domingo, 13 de abril de 2025

Irmãos arteiros

    

O ano era 1957, mas bem que poderia ser 1958. Geraldo e José, nove e seis anos, aprontavam todas e, quando tinham tempo, não deixavam passar oportunidade de aprontar mais outras tantas. Meninos sendo meninos, como a avó gostava de dizer, ainda mais porque era a favor de que a fase mais divertida da vida deveria ser usufruída de modo o mais arteiro possível. O pai é que não concordava muito com isso, como se tivesse sido um anjo durante a infância.

          — Deixa os garotos se divertirem, Orlando.

          — Mamãe, esses moleques aprontam demais!

          — Igualzinho a você nessa idade.

          — Eu?

          — E quem mais?

          — Ué, o Roberto!

          — O Roberto, meu filho? Pois você não sabe que eu sei muito bem que era você o cabeça das artes da rua?

          — Eu?

          — Sim! O senhor mesmo!

          A despeito do pito tomado da matriarca, Orlando não deixou a fama de pai severo que fazia questão de cultivar perante os filhos. Ah, no menor deslize da cria, o chinelo cantava que era uma beleza. E não é que o homem teve a oportunidade de cumprir tal sina justamente naquele final de tarde, quando chegou aos seus ouvidos uma história que já se desenrolava há alguns dias?

          Geraldo e José, não se sabe onde, arrumaram um par de óculos escuros e uma bengala para se fingirem de cegos e, assim, atravessarem a rua mais movimentada da cidade. Enquanto um colocava os óculos e segurava a bengala, o outro pegava no braço do cego de araque e paravam o trânsito. Mal chegavam ao outro lado da rua, trocavam de papéis e retornavam. E assim ficavam durante um bom tempo.

       Pois naquele mesmo dia, ao chegarem ao lar, doce lar, os meninos foram recepcionados por Orlando, que segurava o chinelo, certo de que daria uma boa lição nos garotos. Entretanto, o pai talvez tenha se lembrado da própria época de meninices ou, então, ficou aliviado de ver os filhos chegarem são e salvos em casa. Mesmo assim, disse algo que, até hoje, é lembrado pelos irmãos.

    — Se aparecer alguém atropelado aqui, eu não dou nem um Merthiolate.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Irmãos arteiros" foi publicado por Notibras no dia 13/4/2025.
  • https://www.notibras.com/site/na-brasilia-que-engatinhava-geraldo-e-jose-aprontavam-todas-para-agonia-do-pai/

O LADO B DA LITERATURA RETRATA A DONA IRENE (POR CASSIANO CONDÉ)

    

        Hoje é dia de desvendar O LADO B DA LITERATURA da Dona Irene, poetisa das mais talentosas, que é casada com o premiado escritor carioca Eduardo Martínez, cujos textos são publicados diariamente aqui no Notibras. Além de tuiteira afamada (até o Presidente Lula segue a moçoila), ela é respeitável servidora pública federal, sempre tendo exercido a função de assistente social.

