sexta-feira, 18 de abril de 2025

Mala sem alça

          

            Se você acredita ou não em carma, não importa, mas parente não se escolhe. O jeito, então, é aceitar e pronto. Se bem que, não raro, dá vontade de jogar o traste fora. 

          Tio Aclênio é um desses que a família tenta evitar, mas nem sempre dá conta. O sujeito vai muito além daquelas piadinhas infames tipo "É pra ver ou pra comer?", quando descobre que a sobremesa é pavê. Por conta disso, são raros os que ainda forçam um riso para não causar pendengas desnecessárias. 

          Outra coisa que soube recentemente é que o mala sem alça tem sido visto com certa frequência no Setor Comercial Sul, aqui em Brasília. Incrédula diante de comentários a respeito do motivo que levaram o homem a se deslocar quase que diariamente para lá, tive que olhar com meus próprios olhos. Não era possível que tio Aclênio tivesse chegado a tal ponto. Insanidade? Sei lá! Entretanto, não é que era mesmo verdade?

          Pois bem, lá fui eu na quinta-feira passada até a afamada região abarrotada de gente. Rodei, rodei, rodei, até que me deparei com algo inacreditável. Meu tio, vestido de mendigo, encostado numa marquise, mão estendida, pedia esmola para os transeuntes. Mas não pense você que era um mendigo qualquer, pois o safado estava com óculos redondos escuros, fingindo-se de cego. 

          A cada moeda recebida, tio Aclênio dava um sorriso com aqueles dentes enegrecidos, possivelmente pintados com lápis de olho. Alguns passantes, talvez para facilitar as coisas para o ceguinho, depositavam a esmola diretamente na latinha ao lado. E se fosse alguma nota graúda, eis que meu parente tratava de pegá-la e enfiá-la no bolso da calça esfarrapada. 

          Inconformada com a situação, parei diante do farsante, que levou alguns segundos para me reconhecer. Ele abaixou os óculos, olhou para os lados, me encarou e fez cara de poucos amigos.

          — Ah, não, Maria Lúcia! 

          — Ah, não, o quê, tio?

          — Vê se arruma outro ponto, pois este já é meu!

  • Nota de esclarecimento: O conto "Mala sem alça" foi publicado por Notibras nodia 18/4/2025.
  • https://www.notibras.com/site/aclenio-traste-da-familia-vira-cego-para-mendigar-no-setor-comercial-sul/

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