quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

Hildebrando e a Ferrari

    

             Hildebrando, de tanto sucesso na profissão, não tinha tempo para coisas do coração. Era do trabalho para casa, da casa para o trabalho, sem falar das reuniões de última hora na multinacional. De tão dedicado, o homem era apontado por alguns como o mais forte candidato ao almejado posto de diretor da corporação. 

          Sorte no jogo dos negócios, Hildebrando, conduzindo seu Porsche, chegou à sua mansão de oito quartos. Estacionou na garagem ao lado de duas relíquias das mais tradicionais marcas italianas: Ferrari e Lamborghini. Desceu do veículo, caminhou até a enorme porta de madeira de lei e, antes de entrar, olhou para o lado e sorriu para a ampla piscina. 

          Já dentro de casa, admirou os quadros de artistas famosos nas paredes. Pensou em se servir um drink, mas lá estava Lúcio, o mordomo, com um copo de whisky do mais puro malte escocês sobre a bandeja de prata. Agradeceu e deu dois goles, um breve, outro profundo. Em seguida, subiu as escadas até a suíte principal, onde repousou o copo sobre a cabeceira.

          Em frente ao espelho do banheiro, encarou o reflexo e sentiu saudade de se apaixonar. Tentou puxar pela memória o gosto dos lábios da última namorada, mas mal se recordava do seu nome. Lúcia? Ou seria Jane? Pensou por mais alguns instantes, até que teve certeza de que era mesmo Lúcia. Jogou um pouco de água fresca no rosto, enxugou com a felpuda toalha.

          Hildebrando, antes de decidir tomar banho, bebericou o resto de whisky. Retirou a roupa e a despejou no cesto de vime. A ducha forte tocou-lhe as costas como um gesto agradável diante de mais um dia voltado apenas à labuta. Levou mais tempo do que de costume, até que, quase meia hora após, estava deitado. Cerrou as pálpebras e, num impulso, levantou o tronco. Mariana! 

          Mariana havia sido a última mulher que se deitou ao lado de Hildebrando. Como pôde esquecê-la? Por que mesmo se separaram? Adormeceu antes de se lembrar de que a namorada havia se apaixonado por um francês e, não tardou, foi com ele para Paris. 

          Hildebrando despertou bem mais tarde do que de costume. Olhou o relógio e já passava das 11h. Tudo bem, era sábado e não precisaria ir trabalhar. Na verdade, ele havia se comprometido a analisar alguns documentos naquele final de semana, mas era algo que não levaria mais do que duas ou três horas. Decidido, preferiu deixar a tarefa para o dia seguinte.

          Como já era tarde demais para o café da manhã e muito cedo para o almoço, o sujeito decidiu fazer um lanche na rua. Tal costume, assim como relacionamentos amorosos, não era algo comum. Seja como for, não tardou, Hildebrando, cabelos ao vento, dirigia a Ferrari pelas ruas da cidade, quando reparou certa aglomeração em uma padaria na Asa Norte. Ali deveriam servir algo do seu gosto ou, então, poderia. ao menos, parar para tomar um suco. 

          O contraste entre os outros carros estacionados e a Ferrari logo chamou a atenção das pessoas. Mesmo em Brasília, não é todo dia que se vê um automóvel tão luxuoso, ainda mais estacionado em frente a uma padaria, digamos, popular. Hildebrando fingiu naturalidade, apesar do ego inflado que fez seu coração bater a 300 quilômetros por hora. 

          Diante do balcão, Hildebrando pareceu não gostar do que viu. No entanto, pediu uma coxinha e um refrigerante. Não porque desejasse aquilo, mas porque percebeu o olhar de uma linda mulher ao lado. Era nítido o interesse dela, não necessariamente por ele, mais provável que fosse por conta da sua situação de, vá lá, homem com situação financeira estável. Que fosse, mesmo porque era sábado, e não fazia qualquer sentido o sujeito fazer juízo de valores. 

          No minuto seguinte, lá estava o casal de última hora sentado a uma das inúmeras mesas do local. Sorrisos para cá, sorrisos para lá, a timidez parece ter sido abandonada no balcão, tanto é que Hildebrando, talvez por conta da Ferrari, se sentiu suficientemente encorajado para pousar sua mão esquerda sobre a direita da beldade, que pareceu aceitar de bom grado a investida. 