          "É engraçado que muita gente se surpreende quando descobre que sou assistente social. Talvez seja por causa das minhas postagens sobre política e humor no aplicativo "X" (antigo Twitter)." Ela é listada entre as cinco mais famosas influenciadoras brasileiras que falam de política de forma humorada. 
          Outra curiosidade sobre a Dona Irene é que ela é proprietária de um apartamento que pertenceu ao saudoso escritor gaúcho Caio Fernando Abreu, em Porto Alegre. "Foi uma surpresa descobrir tamanha coincidência, ainda mais porque há tempos era leitora do Caio."
          Apaixonada por cães, a nossa poetisa convive com as buldogues Bebel e Clarinha. "Elas são minhas filhas também, e adoram brincar com a Maria Luiza (Malulinha). Fico admirada como a Bebel e a Clarinha têm paciência com a caçula da família."
          Além de ter enchido a paciência do marido para que ele retornasse à literatura, foi incentivadora de outro escritor, o Daniel Marchi. "O Dan é tão bom, que creio que nem ele consegue ter dimensão do próprio talento. Fui testemunha de quantas vezes o Edu falou pro Dan publicar, mas, pra mim, foi só quando eu conversei com ele que a coisa andou. Deve ser porque homens são acostumados a obedecer às mulheres desde sempre."
          Dona Irene nasceu em Teresina-PI, mas nunca morou na sua terra natal. "Sou a caçula, e minha mãe quase morreu no parto da minha irmã, que nasceu em Caxias-MA. Por isso, mamãe preferiu que eu nascesse em Teresina, onde os hospitais são melhores. Mas cresci em Caxias, até que, já adolescente, me mudei para Brasília e, muitos anos após, para Porto Alegre. Então, é difícil pra mim falar que sou apenas piauiense, pois também me sinto maranhense, que nem a minha família."
          — Tá, Dona Irene, mas a sua filha não é gaúcha?
       — É verdade que a Maria Luiza é gaúcha, mas ela adora dormir em rede e comer cuscuz.
            A Dona Irene ama viajar, especialmente pegar a estrada. "É bom demais pegar a estrada ao lado do Edu, mas ultimamente tenho viajado mais de avião por conta da nossa filha", 
            — Dona Irene, já viajou para outros países?
            — Até o momento, conheço apenas o Argentina e o Uruguai. Pro Uruguai fui algumas vezes, mas a melhor viagem mesmo foi para Buenos Aires.
            — Gostou tanto assim?
          — Bem, na época, o Edu e eu estávamos em João Pessoa-PB e, de lá, fomos direto para Buenos Aires. Lembro que o Edu e eu estávamos tristes, pois não queríamos sair de João Pessoa, mas, assim que chegamos à capital argentina, amamos. O Edu já conhecia, mas aquela era a minha primeira vez ali. E aconteceu algo que até hoje me belisco pra saber se não foi um sonho.
        — E o que foi?
        — Não é que o Edu conseguiu fazer com que a gente se encontrasse com o Ricardo Darín?
           — O ator?
            — Ele mesmo! Maravilhoso! Aqueles olhos lindos! Tão simpático! Tão gentil! Ele viu que o Edu não estava entendendo bem espanhol e, do nada, começou a falar em português pra que o Edu entendesse. 
          Além do grande astro do cinema argentino, Dona Irene tem muitas histórias para contar. Uma delas é que ela já foi atacada por uma jararacuçu. 
            "É verdade! O Edu e eu tivemos uma fazenda em Goiás. A fazenda era cercada por dois riachos. A gente adorava descer para um deles com os cachorros. Foi aí que eu acabei pisando em uma jararacuçu que estava dormindo na areia da margem do riacho. A cobra acordou e me picou na perna. A sorte é que eu estava de perneira."
            Dona Irene é torcedora do Palmeiras, inclusive já esteve ao lado do maior ídolo do seu time, o ex-craque Ademir da Guia. Sem contar que o Ademir já havia feito um vídeo parabenizando a Dona Irene assim que ela se mudou para Porto Alegre.
        "É verdade! Até hoje vejo e revejo o vídeo que o Ademir fez pra mim. E acabamos nos encontrando no Beira-Rio em 2023. Foi legal demais!"
          Diante de tantas coisas, consideradas irrelevantes por todos que a conhecem, consegui desvendar o grande trunfo desta mulher de múltiplos talentos. É que a Dona Irene é a melhor amiga do Chefe (o jornalista e escritor José Seabra), fundador do Notibras.
        "Não sei se você sabe, mas o Edu não bebe. Bem, eu gosto muito de uma caipirinha, ainda mais quando estou em frente à praia. E o Chefe também é bom de copo. Mas não se preocupem, pois o Edu está sempre sóbrio e pode dirigir."
            @donairene13

  • Nota de esclarecimento: A Dona Irene foi retratada em O LADO B DA LITERATURA, do colunista Cassiano Condé, no Café Literário do Notibras no dia 13/4/2025.
  • https://www.notibras.com/site/donairene13-veneravel-do-campo-digital-tem-hora-que-faz-ate-lula-cocar-a-cabeca/

sábado, 12 de abril de 2025

Janaína e Armando

 

          Armando, sonhador irremediável, foi se casar com a Janaína. Pois é, com a Janaína. Justamente a mulher mais racional do bairro. Criatura nascida já com os pés chumbados ao chão. Antes fossem torcedores de times rivais. 

