Aureliano, minucioso que era, ficava irritado com qualquer nota fora do compasso, ainda mais porque, quase sempre, tirava o brilho do oboé, justamente o instrumento que tocava na orquestra sinfônica. O sujeito era tomado por tamanho ódio, que parecia surdo a partir de então.
    —
Aureliano, algum problema?
    —
Margô, você não viu?
    —
Viu o quê?
    —
O trompete atrasou e foi atropelado pelo trombone.
  Margô, a
maestrina, talvez para não provocar pendenga entre os músicos, fingia
desconhecimento da falha levantada pelo colega. Este, por sua vez, não raro,
enrugava ainda mais a testa, como se fossem quebra-molas na vastidão do Saara,
que tomava conta da sua racionalidade, que se tornava nenhuma. Paciência,
realmente, não era seu forte. 
   
Aureliano, empertigado quando o assunto era música clássica, parecia outro
assim que se embrenhava entre os talentos da bateria da escola de samba do
Cruzeiro. Ali, o gajo era conhecido como Aurê da Cuíca, justamente o
instrumento que havia abraçado desde que fora fisgado pelo som da ARUC, a mais
tradicional do Distrito Federal. 
   
Aureliano e seu ater ego, apesar das disparidades, pareciam viver em harmonia.
Até mesmo a vida amorosa do gajo andava às mil maravilhas, inclusive com
promessas de casamento. É que o músico acabara de firmar namoro sério com Maria
Helena, violinista das mais talentosas. Ao lado do rapazola, a moça era
destaque na orquestra. 
  
 O oboé e o violino pareciam fadados a tocarem em harmonia para o resto da
vida. Entretanto, sempre há um entretanto para atazanar a vida dos
bem-aventurados, e, certa noite, noite de sexta-feira, durante o ensaio da
ARUC, eis que a cuíca do Aurê se esbarrou no pandeiro da Lucimara. Pra quê? Os
desavisados poderiam imaginar que o aconteceu na madrugada fossem gritos de
socorro. Ledo engano, não passavam de urros de luxúria, cujas faíscas poderiam
ser vistas na escuridão por todo Cruzeiro.
   
Na manhã seguinte, durante o ensaio da orquestra, Maria Helena foi a primeira a
notar a desafinação do oboé. Pois é, justamente do oboé! Era como se o
instrumento estivesse alheio aos caminhos da partitura.
    —
Aureliano!
    —
Oi.
    —
O que é isso?
    —
Isso o quê?
    —
Eu é que pergunto! 
   
Margô, antes que a discórdia prosseguisse, tratou de dar uma pausa. Era nítida
a falta de condição do Aureliano de prosseguir. Todos ficaram boquiabertos com
tamanha descompostura do mais exigente dos músicos. É óbvio que alguns possuíam
mágoas por outrora terem sido humilhados pelo instrumentista. O trompetista foi
o primeiro a expor a ferida aberta.
    —
Margô, não seria a hora de arrumar outro oboísta?
   
Aurelino, mesmo mais pra lá do que pra cá, quis dar uma oboezada na cabeça do
desafeto. Foi impedido pelo flautista e, se o imbróglio não virou rebu, foi
graças à intervenção da maestrina, que deu por encerrado o ensaio. Rusgas,
entretanto, foram inevitáveis. Perfeccionista que era, Maria Helena não perdoou
Aureliano, que não teve alternativa a não ser enfiar o oboé entre as pernas e
ir para casa chorar suas mágoas.
O homem acabou adormecendo no sofá da sala e, já tarde da noite, despertou. Levantou-se, passou pelo oboé como se ele não existisse e se dirigiu ao quarto. Abriu o armário e se deparou com a cuíca, que o recebeu sorridente. Não teve dúvida, saiu em busca da Lucimara, que, requebrando os dedos sobre o pandeiro, já aguardava o amante.
- Nota de esclarecimento: O conto "Vida dupla" foi publicado por Notibras no dia 9/4/2025.
 - https://www.notibras.com/site/oboe-sai-do-tom-desafina-violino-e-cuica-e-pandeiro-poem-ritmo-na-orquestra/
 

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