           Da padaria, foram dar um passeio pela orla do Lago Paranoá. Hildebrando estacionou o veículo na Ermida Dom Bosco. Shirley, este era o nome da gata, não se fez de rogada e tascou um ardente beijo nos lábios do homem, que fingiu surpresa. E, o que parecia ser apenas um encontro de uma tarde na capital federal, se transformou em relacionamento sério.

          Hildebrando há muito não se sentia tão apaixonado e, a princípio, não se incomodou com certas interferências da namorada. O problema foi que ela não se contentou apenas em fazer com que o gajo se vestisse de maneira mais sóbria ou que parasse de falar tanto palavrão. Ele até tentava fazer tudo para agradá-la. Mas eis que ele percebeu que Shirley começou a exagerar na questão religiosa.

          — Hildebrando, meu amor, você precisa se dedicar mais seu tempo a Deus.

          — Como assim?

          — Pra que tanta ostentação? Você deveria doar esses carros exorbitantes para igreja.

          — Como assim? Deus por acaso tirou a carteira de motorista?

          A piada pronta parece que não surtiu o efeito desejado. Tanto é que Shirley evitou o toque do sujeito por quase uma semana. Na verdade, ele até começou a pensar que poderia doar ao menos um dos veículos para igreja, quando, então, a mulher veio com mais uma das suas ideias.

          — Hildebrando, andei pensando em uma coisa.

          — Diga, minha flor.

          — Não gosto do serviço desse seu mordomo.

          — O Lúcio?

          — É. 

          — Como assim? 

          — Andei conversando com Deus, e Ele me disse para falar para você contratar o Aloísio no lugar dele.

          — O seu colega da igreja?

          — Sim, o próprio.

          Não se sabe como essa conversa terminou, mas o Lúcio não perdeu o emprego de mordomo da luxuosa mansão no Lago Sul. Quanto ao romance, parece que terminou naquele mesmo dia, pois Shirley voltou a ser vista na mesma padaria. Já o Hildebrando comprou um Fusca 1972 e tem mantido seus carrões devidamente estacionados na garagem. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Hildebrando e a Ferrari" foi publicado por Notibras no dia 8/1/2025.
  • https://www.notibras.com/site/empresario-de-sucesso-da-chega-pra-la-em-namorada-que-so-falava-em-religiao/

terça-feira, 7 de janeiro de 2025

Cadê meus óculos?

     

    Nada pior do que receber puxão de orelha da própria cria. Pois é, Augusto, meu primogênito, anda às turras comigo desde que perdi meus óculos de grau. Na verdade, a bronca nem foi por conta da perda, mas de onde encontrei o maldito apetrecho que sou obrigada a usar para continuar meu hábito favorito desde os remotos tempos de menina: a leitura.

        — Mãe, veja se a senhora deixou os óculos na bolsa.

        — Que bolsa?

        — Sei lá! Já procurou?

        — Procurei por todos os cantos.

        — Será que não foi o gato?

        — Gata!

        — É. Será que não foi a gata?

        — Nina!

        — Tá! Será que não foi a Nina?

        — E por que ela pegaria os meus óculos?

        — Sei lá! 

        — Hum!

        Cansada dessa conversa, deixei o Augusto falando com as moscas e fui dar uma olhada por detrás do sofá. Vá que a Nina, sem querer, é óbvio, confundiu meus óculos com algum ratinho ou passarinho? Arrastei o móvel e nada de encontrar o meu companheiro de leitura. Augusto passou por mim e deu uma balançada de cabeça com aquele sorriso cínico que ele bem sabe que me irrita.

        — O que foi agora?

        — Nada, mãe.

        — Hum!

        — Não quer que eu compre óculos novos pra senhora?

        — Não! Deixa que eu vou!

        Passei uma escova nos cabelos e fui calçar os sapatos. Tenho a mania de guardá-los dentro das caixas, pois, assim, evita mofo. Mal abri a caixa, lá estavam meus óculos olhando para mim. Augusto, que não sai do meu pé, percebeu.

        — Pô, mãe! Dentro da caixa dos sapatos?

        — Hum! 

        — A senhora anda muita esquecida.

        — Não enche, tá?

        Irritada que fiquei com a inconveniência do meu rebento, decidi almoçar fora. Calcei meus sapatos, passei um batom e... Cadê as chaves do carro? Melhor dar um pulo na padaria da esquina e comer um misto-quente com suco de laranja.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Cadê meus óculos?" foi publicado por Notibras no dia 7/1/2025.
  • https://www.notibras.com/site/mae-turrona-pitosga-sente-peso-da-idade-chegando-com-as-falhas-da-memoria/

segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

Claudionaro e o traste

          

            Não restava dúvida de que Claudionora havia se casado com um traste. E não fora por falta de aviso, pois os pais da moça cansaram de avisá-la. Todavia, coração apaixonado tem o costume de tapar os olhos e adormecer a razão. 