          Não pense você que tal combinação seja de todo mal. Não mesmo! Para você ter ideia, quando o circo pegava fogo, não era o Armando que resolvia a situação. Ao contrário, pois o sujeito entrava em parafuso e ficava incapacitado até de amarrar os cadarços. No entanto, Janaína mantinha a calma e, pensativa, não tardava, encontrava a solução para o problema. Aliás, ela podia até não achar o caminho para dar cabo da pendenga, mas, não tenha dúvida, sabia dizer o que fazer, mesmo que fosse esperar até a poeira baixar. 

          Por sua vez, Armando tinha lá sua utilidade. Isso mesmo! O gajo era responsável por remexer o lodo no fundo do lago onde repousava o matrimônio. Não em busca de novos relacionamentos, mesmo porque se tratava de um romântico inveterado, completo devoto à esposa. 

          Janaína fazia o bolo; Armando, a cobertura; Janaína comprava e embrulhava o presente; Armando dava o toque final com um laço. E assim a vida prosseguia em quase harmonia, ainda mais porque ele dependia dela, enquanto ela apreciava o jeito do marido de olhar o mundo. Alguém até poderia dizer que o casal havia sido arrancado das páginas do romance 'O feijão e o sonho', do imortal Orígenes Lessa. 

          A despeito da harmonia dos pombinhos, não faltam línguas ferinas sem o menor escrúpulo. Uma delas era Julieta, vizinha de porta, que tentava plantar discórdia entre o casal. 

          — Janaína, não sei como é que você aguenta esse tipo molengão.

          — Não tô te entendendo, Julieta. Que molengão é esse que você tá falando?

          — Ué, e por acaso tem outro?

          — Diga logo o que quer dizer, mulher, e pare de rodeio!

          — Armando!

          — E o que tem o meu Armando?

          — Hum! Uma mulher forte que nem você tem que arrumar um homem de verdade.

          — Pois fique você sabendo, Julieta, que, além de homem de verdade, o Armando é o oásis na minha vida repleta de chatices.

          E pode ter certeza de que Armando também ouvia dos amigos falas nada lisonjeiras sobre Janaína.

          — Armando, meu amigo, não sei como você atura isso.

          — Atura o quê, Humberto?

          — Tua mulher!

          — Janaína?

          — E por acaso você tem outra?

          — Não tenho e nem quero! Janaína é o amor da minha vida.

          — É uma mandona!

          — Pois é verdade!

          — Então?

          — Então o quê, Humberto?

          — E você não acha ruim?

          — Ruim o quê, homem?! Eu acho é bom! A Janaína é a minha razão nesta minha vida repleta de devaneios. 

        Não se sabe ao certo quem morreu primeiro, se foi Janaína ou Armando. Dizem até que, já velhinhos, os dois foram dormir juntos e, felizes, acordaram no Reino de Hades. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Janaína e Armando" foi publicado por Notibras no dia 12/4/2025.
  • https://www.notibras.com/site/casal-perfeito-se-completa-em-meio-as-suas-muitas-imperfeicoes/

sexta-feira, 11 de abril de 2025

Marcos e a videolocadora

    

        Marcos parecia fadado ao sucesso quando montou uma videolocadora em 1999. Apesar de não ter feito pesquisa de mercado, o sujeito estava certo de que seria uma tacada de mestre, ainda mais porque ele havia comprado uma infinidade de fitas VHS por uma pechincha. Tudo porque duas locadoras da região resolveram baixar as portas por motivo por ele desconhecido.

          O sujeito não teve dúvida e raspou a poupança, que não era muita coisa, alugou uma loja no final da rua, ponto movimentadíssimo, e planejou a inauguração de maneira espetacular, com direito até à apresentação de uma atriz do clássico 'A dama da lotação'. Obviamente que não era Sônia Braga, mas Lucrécia Santos, figurante que aparecia de relance no meio da multidão em uma tomada externa. Seja como flor, lá estava uma representante da sétima arte. 

          O fracasso de público não chegou a surpreender, ainda mais diante das expectativas irreais do mais novo empresário do pedaço. É que Marcos estava certo de que o evento seria manchete no noticiário nacional. Não aconteceu, apesar da pequena nota de rodapé no jornal do bairro, paga com o aluguel de cinco filmes adultos para o dono do periódico.

