sentiu-se desolado, como se todas as ilusões tivessem lhe sido arrancadas. Foi aí que, de repente, arregalou os olhos e se lembrou do livro. 

          Saiu do box sem desligar o chuveiro, correu até a cozinha, olhou atrás da geladeira e pegou o exemplar, que parecia recuperado. Seco. Completamente seco, ao contrário do homem, que, apressado, nem se lembrou de pegar a toalha. 

            Deoclécio acabou escorrendo por conta da água que escorria por seu corpo. Caiu de bumbum no chão, com o livro ao seu lado. Foi aí que ele leu o título: "Despido de ilusões", de um certo Eduardo Martínez.   

  • Nota de esclarecimento: O conto "Peripécias de um viúvo" foi publicado no Notibras no dia 12/12/2025.
  • https://www.notibras.com/site/peripecias-de-um-viuvo/

quinta-feira, 11 de dezembro de 2025

Gêmeos perversos

 

          Thiago e Matheus, gêmeos univitelinos, viviam aprontando desde a mais tenra idade. E todos ao redor pareciam se divertir, mas não porque as brincadeiras eram do agrado. Era simplesmente por uma questão de pertencimento. Pois é, os irmãos nasceram herdeiros. 

          Thiago, cinco minutos mais velho, talvez o mais malévolo, tendia a provocar medo nas pessoas, enquanto o caçula, vez ou outra, parecia pender para a candura. O problema é que ele era, de certo modo, dominado pelo irmão, que sempre o puxava de volta para o lado vil. 

            — Deixa de ser medroso, Matheus! 

             — Não é medo.

             — Então, é o quê?

             — Você não nunca sente remorso?

              — Remorso?

              — É. Você viu como a Raimunda ficou da última vez.

              — E daí?

              — E daí? Você ainda pergunta e daí?

              — Tu é mesmo um molengão!

              — Não sou. Mas é que...

              — É que o quê, Matheus?

              — Às vezes me dá pena dessa gente.

              — Pena? E tu agora é galinha? Có-có-có! Có-có-có!

              — Para!

              — Só paro se você vier comigo.

              — Tá bom! Mas vai ser a última vez, hein?!

             Nessa época em questão, verão de 1992, os dois, então com 15 anos, estavam passando alguns dias na fazenda dos avós, localizada em Padre Bernardo, município goiano próximo ao Distrito Federal. Provavelmente entediados pela calmaria do local, resolveram dar um susto na Josefina, a Fina, cozinheira da propriedade. 

            Mulher de estatura baixa, corpulenta, cuja face arredondada passava só bondade. Não poderia ser considerada velha, apesar de já passada com certa folga dos 50 anos. Aparentava certa timidez, mas sabia sorrir quando diante de uma boa conversa com os patrões, Esther e Hélio. 

          A ideia era esperar que todos dormissem, o que acontecia quase sempre antes das 22h. E foi o que ocorreu naquela noite de lua nova, o que tornou a região pura escuridão.

            — Vamos, Matheus. Já deu a hora.

            — Você tem certeza?

            — Do jeito que está quieto, até se cair uma pétala dá pra se ouvir.

            — Ok.

            O quarto da Fina ficava na parte de trás da casa, logo abaixo do quarto dos rapazes, no segundo andar. Ela gostava de dormir de janela aberta, pois era muito calorenta. E Thiago e Matheus, com uma faca e muita paciência, haviam tirado todo o conteúdo de uma melancia, feito dois grandes olhos, um nariz e uma boca com dois dentes, um em cima, outro embaixo. Mais ou menos como os estadunidenses fazem com a abóbora no tal Halloween. Completaram a arte com uma lanterna e um pequeno toca-fitas na parte interna e prenderam um gancho amarrado a uma corda. 

            Tudo pronto, Matheus acionou a tecla do aparelho, que começou a reproduzir a voz do Zé do Caixão. Logo em seguida, com a ajuda do irmão, começou a descer a melancia iluminada pela luz da lanterna. Os adolescentes tentavam abafar o riso, até que, de repente, sentiram que alguém havia puxado a melancia com tanta força, que os dois, pegos de surpresa, acabaram soltando a corda. 

            Sem saber o que fazer, Thiago e Matheus voltaram para cama e fingiram dormir até que, finalmente, adormeceram. Só despertaram quando a manhã já avançava, e a avó os chamou para tomar café. Cheios de fome, os irmãos desceram a escada rapidamente e foram até a cozinha, onde, para surpresa dos dois, só encontraram a avó. Thiago, então, a interrogou:

            — Ué, vó, cadê a medrosa da Fina?

            — Medrosa? Por que tá falando que a Fina é medrosa?

            — Ah, não é nada, não, vó. 

            — Pois saiba você que a Fina não tem medo de nada.

            — De nada? Nem de assombração?

            — Assombração? Hum! Thiago, você deve estar de brincadeira. A Fina nasceu no caos.

            Antes que os gêmeos pudessem dizer algo, eis que a porta se abre e surge a Fina. Ela havia passado a noite na casa de uma das filhas, na cidade, o que deixou o Thiago e o Matheus confusos. 

            Fina tratou de encher uma xícara com o café e, virando-se para os jovens, disse:

            — Não sei vocês, que são lá de Brasília. Mas, aqui na roça, ninguém resiste ao café da dona Esther. Uma delícia só.

            A cozinheira sorriu e deu uma piscadela para os gêmeos, que, olhos arregalados, sentiram um frio correr por todo o corpo. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Gêmeos perversos" foi publicado no Notibras no dia 11/12/2025.
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