          A contragosto, o pai da noiva a levou até o altar, onde a entregou a Tobias. Dona Juliana, tentando controlar as emoções, verteu em lágrimas todo seu desespero. Os presentes devem ter achado que a mulher estava chorando de felicidade e, ao final da cerimônia, foram parabenizá-la por momento tão único na vida de uma mãe, que é ver os filhos partirem para formar a própria família. 

          Os primeiros meses do casório foram repletos de romantismo. Tobias, aos 26 anos, procurava dar atenção à esposa, que ainda não havia completado 22. Ela, por sua vez, precisava se desdobrar nos afazeres domésticos logo após chegar exausta da faculdade, onde cursava pedagogia. 

          Não se sabe ao certo o motivo, mas parece que as mudanças começaram logo após Claudionora se formar. Ela, a princípio, não percebeu, mas dona Juliana não deixou de notar o olhar de ressentimento do genro. O homem, que trabalhava numa repartição pública, mal havia completado os estudos e jamais teve pretensão de fazer faculdade. 

          A situação degringolou de vez quando Claudionora começou a dar aulas e, pior, a ganhar o próprio dinheiro. Foi aí que a ficha caiu. A mulher até tentou se desvencilhar desse pensamento, mas não era tola o suficiente para continuar acreditando em sonhos de fada. Seus pais estavam certos: Tobias era mesmo um traste. 

          Claudionora pensou em se separar, mas divórcio estava fora de cogitação. Religiosa que era, acreditava nas palavras ditas pelo padre. Casamento era para toda vida, independentemente dos percalços pelo caminho, que foram muitos, ainda mais quando Tobias perdeu qualquer resquício de pudor em relação à própria misoginia.

            O sujeito passou a tratar a esposa como se fosse sua empregada. Bebia além da conta, empanturrava-se como se não houvesse amanhã. O peso já ultrapassara os 130 quilos. Mal chegava do emprego, o cretino se sentava na poltrona em frente à televisão e gritava.

              — Mulher, cadê a minha cerveja?

              Claudionora, nesses momentos, queria pular no pescoço do marido e esganá-lo. Olhava para o teto da cozinha como se Céu fosse e rezava. Em seguida, abria a geladeira e pegava uma das inúmeras latas de cerveja. 

              — Aqui está.

              — Por que demorou tanto, mulher?

              — Tô com o feijão no fogo.

              — Hum.

              A esposa, mal voltou para cozinha, ouviu o berro do gajo.

              — Claudionora, vem cá!

              A esposa arfou, mas foi ver o que Tobias queria.

               — Diga.

                — Andei pensando em uma coisa.

                — Hum. 

                — Não tem o Tonho da padaria?

                — Hum.

                — Sabia que a mulher dele completou 60 anos?

                — Hum.

                — Pois é, 60 anos! Já imaginou o Tonho tendo que viver ao lado de uma velha de 60 anos? Eu é que não conseguiria.

                 — Tobias, meu esposo, taí uma coisa que você não precisa se preocupar.

                — Não?

                — Não.

                — Ué, por quê?

               — Amor da minha vida, quando eu chegar aos 60 anos, já serei viúva há um tempão.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Claudionora e o traste" foi publicado por Notibras no dia 6/1/2025.
  • https://www.notibras.com/site/marido-fica-a-beira-da-cova-apos-esposa-ex-submissa-estudar-e-arranjar-emprego/

domingo, 5 de janeiro de 2025

O lado B da literatura, por Cassiano Condé, retratou o escritor Eduardo Martínez

    Eduardo Martínez é um premiado escritor carioca... Hum! Não estou aqui para falar sobre o seu lado público. Então, aqui vão algumas desimportâncias sobre o sujeito.

Nome: Eduardo Martínez.

Local e data de nascimento: Cidade Maravilhosa, 25 de janeiro de 1967.

Estado civil: casadíssimo com a Dona Irene.

Altura: 1,71 m.

Peso: 58 kg.

Sapato: 42 (pé esquerdo) e 41 (pé direito).

Cabelos: grisalhos, mas já foram pretos que nem graúna.