          Hum! Não pense você que tal início sem brilho foi suficiente para acender o sinal de alerta em Marcos, que se manteve confiante pelas semanas seguintes, ainda mais porque videocassete não havia se tornado peça de museu. Isso se daria dali a três, quatro anos, quando o DVD tomou conta do mercado, mesmo que por um período. Tal reinado, também, não duraria muito tempo.

          Marcos, que lutava para fechar as contas no final do mês, começou a abaixar o preço do aluguel das fitas, além de não cobrar multa de quem não mais as devolvesse sem rebobinar. A sobrevida não foi além de um fraco suspiro. Era o fim do empreendimento, mas o gajo era determinado e, então, mandou fazer uma imensa faixa, que foi colocada logo abaixo do letreiro da videolocadora. 

          Bem, essa atitude desesperadora não funcionou, mas garantiu boas gargalhadas nos moradores do local. O que estava escrito na tal faixa? Acredite ou não, mas era o seguinte: "Precisa-se de clientes, mesmo sem experiência!"

  • Nota de esclarecimento: O conto "Marcos e a videolocadora" foi publicado por Notibras no dia 11/4/2025.
  • https://www.notibras.com/site/empresario-apela-para-sair-da-crise-precisa-se-de-clientes-mesmo-sem-experiencia/

quinta-feira, 10 de abril de 2025

Durona, mas nem tanto

    

Sou metida a durona, e quase ninguém ousa contestar isso. Deve ser porque, desde que me entendo por gente, convivo com algum tipo de dor. Poderia eu fazer que nem papai, que não suportou a perda da esposa, no caso minha mãe, e se entregou à bebida. Perdeu-se da vida e encontrou a sarjeta. Sorte da família que eu já beirava os doze anos, idade suficiente para perceber que era o único fio possível que nos impedia de cair no abismo e ir fazer companhia ao nosso pai.

          Carlos, meu irmão do meio, finge que não está acontecendo nada até não aguentar e pedir socorro, principalmente por conta de dores emocionais. Deve ser coisa de homem ou, então, de gente que tem medo de parecer fraca. Talvez tenho cá parcela de culpa por isso, já que nunca chorei na sua frente ou, se aconteceu alguma vez, fiz para dentro do meu peito para que ninguém percebesse. 

          Aloísio, o caçula, jamais poupou lágrimas, que até hoje escorrem pelas bochechas proeminentes. De tão sensível, os soluços o impedem de se comunicar de modo inteligível. Quer dizer, após mais de trinta anos convivendo com o sujeito, aprendi a decifrar cada pedaço de palavra expelida pelos seus lábios trêmulos. 

          Quase não me caso, de tanto esperar que meus irmãos tomassem rumo na vida. Foi só quando estava perto de completar 40 anos que os vi cada um seguir seus próprios caminhos. Carlos foi para Goiânia, onde se meteu com produção de música sertaneja. O engraçado é que ele sempre foi do pagode, mas, como me disse antes de partir: "Maria Lúcia, a gente dança conforme a música."

          Quanto ao Aloísio, apesar de ser o mais apegado, logo tomou a estrada para o Sudeste. Primeiro Belo Horizonte, depois o Rio, passou por São Paulo, mas se estabeleceu em Guarapari, afamada cidade praiana do Espírito Santo. Virou pescador de peroá, como gosta de dizer nas mensagens diárias que me manda. 

         Como estava dizendo, foi por pouco que não me casei. Não que não tivesse tido amores ao longo dos anos. Tive alguns, mas nenhum que me fizesse abandonar meus irmãos, que sempre considerei extremamente dependentes de mim. Seja como for, assim que me vi sozinha em Brasília, olhei para o lado e reparei aqueles olhos amendoados. 

          Quase bonito, calvo que nem meu finado pai, José me convidou para sair. Fomos ao cinema e, depois, tomamos sorvete de casquinha, como se aquilo fizesse parte da conquista. Nem precisava, pois já me vi apaixonada por aqueles dedos longos nos meus cabelos, que me pareceram treinados em fazer uma mulher se sentir amada.

