— Por que você não usa a colher pequena
para pegar o açúcar?
— Por que você insiste em usar faca de
serra para passar manteiga no pão?
— Já reparou que a água está fervendo?
— Não acredito que você enxugou as mãos no
pano de prato!
Todas aquelas frases, antes ditas por sua
mãe para seu pai, agora saíam de sua boca para seu marido. Quando foi que
aquela metamorfose se instalou na outrora mulher das liberdades? Teria sido
após se tornar mãe ou, então, quando se percebeu, ao lado de Osvaldo, vivendo
uma vida repetida?
Arlete, 68 anos, engenheira de formação,
aos 23 tomou posse no Banco do Brasil, onde quase nunca precisou utilizar os
conhecimentos adquiridos na faculdade. É verdade que a bancária, excelente em
cálculos, se destacou na área de finanças. Tanto é que, antes dos 30, alcançou
o posto de gerente, cargo que permaneceu até o derradeiro dia da aposentadora,
aos 55. Poderia ter ficado mais tempo, convites não faltaram, inclusive
alguns incentivos. Todavia, ela tinha lá seus planos, que foram adiados,
adiados, adiados...
A velha passou o dia
enclausurada em pensamentos, como se buscasse resposta para a mesmice que,
sorrateiramente, havia se instalado em seu ser. Tentou se policiar para não
cometer as mesmas coisas da sua mãe, que há quase cinco anos fora repousar no
cemitério da cidade. Promessas de visitas semanais nunca foram cumpridas, o que
não a impedia de buscar na memória lembranças da rebelde que contestava a
autoridade da matriarca.
— Arlete, minha filha, por que você não
faz que nem a sua irmã?
— Fazer o quê, mamãe?
— Pare de lutar contra a nossa natureza.
— Natureza?
— Sim!
— E qual seria a nossa natureza, mamãe?
— Ser esposa e mãe.
— Mamãe, tenho 28 anos, estou num emprego
legal, ganhando bem. Ser esposa e mãe não é pra mim.
Arlete não se casou aos 28, aos 30 ou 35.
Conheceu Osvaldo por acaso no seu aniversário de 40, quando ele chegou a
convite do então namorado da aniversariante. Assim que ela bateu o olho naquele
sujeito de rosto trigueiro, teve certeza de que o queria, mesmo que por uma
noite apenas.
Não aconteceu naquela noite nem nas
seguintes. No entanto, não foi por falta de desejo de Arlete. Foi por pura
falta de oportunidade de trocarem telefones. E o que pareceu nunca acontecer,
por acaso, aconteceu quase um ano após, quando ela encontrou Osvaldo em uma
cafeteria na Asa Norte. Trocaram olhares, até que Arlete tomou a iniciativa e
puxou conversa.
— Osvaldo, né?
— Sim. Arlete?
— Ainda se lembra?
— E como esquecer?
O café foi curto, preferiam esticar a
tarde em concorrido motel na Candangolândia. O romance pegou os dois
desprevenidos e, já no mês seguinte, resolveram juntar os panos.
Osvaldo, então com 19 anos, se casou
cedo com Elisa, a primeira namorada, grávida por descuido dos quase
adolescentes. Quando subiram ao altar, a barriga da noiva já
começava a despontar. Bicuda do jeito que estava, certamente seria menino, como
ficou provado quatro meses após.
O casal viveu altos e baixos, até que,
após 20 anos de matrimônio, resolveu que o melhor era mesmo cada um ir para seu
canto. Elisa, calejada, evitou relacionamentos pelos próximos anos, enquanto
Osvaldo, tentando recuperar a juventude, namorou todas que se dispuseram a sair
com ele, até que o gajo se deparou com Arlete naquela cafeteria.
Arlete encarou o esposo e sorriu. O homem
pareceu surpreso, apesar de ter gostado.
— O que foi, amor?
— Hum... Não posso mais observar como o
amor da minha vida é lindo?
— Lindo? Eu?
— Sim. Ou você pensa que me apaixonei por
você por causa do seu dinheiro?
— E não foi?
— Hum... É verdade! Assim que vi aquele
seu Fusca enferrujado, pensei: taí um partidão, ainda mais porque a vacina
contra tétano estava em dia.
— Que bom! Pensei que eu seria apenas mais
um rostinho bonito na multidão.
— De jeito nenhum, Osvaldo!
Arlete se aproximou e enlaçou o pescoço do
marido. Ele a beijou como há muito não fazia.
— Arlete, meu amor, que tal almoçarmos
fora hoje?
— Adoraria!
— Que tal aquele restaurante peruano que
você adora?
— Não. Hoje quero almoçar na
Candangolândia.
- Nota de esclarecimento: O conto "Vida repetida" foi publicado por Notibras no dia 7/4/2025.
- https://www.notibras.com/site/clone-da-mae-arlete-descobre-diferenca-ao-ir-almocar-na-candangolandia/
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