Olhos: azuis.

Formação: Jornalismo, Medicina Veterinária e Engenharia Agronômica. 

Melhor universade: Rural-RJ (UFRRJ).

Universidade mais linda: Rural-RJ (UFRRJ).

Cidade fora do país mais legal que conhece: Buenos Aires.

Cidade fora do país que é um porre: Miami.

Se não fosse carioca, gostaria de ser: soteropolitano.

Time: Botafogo. No entanto, quando está perto da Dona Irene, jura que é Palmeiras.

Atleta favorito: Mendonça (Botafogo), Marta, Martina Navratilova, Björn Borg e Muhammad Ali.

Cor favorita: azul.

Cor que não suporta: amarelo.

Prato predileto: aipim frito com carne de sol e muita manteiga de garrafa.

Prato que odeia: berinjela e quiabo.

Fruta que adora: melancia.

Fruta que não suporta: banana.

Escritores favoritos: Machado de Assis e Daniel Marchi.

Escritores contemporâneos de destaque: Daniel Marchi, Joseani Vieira, Ilma Pereira, Edna Domenica, Gilberto Motta, Rafaela Fernanda Lopes, Cadu Matos, Amauri Confortin.

Melhor lugar do mundo: Copacabana.

Pior lugar do mundo: Não disse, mas há quem jure que seria a capital do Sul mais ao Norte.

Música favorita: "Meu amigo Pedro" (Raul Seixas), "Senhorita" (Zé Geraldo); "Vamos fugir" (Gilberto Gil).

Cantor favorito: Cauby, Altemar Dutra, Lindy Naldo, Emílio Santiago, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Ney Matogrosso, Martinho da Vila e Elvis.

Músico favorito: Marcio Petracco e Johann Sebastian Bach.

Melhor veículo jornalístico: Notibras.

Melhor jornalista: José Seabra, Armando Cardoso, Marta Nobre, Mathuzalém Júnior e Wenceslau Araújo.

Melhor astrólogo: Francisco Seabra.

Beatles ou Stones: Secos & Molhados.

Cantora: Alcione, Elis Regina, Beth Carvalho, Gal Costa, Maria Bethânia, Ângela Maria e Tina Turner.

Ator: Lázaro Ramos, Matheus Nastergale, Othon Bastos, Tonico Pereira, Osmar Prado, Ricardo Darín, Oscar Martínez, Guillermo Francella, Al Pacino, Paul Newman, Robert Duvall, Gregory Peck, James Stweart, Marlon Brando, Christoph Waltz e Tio Celso (Ainda estou aqui).

Atriz: Fernanda Montenegro, Ruth de Souza, Laura Cardoso, Leandra Leal, Sônia Braga, Marieta Severo, Léa Garcia, Viola Davis, Octavia Spencer, Susan Sarandon, Meryl Streep, Helen Mirren.

Se não fosse Eduardo Martínez, quem gostaria de ser: Daniel Marchi.

Melhor amigo dentro da literatura: Daniel Marchi, José Seabra e Amauri Confortin.

Melhor amigo fora da literatura: Johnny, Antonio Manoel, Daniel Marchi, José Seabra, Maria Lúcia, Grace, Amanda, Adriana, Taíla, Cleidson, Flavio, Chico, Marcio Petracco, Leandro Mendes, Juninho, Leo, Gilmar, Don Pedrito e Ricky Ricardo.

É um excelente: nadador.

É um péssimo: cantor.

Animal: cachorro.

Livro favorito: "Quincas Borba" (Machado de Assis) e "A verdade nos seres" (Daniel Marchi).

Filme: "Central do Brasil", "Ainda estou aqui", "Vida de inseto", "O poderoso chefão", "Relatos selvagens", "Um conto chinês", "O filho da noiva".

Morre de medo: tubarão.

Enfrenta sem problema: barata.

Um sonho: aposentadoria.

Um pesadelo: trabalho.

  • Nota de esclarecimento: O lado B da literatura, por Cassiano Condé, retratou o escritor Eduardo Martínez. Tal matéria foi publicada no Café Literário do Notibras no dia 5/1/2025.
  • https://www.notibras.com/site/carioca-que-podia-ter-nascido-baiano-premiado-valente-teme-tubarao/ 

Zuleica e o mexerico

    

        Zuleica era afeita a falar da vida alheia. De tão tarimbada, comentava qualquer assunto que tivesse oportunidade de ouvir e, caso não o achasse suficientemente palatável, acrescentava tempero a gosto do freguês. Uma pimentinha aqui, um punhado de coentro ali, um tanto de pimenta acolá, sem falar do sal, que, vez ou outra, fazia a pressão arterial dos ouvintes se elevar a tal nível que, não raro, sobrava cobras e lagartos para todo lado.  