          A vida, às vezes, é mesmo engraçada. Passei tanto tempo tomando conta dos meus irmãos, e hoje é o meu José que toma conta de mim. Ele até me leva café na cama de vez em quando. Isso é bom, mas o melhor mesmo é que me sinto acolhida em seus ombros e, sem qualquer pudor, posso chorar minhas dores.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Durona, mas nem tanto" foi publicado por Notibras no dia 10/4/2025.
  • https://www.notibras.com/site/na-casa-dos-40-com-irmaos-ja-crescidos-maria-lucia-se-entrega-enfim-ao-seu-jose/

quarta-feira, 9 de abril de 2025

Vida dupla

    Aureliano, minucioso que era, ficava irritado com qualquer nota fora do compasso, ainda mais porque, quase sempre, tirava o brilho do oboé, justamente o instrumento que tocava na orquestra sinfônica. O sujeito era tomado por tamanho ódio, que parecia surdo a partir de então.

    — Aureliano, algum problema?

    — Margô, você não viu?

    — Viu o quê?

    — O trompete atrasou e foi atropelado pelo trombone.

  Margô, a maestrina, talvez para não provocar pendenga entre os músicos, fingia desconhecimento da falha levantada pelo colega. Este, por sua vez, não raro, enrugava ainda mais a testa, como se fossem quebra-molas na vastidão do Saara, que tomava conta da sua racionalidade, que se tornava nenhuma. Paciência, realmente, não era seu forte. 

    Aureliano, empertigado quando o assunto era música clássica, parecia outro assim que se embrenhava entre os talentos da bateria da escola de samba do Cruzeiro. Ali, o gajo era conhecido como Aurê da Cuíca, justamente o instrumento que havia abraçado desde que fora fisgado pelo som da ARUC, a mais tradicional do Distrito Federal. 

    Aureliano e seu ater ego, apesar das disparidades, pareciam viver em harmonia. Até mesmo a vida amorosa do gajo andava às mil maravilhas, inclusive com promessas de casamento. É que o músico acabara de firmar namoro sério com Maria Helena, violinista das mais talentosas. Ao lado do rapazola, a moça era destaque na orquestra. 

    O oboé e o violino pareciam fadados a tocarem em harmonia para o resto da vida. Entretanto, sempre há um entretanto para atazanar a vida dos bem-aventurados, e, certa noite, noite de sexta-feira, durante o ensaio da ARUC, eis que a cuíca do Aurê se esbarrou no pandeiro da Lucimara. Pra quê? Os desavisados poderiam imaginar que o aconteceu na madrugada fossem gritos de socorro. Ledo engano, não passavam de urros de luxúria, cujas faíscas poderiam ser vistas na escuridão por todo Cruzeiro.

    Na manhã seguinte, durante o ensaio da orquestra, Maria Helena foi a primeira a notar a desafinação do oboé. Pois é, justamente do oboé! Era como se o instrumento estivesse alheio aos caminhos da partitura.

    — Aureliano!

    — Oi.

    — O que é isso?

    — Isso o quê?

    — Eu é que pergunto! 

    Margô, antes que a discórdia prosseguisse, tratou de dar uma pausa. Era nítida a falta de condição do Aureliano de prosseguir. Todos ficaram boquiabertos com tamanha descompostura do mais exigente dos músicos. É óbvio que alguns possuíam mágoas por outrora terem sido humilhados pelo instrumentista. O trompetista foi o primeiro a expor a ferida aberta.

    — Margô, não seria a hora de arrumar outro oboísta?

    Aurelino, mesmo mais pra lá do que pra cá, quis dar uma oboezada na cabeça do desafeto. Foi impedido pelo flautista e, se o imbróglio não virou rebu, foi graças à intervenção da maestrina, que deu por encerrado o ensaio. Rusgas, entretanto, foram inevitáveis. Perfeccionista que era, Maria Helena não perdoou Aureliano, que não teve alternativa a não ser enfiar o oboé entre as pernas e ir para casa chorar suas mágoas.

