segunda-feira, 7 de abril de 2025

Vida repetida

        

        Foi naquele momento, justamente no instante em que, logo cedo, na cozinha, que Arlete percebeu algo que a deixou perplexa. Como se parecia com sua mãe!

          — Por que você não usa a colher pequena para pegar o açúcar?

          — Por que você insiste em usar faca de serra para passar manteiga no pão?

          — Já reparou que a água está fervendo?

          — Não acredito que você enxugou as mãos no pano de prato!

          Todas aquelas frases, antes ditas por sua mãe para seu pai, agora saíam de sua boca para seu marido. Quando foi que aquela metamorfose se instalou na outrora mulher das liberdades? Teria sido após se tornar mãe ou, então, quando se percebeu, ao lado de Osvaldo, vivendo uma vida repetida?

          Arlete, 68 anos, engenheira de formação, aos 23 tomou posse no Banco do Brasil, onde quase nunca precisou utilizar os conhecimentos adquiridos na faculdade. É verdade que a bancária, excelente em cálculos, se destacou na área de finanças. Tanto é que, antes dos 30, alcançou o posto de gerente, cargo que permaneceu até o derradeiro dia da aposentadora, aos 55. Poderia ter ficado mais tempo, convites não faltaram, inclusive alguns incentivos. Todavia, ela tinha lá seus planos, que foram adiados, adiados, adiados... 

          A velha passou o dia enclausurada em pensamentos, como se buscasse resposta para a mesmice que, sorrateiramente, havia se instalado em seu ser. Tentou se policiar para não cometer as mesmas coisas da sua mãe, que há quase cinco anos fora repousar no cemitério da cidade. Promessas de visitas semanais nunca foram cumpridas, o que não a impedia de buscar na memória lembranças da rebelde que contestava a autoridade da matriarca. 

          — Arlete, minha filha, por que você não faz que nem a sua irmã?

          — Fazer o quê, mamãe?

          — Pare de lutar contra a nossa natureza.

          — Natureza?

          — Sim!

          — E qual seria a nossa natureza, mamãe?

          — Ser esposa e mãe.

          — Mamãe, tenho 28 anos, estou num emprego legal, ganhando bem. Ser esposa e mãe não é pra mim.

          Arlete não se casou aos 28, aos 30 ou 35. Conheceu Osvaldo por acaso no seu aniversário de 40, quando ele chegou a convite do então namorado da aniversariante. Assim que ela bateu o olho naquele sujeito de rosto trigueiro, teve certeza de que o queria, mesmo que por uma noite apenas. 

          Não aconteceu naquela noite nem nas seguintes. No entanto, não foi por falta de desejo de Arlete. Foi por pura falta de oportunidade de trocarem telefones. E o que pareceu nunca acontecer, por acaso, aconteceu quase um ano após, quando ela encontrou Osvaldo em uma cafeteria na Asa Norte. Trocaram olhares, até que Arlete tomou a iniciativa e puxou conversa.

          — Osvaldo, né?

          — Sim. Arlete? 

          — Ainda se lembra?

          — E como esquecer?

          O café foi curto, preferiam esticar a tarde em concorrido motel na Candangolândia. O romance pegou os dois desprevenidos e, já no mês seguinte, resolveram juntar os panos. 

          Osvaldo, então com 19 anos, se casou cedo com Elisa, a primeira namorada, grávida por descuido dos quase adolescentes.  Quando subiram ao altar, a barriga da noiva já começava a despontar. Bicuda do jeito que estava, certamente seria menino, como ficou provado quatro meses após. 

          O casal viveu altos e baixos, até que, após 20 anos de matrimônio, resolveu que o melhor era mesmo cada um ir para seu canto. Elisa, calejada, evitou relacionamentos pelos próximos anos, enquanto Osvaldo, tentando recuperar a juventude, namorou todas que se dispuseram a sair com ele, até que o gajo se deparou com Arlete naquela cafeteria. 

          Arlete encarou o esposo e sorriu. O homem pareceu surpreso, apesar de ter gostado.

          — O que foi, amor?

          — Hum... Não posso mais observar como o amor da minha vida é lindo?

          — Lindo? Eu?

          — Sim. Ou você pensa que me apaixonei por você por causa do seu dinheiro?

          — E não foi?

          — Hum... É verdade! Assim que vi aquele seu Fusca enferrujado, pensei: taí um partidão, ainda mais porque a vacina contra tétano estava em dia.

          — Que bom! Pensei que eu seria apenas mais um rostinho bonito na multidão.

          — De jeito nenhum, Osvaldo! 

          Arlete se aproximou e enlaçou o pescoço do marido. Ele a beijou como há muito não fazia. 

          — Arlete, meu amor, que tal almoçarmos fora hoje?

          — Adoraria!

          — Que tal aquele restaurante peruano que você adora?

          — Não. Hoje quero almoçar na Candangolândia. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Vida repetida" foi publicado por Notibras no dia 7/4/2025.
  • https://www.notibras.com/site/clone-da-mae-arlete-descobre-diferenca-ao-ir-almocar-na-candangolandia/

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