          Quem não se conformava com a mania da mulher era justamente Heraldo, o marido. Cansado de passar desconforto por conta das fofocas da esposa, o gajo apertou o passo para chegar logo ao lar, doce lar. Mal abriu a porta, flagrou a amada tagarelando maledicências com Neide, vizinha do andar acima.

          — Que coisa, Zuleica!

        — Pra você ver, mulher! Não dá pra confiar em ninguém mais neste mundo.

          — É verdade! Coitado do marido da Claudete. 

          — Coitado nada! Aquele ali também não é flor que se cheire. 

          — Sério?

          — Hum! Se eu te conto, tu cai dura aqui!

          — Pois conte, mulher!

          De tão entretida com a conversa, as duas amigas quase não perceberam a chegada do homem. Ele beijou o rosto da Zuleica e cumprimentou a convidada.

          — Oi, amor! Chegou mais cedo hoje.

          — É que não estava me sentindo bem. 

          — Hum! Aposto que andou comendo besteira de novo.

          — Estou melhor agora.

          — Hum! Vou preparar um chá de boldo pra você. Quer também, Neide?

          — Obrigada, Zuleica. Mas preciso ir, que o Julião já, já chega também. 

          Após Neide sair, Heraldo, cara amarrada, acomodou-se no sofá. 

          — Que cara é essa, meu bem?

          — Nada.

          — Como não é nada?

          — Zuleica, que mania feia de ficar futricando a vida dos outros!

          — Hum! 

          — Quando é que você vai parar com isso? O povo vive comentando.

          — Heraldo, meu querido, se não fosse o mexerico, a humanidade ainda estaria grunhindo.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Zuleica e o mexerico" foi publicado por Notibras no dia 5/1/2025.
  • https://www.notibras.com/site/zuleika-fofoqueira-justifica-intrigas-como-ato-de-evolucao-da-humanidade/

sábado, 4 de janeiro de 2025

Os cunhados e a discórdia

 

  Laureano, solteirão mais do que convicto, não se dava com Deóclides, o cunhado. Os dois não trocavam palavras, apesar de morarem no mesmo sítio. Aliás, o modo como essa situação se deu é até curiosa e, por isso, vale a pena ser contada.

           Deóclides, aos 23 anos, se viu apaixonado por Gilda. A moça pareceu interessada, tanto é que aceitou o pedido de casamento sem esboçar qualquer indício de desapontamento. Talvez fosse boa atriz ou, então, tímida o suficiente para contrariar a aprovação da família, ainda mais porque o noivo apresentava boa procedência, sem contar que era proprietário de bom comércio na cidade e residia em bela propriedade rural.   

            O casal, apesar de algumas rusgas, viveu uma vida harmoniosa. Deóclides a tudo aceitava, inclusive o pedido da mulher para que o irmão dela, Laureano, residisse no sítio. Obviamente em um pequeno galpão, logo transformado em moradia. Gilda sabia que o irmão e o marido não se bicavam, mas Laureano, com as finanças às minguas, precisava de um teto. 

           O que parecia ser circunstância momentânea se estendeu por décadas. E, durante todo esse tempo, nenhuma palavra foi trocada entre os cunhados. Se precisassem se comunicar, usavam Gilda como intermediária. Mas eis que, por mera distração, Gilda tropeçou numa pedra qualquer de Drummond e bateu a cabeça em outra menos poética. 

           O enterro se deu no dia seguinte. Laureano e Deóclides, cada um no seu canto, verteram lágrimas sinceras. Em seguida, voltaram para o sítio, onde se isolaram ainda mais um do outro. É verdade que, diante de tamanha perda, pensaram em se reconciliar, fato que jamais aconteceu. Rabugentos que eram, deixaram de lado qualquer tentativa de aproximação. 

            Mais um par de anos, foi a vez de Laureano deixar o plano material. O corpo enrijecido foi encontrado na poltrona. Quem o achou foi Chiquinha, empregada de Deóclides. Não que ele estivesse preocupado com o sumiço do cunhado. Era mais por curiosidade sobre o que havia acontecido com o desafeto.

            — Chiquinha, vá ver o que aconteceu com o irmão da falecida.