    O homem acabou adormecendo no sofá da sala e, já tarde da noite, despertou. Levantou-se, passou pelo oboé como se ele não existisse e se dirigiu ao quarto. Abriu o armário e se deparou com a cuíca, que o recebeu sorridente. Não teve dúvida, saiu em busca da Lucimara, que, requebrando os dedos sobre o pandeiro, já aguardava o amante.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Vida dupla" foi publicado por Notibras no dia 9/4/2025.
  • https://www.notibras.com/site/oboe-sai-do-tom-desafina-violino-e-cuica-e-pandeiro-poem-ritmo-na-orquestra/

terça-feira, 8 de abril de 2025

Ser mãe é padecer no paraíso

    

         Percebo que muitas pessoas têm ideias deturpadas sobre as mães, como se todas fossem poços de virtudes, que, na verdade, nunca encontrei na minha. Não me interprete mal ou, então, o faça com moderação, pois tenho cá minhas razões para não considerar mamãe a última Coca-Cola do deserto. Também não estou aqui para passar pano nas minhas atitudes em relação aos meus filhos, que estão na adolescência. 

          Fico aqui com meus botões imaginando como seria maravilhoso entregar a cria para o governo quando os hormônios começarem a agir de modo descontrolado. Tenho certeza de que muitas mães adorariam a ideia. Já pensou como seria maravilhoso? Juninho completou 12 anos e, do nada, virou um respondão. E lá viria um ônibus estatal recolher o delinquente até que o ciclo do mal findasse, o que, geralmente, acontece por volta dos 20 anos. 

          Maria Alice, mal despontou algumas espinhas no rosto, não quer mais me escutar. Bastaria um telefonema e, voilà, a guria seria devidamente transportada para um local e, somente depois de devidamente adultizada, seria devolvida. 

          Creio que você já deve ter percebido que meus filhos se chamam Juninho e Maria Alice. Quer dizer, Juninho é porque o moleque herdou o nome do pai, no caso, meu marido, que se chama Orlando. Trouxa que fui, deixei-o repetir essa desgrama de nome, pois queria Lucca. Quanto à Maria Alice, bem, a garota é mesmo Maria Alice. Isso graças aos meus protestos contra o desejo do pai, que queria porque queria colocar Edwiges. 

          — Mas de jeito nenhum que a minha filha vai ter esse nome de velha.

          — Salete, mas é o nome da minha avó.

          — Orlando, por favor, sua avó já morreu há quinhentos anos! Ademais...

          — Ademais o quê?

          — Ademais que a velha era uma rabugenta do caramba!

          Antes tivesse colocado Edwiges, pois a minha filha parece que deixou a doçura de Maria Alice há quase um ano. Gente, como é difícil lidar com alienígenas! Cadê o tal ônibus do governo que não vem buscá-los antes que eu enlouqueça.

            — Mãããããeeee!

            — O que foi dessa vez, Maria Alice?

            — Cê pode fazer um favorzinho pra mim?

            — Maria Alice, fique você sabendo que a minha avó morreu corcunda de tanto fazer favor.

            E cá estou eu, com a consciência me enchendo de culpa, doida para que essa fase passe logo. Se bem que ainda tenho esperança daquele tal ônibus do governo aparecer por aqui e carregar esses dois seres estranhos por um bom tempo. E dizem que ser mãe é padecer no paraíso. Cadê o paraíso nisso?

  • Nota de esclarecimento: O conto "Ser mãe é padecer no paraíso" foi publicado por Notibras no dia 8/4/2025.
  • https://www.notibras.com/site/ser-mae-como-a-de-juninho-e-da-maria-alice-ai-sim-e-padecer-no-paraiso/

segunda-feira, 7 de abril de 2025

Vida repetida

        

        Foi naquele momento, justamente no instante em que, logo cedo, na cozinha, que Arlete percebeu algo que a deixou perplexa. Como se parecia com sua mãe!

          — Por que você não usa a colher pequena para pegar o açúcar?

          — Por que você insiste em usar faca de serra para passar manteiga no pão?

          — Já reparou que a água está fervendo?

          — Não acredito que você enxugou as mãos no pano de prato!

          Todas aquelas frases, antes ditas por sua mãe para seu pai, agora saíam de sua boca para seu marido. Quando foi que aquela metamorfose se instalou na outrora mulher das liberdades? Teria sido após se tornar mãe ou, então, quando se percebeu, ao lado de Osvaldo, vivendo uma vida repetida?

          Arlete, 68 anos, engenheira de formação, aos 23 tomou posse no Banco do Brasil, onde quase nunca precisou utilizar os conhecimentos adquiridos na faculdade. É verdade que a bancária, excelente em cálculos, se destacou na área de finanças. Tanto é que, antes dos 30, alcançou o posto de gerente, cargo que permaneceu até o derradeiro dia da aposentadora, aos 55. Poderia ter ficado mais tempo, convites não faltaram, inclusive alguns incentivos. Todavia, ela tinha lá seus planos, que foram adiados, adiados, adiados... 

