quinta-feira, 10 de abril de 2025

Durona, mas nem tanto

    

Sou metida a durona, e quase ninguém ousa contestar isso. Deve ser porque, desde que me entendo por gente, convivo com algum tipo de dor. Poderia eu fazer que nem papai, que não suportou a perda da esposa, no caso minha mãe, e se entregou à bebida. Perdeu-se da vida e encontrou a sarjeta. Sorte da família que eu já beirava os doze anos, idade suficiente para perceber que era o único fio possível que nos impedia de cair no abismo e ir fazer companhia ao nosso pai.

          Carlos, meu irmão do meio, finge que não está acontecendo nada até não aguentar e pedir socorro, principalmente por conta de dores emocionais. Deve ser coisa de homem ou, então, de gente que tem medo de parecer fraca. Talvez tenho cá parcela de culpa por isso, já que nunca chorei na sua frente ou, se aconteceu alguma vez, fiz para dentro do meu peito para que ninguém percebesse. 

          Aloísio, o caçula, jamais poupou lágrimas, que até hoje escorrem pelas bochechas proeminentes. De tão sensível, os soluços o impedem de se comunicar de modo inteligível. Quer dizer, após mais de trinta anos convivendo com o sujeito, aprendi a decifrar cada pedaço de palavra expelida pelos seus lábios trêmulos. 

          Quase não me caso, de tanto esperar que meus irmãos tomassem rumo na vida. Foi só quando estava perto de completar 40 anos que os vi cada um seguir seus próprios caminhos. Carlos foi para Goiânia, onde se meteu com produção de música sertaneja. O engraçado é que ele sempre foi do pagode, mas, como me disse antes de partir: "Maria Lúcia, a gente dança conforme a música."

          Quanto ao Aloísio, apesar de ser o mais apegado, logo tomou a estrada para o Sudeste. Primeiro Belo Horizonte, depois o Rio, passou por São Paulo, mas se estabeleceu em Guarapari, afamada cidade praiana do Espírito Santo. Virou pescador de peroá, como gosta de dizer nas mensagens diárias que me manda. 

         Como estava dizendo, foi por pouco que não me casei. Não que não tivesse tido amores ao longo dos anos. Tive alguns, mas nenhum que me fizesse abandonar meus irmãos, que sempre considerei extremamente dependentes de mim. Seja como for, assim que me vi sozinha em Brasília, olhei para o lado e reparei aqueles olhos amendoados. 

          Quase bonito, calvo que nem meu finado pai, José me convidou para sair. Fomos ao cinema e, depois, tomamos sorvete de casquinha, como se aquilo fizesse parte da conquista. Nem precisava, pois já me vi apaixonada por aqueles dedos longos nos meus cabelos, que me pareceram treinados em fazer uma mulher se sentir amada.

          A vida, às vezes, é mesmo engraçada. Passei tanto tempo tomando conta dos meus irmãos, e hoje é o meu José que toma conta de mim. Ele até me leva café na cama de vez em quando. Isso é bom, mas o melhor mesmo é que me sinto acolhida em seus ombros e, sem qualquer pudor, posso chorar minhas dores.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Durona, mas nem tanto" foi publicado por Notibras no dia 10/4/2025.
  • https://www.notibras.com/site/na-casa-dos-40-com-irmaos-ja-crescidos-maria-lucia-se-entrega-enfim-ao-seu-jose/

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