            Assim que retornou, a mulher, cara mais branca do que vestido de noiva intocada, balbuciou:

            — Patrão, o homi morreu.

           — Desgraça! Agora vou ter que pagar até pelo enterro daquele traste. 

            Durante o velório, Deóclides não fez questão de manter as aparências. Tanto é que chegou bem perto do defunto e disse o que estava represado durante mais de 40 anos. Só não cuspiu no rosto do cunhado porque pensou que não valia a pena gastar ainda mais saliva.

            Deóclides retornou à noite para o sítio. Sentou-se na cadeira de balanço na varanda e, pensativo, fitou a residência de Laureno madrugada adentro. Acabou adormecendo, sendo despertado pelo canto dos galos no amplo terreiro. Resmungou algumas palavras e ergueu o corpanzil dolorido. 

           Quase uma semana após o enterro, Deóclides mandou atear fogo no barraco do desafeiçoado.  Foi momento de puro regozijo. Abriu a melhor garrafa de vinho tinto e a sorveu por inteiro, enquanto as labaredas tomavam paredes, telhado, assoalho e móveis do antigo abrigo do finado.

            Livre! Finalmente livre! Deóclides não precisaria mais se preocupar com o cunhado. Ele até imaginou que o desagradável sujeito estivesse tendo uma conversinha com o Demônio em pessoa. 

           — O bate-papo deve estar fervendo! 

           No dia seguinte, Deóclides foi se certificar de que só havia cinzas. Para seu espanto, percebeu um cofre intacto. Chegou mais perto, pegou o lenço no bolso da calça e limpou o objeto, que estava trancado. Qual o segredo? Tentou pelos próximos dois dias, até que mandou vir o chaveiro.

           — Seu Deóclides, faço o serviço.

           — Pois faça!

           — Hum... Quer o modo ligeiro ou demorado?

            — Ligeiro, homem!

           Menos de meia hora após, o cofre estava arrombado. Deóclides, precavido, pagou o preço combinado para o chaveiro e, em seguida, mandou o chaveiro ir embora. O dono do sítio observou o profissional entrar no automóvel e sumir na estrada de chão. 

           Somente após ter certeza de que ninguém o estava observando é que Deóclides, finalmente, abriu a porta do cofre. Caiu para trás, ofuscado pelos raios do sol refletidos nas diversas barras de ouro devidamente empilhadas. O miserável do cunhado, apesar de ter levado uma vida de favores, era milionário.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Os cunhados e a discórdia" foi publicado por Notibras no dia 4/1/2025.
  • https://www.notibras.com/site/deoclides-viuvo-de-gilda-acha-ouro-escondido-pelo-desafortunado-laureano/

sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

Evelina e a arte da sedução

             Evelina nascera com a beleza virada para Lua, o que fazia com que todos os olhares se voltassem para ela, que passava faceira, ciente dos próprios atributos. No entanto, não era apenas as belas feições que faziam daquela mulher alvo de cobiça, inveja e discórdia. É que a beldade carregava consigo a arte da sedução. 

               Quando percebeu esse dom, Evelina sorriu diante do espelho e teve certeza de que jamais sofreria por amor. Na verdade, de tanto usar tal poder, nem tinha espaço para se afeiçoar a ninguém. O problema é que os gajos choramingavam para que ela não os abandonasse. Uma chatice, mas que a lindona parecia levar numa boa. 

               Uma das benesses de seu estilo de vida era a quantidade de presentes recebida. E não pense você que eram apenas bichos de pelúcia e caixas de bombons finos, que ela presenteava as amigas desafortunadas de amores. Evelina ganhava tantas joias, que poderia até abrir uma joalheria. Isso sem falar dos automóveis e até de dois apartamentos dados por amantes milionários. 

               Se Evelina adorava receber presentes? Ah, até que gostava. No entanto, isso não era o mote maior para usar seu charme sobre os homens. Era a conquista que lhe dava prazer. Tanto é que, não raro, ela procurava novos desafios, como aconteceu por esses dias.

               O novo funcionário da mesma repartição onde Evelina trabalhava despertou a atenção da gata. Adílio, tipo bonitão, 34 anos, recém-casado, só tinha olhos para Laura, a mulher dos seus sonhos. E a recíproca era verdadeira, como provavam os tórridos momentos de amor. O sujeito se tornou um troféu a ser conquistado e, não tardou, Evelina começou a se insinuar. 