          A velha passou o dia enclausurada em pensamentos, como se buscasse resposta para a mesmice que, sorrateiramente, havia se instalado em seu ser. Tentou se policiar para não cometer as mesmas coisas da sua mãe, que há quase cinco anos fora repousar no cemitério da cidade. Promessas de visitas semanais nunca foram cumpridas, o que não a impedia de buscar na memória lembranças da rebelde que contestava a autoridade da matriarca. 

          — Arlete, minha filha, por que você não faz que nem a sua irmã?

          — Fazer o quê, mamãe?

          — Pare de lutar contra a nossa natureza.

          — Natureza?

          — Sim!

          — E qual seria a nossa natureza, mamãe?

          — Ser esposa e mãe.

          — Mamãe, tenho 28 anos, estou num emprego legal, ganhando bem. Ser esposa e mãe não é pra mim.

          Arlete não se casou aos 28, aos 30 ou 35. Conheceu Osvaldo por acaso no seu aniversário de 40, quando ele chegou a convite do então namorado da aniversariante. Assim que ela bateu o olho naquele sujeito de rosto trigueiro, teve certeza de que o queria, mesmo que por uma noite apenas. 

          Não aconteceu naquela noite nem nas seguintes. No entanto, não foi por falta de desejo de Arlete. Foi por pura falta de oportunidade de trocarem telefones. E o que pareceu nunca acontecer, por acaso, aconteceu quase um ano após, quando ela encontrou Osvaldo em uma cafeteria na Asa Norte. Trocaram olhares, até que Arlete tomou a iniciativa e puxou conversa.

          — Osvaldo, né?

          — Sim. Arlete? 

          — Ainda se lembra?

          — E como esquecer?

          O café foi curto, preferiam esticar a tarde em concorrido motel na Candangolândia. O romance pegou os dois desprevenidos e, já no mês seguinte, resolveram juntar os panos. 

          Osvaldo, então com 19 anos, se casou cedo com Elisa, a primeira namorada, grávida por descuido dos quase adolescentes.  Quando subiram ao altar, a barriga da noiva já começava a despontar. Bicuda do jeito que estava, certamente seria menino, como ficou provado quatro meses após. 

          O casal viveu altos e baixos, até que, após 20 anos de matrimônio, resolveu que o melhor era mesmo cada um ir para seu canto. Elisa, calejada, evitou relacionamentos pelos próximos anos, enquanto Osvaldo, tentando recuperar a juventude, namorou todas que se dispuseram a sair com ele, até que o gajo se deparou com Arlete naquela cafeteria. 

          Arlete encarou o esposo e sorriu. O homem pareceu surpreso, apesar de ter gostado.

          — O que foi, amor?

          — Hum... Não posso mais observar como o amor da minha vida é lindo?

          — Lindo? Eu?

          — Sim. Ou você pensa que me apaixonei por você por causa do seu dinheiro?

          — E não foi?

          — Hum... É verdade! Assim que vi aquele seu Fusca enferrujado, pensei: taí um partidão, ainda mais porque a vacina contra tétano estava em dia.

          — Que bom! Pensei que eu seria apenas mais um rostinho bonito na multidão.

          — De jeito nenhum, Osvaldo! 

          Arlete se aproximou e enlaçou o pescoço do marido. Ele a beijou como há muito não fazia. 

          — Arlete, meu amor, que tal almoçarmos fora hoje?

          — Adoraria!

          — Que tal aquele restaurante peruano que você adora?

          — Não. Hoje quero almoçar na Candangolândia. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Vida repetida" foi publicado por Notibras no dia 7/4/2025.
  • https://www.notibras.com/site/clone-da-mae-arlete-descobre-diferenca-ao-ir-almocar-na-candangolandia/

domingo, 6 de abril de 2025

Ser mulher não é pra qualquer um!

    

Ser mulher não é pra qualquer um! Ouço isso desde quando engatinhava, como se fosse um mantra de sobrevivência. Minha avó, certamente prevendo os perrengues que eu iria enfrentar, não me poupava das verdades, por mais duras que fossem, tão comuns neste mundo dominado pelos homens, tão frágeis em relação à própria masculinidade. 

