Poderíamos afirmar que, assim que Márcia e Múcio se beijaram
primeira vez, foi possível vislumbrar faíscas saindo daqueles lábios ardentes.
A partir daquele instante, os dois perceberam que tal evento seria muito mais
do que uma noite tórrida de amor, na então menina capital do país em 1972.
Loira oxigenada, 38 anos, Márcia andava com
um pequeno revólver calibre .22 na bolsa de couro legítimo. Era para se livrar
de certos homens inconvenientes, que, naquele tempo, se achavam no direito de
tentar se aproximar à força por conta da situação de desquitada da mulher.
Diante de tal argumento, até os amigos mais próximos concordavam que ela não
estava de todo errado.
Múcio, por sua, vez, 42 anos, ostentava algo
maior e mais potente na cintura: um revólver calibre .38, desses de meter medo
até em leão de chácara. Ninguém se atrevia a se meter à besta com o sujeito,
que sorria cheio de si sob o vasto bigode, tão em moda naqueles idos. Ademais,
o gajo possuía um físico invejável, fruto de inúmeras flexões antes de se
arrumar para ir trabalhar em um dos mais concorridos jornais que circulavam em
Brasília.
O casal parecia deveras apaixonado, tanto é
que não havia quem ousasse contestar os constantes arroubos de ciúme daqueles
dois, por mais tolos que fossem os motivos. Quem ama cuida, diziam os mais
chegados. Mas eis que, certa noite, num afamado botequim na Asa Norte, o
inevitável aconteceu.
Lá estava o Múcio bebendo todas ao lado de
amigos, entre os quais o companheiro de redação, o José, jornalista dos
melhores. Repare você que o problema não eram os homens que se aglomeravam ao
redor da mesa, mas a cocotinha que enlaçava o pescoço do quase marido da Márcia.
Seu nome? Bem, tal detalhe não importa. Todavia, como tenho boca de balde, irei
satisfazer sua curiosidade: Sônia.
Só de escrever esse lindo nome feminino, sinto
inúmeros calafrios. Para quem desconhece seu significado, digo-lhe que é de
origem russa, diminutivo do grego Sophia, que quer dizer sabedoria. E, assim
como você, tenho certeza de que Múcio não estava propriamente interessado no
quociente de inteligência da beldade de pele trigueira. Não mesmo!
Márcia, por sua vez, não iria discordar do
nosso pensamento, ainda mais após flagrar os adúlteros em momento tão singular
de início de namorico. Furiosa, não teve dúvida. Sacou seu revólver e o apontou
em direção ao amado, que, pego de surpresa, ficou sem ação. Sônia, a bela
Sônia, foi se esconder no banheiro, quem sabe com o intuito de refazer a
maquiagem.
Gritos desesperados no bar, o destino do
Múcio parecia selado. Parecia, até que o José, notório pela costumeira falta de
coragem, deve ter encontrado alguma e, inesperadamente, se postou entre o amigo
e o cano do revólver.
— Márcia, por favor!
— Por favor, o quê, José?
— Estamos entre amigos.
— Hum! Amigos! Conta outra!
Por sorte, do nada, eis que a Márcia abaixou a arma e desandou a chorar.
Sem tempo a perder, José se aproximou da mulher, que, assustada e por azar,
acabou disparando no peito do gajo. Bem, aqui vale outro adendo.
Enquanto o calibre .38 não pede passagem quando quer entrar e, sem
pudor, arranca as carnes e quase sempre faz o trajeto em linha reta, muitas
vezes saindo pelo outro lado, o .22 possui lá suas artimanhas. É que,
traiçoeiro que é, gosta de percorrer trilhas pelo corpo da vítima, que, não
raro, sangra internamente até morrer.
Bem, o herói improvável não morreu, pois foi socorrido a tempo ao Hospital de
Base. Entretanto, o que salvou o nosso José veio do local mais surpreendente. É
que o jornalista possuía tipo sanguíneo raríssimo, O negativo, que estava em
falta. Mas eis que era o mesmo da esquentada Márcia.
Como ironia pouca é bobagem, Márcia, repleta
de remorso até o último fio de cabelo tingido, fez questão de ficar ao lado do
moribundo até a sua completa recuperação. E, entre olhares de desespero e
esperança, os dois acabaram se apaixonando. Quem não gostou nada dessa história
foi o Múcio, que prometeu dar cabo no amigo da onça.
Diante do espelho, Múcio estava decidido em prosseguir com seu intuito, quando um resquício de razão apareceu carregado pelo vento que entrou pela janela do banheiro. Melhor deixar aquela traição de lado. O motivo, até hoje ninguém sabe. Se bem que, para quem desconhece, diz-se à boca pequena que o José tratava a navalha com maestria.
- Nota de esclarecimento: O conto "Na mira do revólver" foi publicado por Notibras no dia 28/4/2025.
- https://www.notibras.com/site/uma-velha-historia-la-do-amarelnho-no-gilberto-volta-a-ordem-do-dia/
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