               Não foi preciso mais do que uma gingada de quadril para que Adílio se sentisse inebriado. E também não foi necessário algo além do que palavras diretas, todas ditas por Evelina diante do sujeito completamente aparvalhado.

               — Quero dar uma fugida com você na hora do almoço.

               Sem ter como refutar tamanha oferta, Adílio apenas teve tempo de escovar os dentes pouco antes de sair. Queria se certificar de que o hálito não desagradaria a colega. Depois de conferir o próprio bafo, sorriu aquele sorriso nervoso em frente ao espelho e, discretamente, passou pela mesa de Evelina. Ela notou que a sua nova presa havia sido fisgada e, então, levantou-se e foi encontrá-la na calçada. 

              De mãos dadas, o novo casal rumou para um discreto hotel ali perto. Mal entraram, não perderam tempo, mesmo porque precisariam retornar para o serviço para cumprir o resto do expediente. 

              — Te amo!

              — Ama?

              — Amo!

              — Deixa de bobagem, Adílio.

              — Não é bobagem.

              — Óbvio que é.

              Apesar das falas divergentes, os dois passaram a buscar o mesmo hotel durante quase duas semanas. No trabalho, ninguém pareceu desconfiar. Entretanto, Laura percebeu que o marido andava com olhar disperso. Como não era boba, tratou de investigar o caso.

               Mais alguns dias, a esposa de Adílio conseguiu desvendar o mistério. Furiosa, pensou em descarregar tudo sobre o marido. Todavia, algo a fez ir atrás da tal fulana destruidora de lares. E lá foi a traída bater à porta do apartamento de Evelina.

               Assim que abriu a porta, Evelina se deparou com aquela face repleta de cólera. Invés de entrar em desespero, a tranquilidade se instalou em seu âmago. Seria ela capaz de usar as mesmas armas com mulheres? Ademais, sentiu-se atraída pela figura enraivecida. 

               Laura, a princípio ríspida, logo se viu em uma emboscada. Sem entender como é que aquilo teria acontecido, lançou um olhar de surpresa e desejo para a amante do marido.

               — Evelina, por acaso você está tentando me seduzir?

               Não se sabe ao certo o que aconteceu depois disso, mas, até onde se tem notícia, o casamento de Laura e Adílio está de vento e popa. E, desde então, os dois recebem a visita de Evelina para jantar. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Evelina e a arte da sedução" foi publicado por Notibras no dia 3/1/2025.
  • https://www.notibras.com/site/evelina-com-sua-arte-de-seducao-sabe-levar-na-manha-ate-esposa-traida/

quinta-feira, 2 de janeiro de 2025

Frodo e Farofinha

    Parceiros de inúmeras caçadas noturnas, aqueles dois felinos, barrigas devidamente forradas com dois graúdos ratos, faziam a mais que merecida sesta debruçados sobre o telhado de uma das casas da região.

     — Você viu?

     — O quê?

    — Ih, já vi que tá comendo mosca.

    — E eu lá sou gato de comer mosca, Frodo?

    — Anúbis!

    — Hum. Pelo que me recordo, aquela sua dona só te chamava de Frodo.

    — Nunca tive dona. Sou das ruas, Farofinha.

    — Que mané Farofinha! Amon!

    — Hum. Ué, mas e aquele gordão do boteco da esquina?

    — O que tem ele?

    — Só ouço o gordão falando: "Cadê o meu Farofinha?"

  — Ele é um bobalhão. Nem desconfia que fui eu que comi o canário dele. Até hoje o sujeito fica assobiando na vã esperança de um dia o bicho voltar. 

    — Hum.

    — Que foi, Anúbis?

    — Tava gostoso?

    — O canário?

    — É.

    — Muita pena e pouca carne. Nem deu pro cheiro.

       Os dois voltaram a olhar a rua. Nenhuma palavra, até que o silêncio foi interrompido por uma voz conhecida.

        — Frodo! Frodo! Froooooodoooooo! Cadê você, meu fofinho?

    Era a moradora da casa da esquina. Nisso, os dois gatos se encararam por um instante, até que Anúbis se espreguiçou e saiu se equilibrando pela mureta até ganhar a calçada. Se ele olhasse para trás, perceberia o sorriso sarcástico do amigo.

    Amon ficou por ali por mais algum tempo, até que começou a se sentir entediado. Bocejou, espreguiçou-se e, num salto elástico, chegou à calçada. Caminhou em direção oposta à do amigo até se esbarrar nas pernas do dono do boteco. 