          Sabe esse tipo comum que encolhe a barriga e estufa o peito toda vez que uma mulher se aproxima? Pois é, Julião, meu marido, não perde essa mania, como se fosse o garanhão sempre pronto para satisfazer os desejos reprimidos das donzelas aflitas por beijos calorosos, que, na verdade, só existem na mente deturpada dos homens. Ou seria modus operandi para mostrar algo que nunca foi? Seja o que for, não estou aqui para falar mal do sujeito que, afinal, é o pai dos meus filhos e... Não acredito! Pois cá estou eu tentando defender o indefensável. 

          — Lídia, por mais que você seja diligente, vez ou outra, vai cair na tentação de passar pano nas bobices do homem por quem se apaixonar.

          Meus olhos deveriam parecer de coruja quando minha avó me falava algo desse tipo. Imatura que era, torcia o lado de modo desdenhoso.

          — Vovó, pode deixar, que não vou deixar homem nenhum bicar o fubá tão facilmente.

          Na verdade, nem sabia de onde eu tirei aquilo. Bicar o fubá? Mesmo assim, minha avó pareceu gostar da perspicácia da sua única neta. 

          — Isso mesmo, Lídia! Mas mantenha os olhos bem abertos, pois a vida é traiçoeira.

          Pois lá estava eu durante uma aula no curso de direito, quando o professor Paulo levantou uma questão que, até hoje, é mote de discussões acaloradas não somente no meio acadêmico, como em qualuqer botequim. Sim, estou falando da dúvida que permeia a sociedade brasileira desde que um certo Joaquim Maria apresentou ao mundo a sua, talvez, obra mais famosa: "Dom Casmurro".

          — Meus caros, afinal, Capitu traiu ou não traiu?

          Diante da arguição do mestre, meus colegas, como verdadeiros advogados que um dia pretendiam ser, levantaram argumentos diversos. 

          — É óbvio que traiu, como mostra a enorme quantidade de provas nas centenas de páginas esplendidamente escritas pelo autor.

          — Se traiu ou não, paira a dúvida.

        — Exatamente! E se há dúvida, por menor que seja, como condenar a senhora Capitolina?

          — Mas e a honra? Onde fica a honra?

          — Honra de quem?

          — A honra do senhor Bento Santiago, ora bolas!

          — Hum! Que tolice!

          — Tolice por quê, Lídia?

          — A honra matou e continua matando muitas mulheres, meu caro Juvenal.

          — Ah, Lídia, daqui a pouco você vai querer me dizer que a Capitu não traiu o Bentinho com o Escobar.

          — Não entendi aonde você quer chegar com tal afirmação, Juvenal, mas...

          — Mas o quê?

       — Mas só saberemos a verdade quando alguém encontrar a versão da senhora Capitolina sobre os fatos. Isto é...

          — Isto é o quê, Lídia?

          — Isto é se o Joaquim Maria teve coragem de escrevê-la. 

          E lá estava eu diante daquela plateia defendendo e acusando uma personagem de fama duvidosa, mas que continuará sendo mote de discussões pelos próximos séculos. Defender a senhora Capitolina não é uma questão pessoal. Na verdade, se ela traiu ou não, isso não importa. Que tenha traído, então! E daí? Que o Escobar tinha lá seu charme, nem mesmo o próprio narrador duvidava, tamanha a carga de inveja... Ou seria admiração? 

        Sim, Bentinho provavelmente era apaixonado por Escobar e, por isso, carregava no peito esses dois sentimentos, que digladiavam constantemente. Admiração, aliás, pode ser interpretada como paixão, que o senhor Bento Santiago possuía pelo suposto amante de sua esposa. Não é de se estranhar, portanto, que o narrador morria de inveja da senhora Capitolina. Afinal, como dizia vovó, ser mulher não é pra qualquer um!

  • Nota de esclarecimento: O conto "Ser mulher não é pra qualquer um!" foi publicado por Notibras no dia 6/4/2025.
  • https://www.notibras.com/site/ser-mulher-nao-e-pra-qualquer-um-ja-dizia-vovo-quando-eu-engatinhava/