       — Farofinha, seu danado! Por onde tem andado? Vem cá, que tenho uma sardinha pra você, meu moleque.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Frodo e Farofinha" foi publicado por Notibras no dia 2/1/2025.
  • https://www.notibras.com/site/editoria/quadradinho-em-foco/

quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

O jornalista e a colunista

    

Adamastor, que outrora trabalhara em um jornaleco pra lá de sanguinolento, conseguia guardar algumas manchetes. Isso apesar do Alzheimer, cada dia mais avançado. Por conta disso, os parcos amigos que cismavam em lutar contra os inevitáveis sete palmos, eram unânimes em afirmar categoricamente:

          — O Adamastor? Ah, aquele ali não tem histórias, mas catástrofes. 

          Diante de tamanha sina, o gajo nem tentava florear a crueza da existência. No entanto, caso alguém lhe dissesse que era pessimista, logo tratava de rebatê-lo.

          — Pessimista, não, meu amigo! Sou realista!

          — E onde fica o amor nisso tudo, Adamastor?

          — Amor? Que amor? A única vez que caí nessa ladainha foi pior do que tiro à queima-roupa.

          O homem não gostava nem de falar o nome da responsável pelo seu único momento de desatino em quase 80 anos de razão. Obviamente que ele ainda o guardava com aquele amargor de fel. Pois bem, a fulana se chamava Simone. 

          Pouca coisa além de um metro e cinquenta, cinquenta e cinco quilos sem muito esforço, a cútis de fazer inveja às outras mulheres, Simone escrevia uma coluna num jornal mais gabaritado, mas que pertencia ao mesmo grupo empresarial. Falava sobre os eventos da alta sociedade e, por isso mesmo, seria praticamente impossível seu caminho cruzar com o do Adamastor. Mas eis que o improvável aconteceu.

          Roberto Gusmão, industrial mais que endinheirado, vez ou outra, figurava como personagem da coluna de Simone. Isso até que, por um momento de ciúme, foi parar no texto do Adamastor. O motivo? Ah, o tal Gusmão, mulherengo dos mais afamados, não suportou descobrir que a esposa estava tendo um caso com o motorista. Foi tiro à queima-roupa.

          O assassino-viúvo, usando todo o seu poder, conseguiu se livrar da cadeia. Foi a julgamento, é verdade, mas a sociedade da época ficou ao seu lado. De algoz, passou a ser retratado como vítima de adultério. De tão absurda foi a atuação do advogado de defesa, que não seria de se admirar se o juiz tivesse mandado desenterrar a defunta apenas para que ela ouvisse a sentença: culpada!

                Por conta desse personagem que passou a figurar nos dois veículos de notícias, Simone e Adamastor se tornaram quase amigos, pois, antes que chegassem a esse nível, se viram apaixonados. O relacionamento se tornou tão intenso, que, não raro, ela trocava uma palavra ou outra nos escritos do namorado, enquanto ele dava pequenas pinceladas de sangue no texto da colunista. 

                Pela primeira vez na vida, Adamastor conseguia enxergar um princípio de arco-íris no céu sempre cinzento. E a coisa ficou tão séria, que ele pensou em pedir a mão da amada em casamento. Para você ver como a situação não estava para brincadeira. Todavia, eis que algo aconteceu.

                  Um bilhete. Um mísero e famigerado bilhete sobre a mesa de canto. Adamastor, ainda sonolento pela tórrida noite de amor, sentiu desconforto por causa da luz que entrava pela fresta da cortina. Tateou o outro lado da cama, mas não encontrou o corpo de Simone. Finalmente, abriu os olhos e se deparou com um pedaço de papel. Esticou o braço e o tomou para si.

                "Há momentos que precisam ser findados para se eternizarem.

                                                                                                      Simone"

                 Adamastor ficou arrasado, mas aceitou a despedida sem arroubos. Bebeu mais do que de costume por uma semana, até que retornou à dose dupla de uísque com duas pedras de gelo logo após entrar no módico apartamento. Dois ou três cigarros completavam o quadro e, por fim, tomava uma ducha antes de dormir. No dia seguinte, sabia que precisaria dar cor ao sangue que não parava de escorrer pelas ruas da cidade. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "O jornalista e a colunista" foi publicado por Notibras no dia 1º/01/2025.
  • https://www.notibras.com/site/fim-de-breve-romance-vira-tomento-como-tragedia-no-noticiario-de-sangue/