quarta-feira, 30 de abril de 2025

O caderninho de dona Lidiane

    

A história é nova, mas a gíria é das antigas. Aconteceu logo após o último carnaval, quando o resquício da euforia ainda percorria veias e artérias dos foliões, especialmente daqueles mais animados. E Luciano, certamente, parecia um dos mais eufóricos, conforme constava, minuciosamente anotado, no diário da dona Lidiane, verdadeira Candinha, que não passava pano nem mesmo nos deslizes dos mais próximos. 

        Para não perder a dignidade, Luciano tentou, a moderado custo, manter sob a penumbra os acontecidos nos salões da vida. Não à toa, tratou de ficar de bico calado, mesmo sabedor de que nem tudo que acontece nesses antros fica por lá. Afinal, sempre há um incauto linguarudo, provavelmente com resquício de inveja. Quem sabe, até um rival?

          Dona Lidiane, que não se considera fofoqueira, mas está com os ouvidos em dia, capta com maestria qualquer causo que, porventura, possa ser repassado de modo generoso. Como a velha gosta de dizer, quem quer segredo que guarde para si. Desse modo, já que não era dona daquilo que havia chegado inocentemente ao seu conhecimento, nada mais justo do que repassá-lo sem culpa ou possíveis remorsos. 

          — Não tem o Luciano?

          — Que Luciano, dona Lidiane?

          — Hum! Como se você não soubesse, mulher!

          — E eu lá sei?

          — O marido da Fátima.

          — A Fátima da quitanda?

          — E tem outra por acaso, Lucrécia?

          — Sei lá!

          — Ah, me poupe, né?

          Lucrécia e dona Lidiane poderiam prosseguir nessa ladainha durante toda manhã, caso não fosse segunda-feira, dia de labuta para boa parte dos moradores do bairro. 

          — Pois diga logo, dona Lidiane, que tô atrasada pro serviço.

          — Então, depois eu conto, mulher.

          — Conte logo, que me deixou morta de curiosidade.

          Dona Lidiane observou a colega e, com um sorriso de satisfação, desandou a contar os acontecimentos nos bailes de carnaval. Para finalizar, fez aquela cara de indignação, como se toda a santidade do mundo estivesse ao redor do seu ser.

          — Uma pouca vergonha!

       — É verdade, dona Lidiane. Pobre da Fátima, não merecia um traste daqueles como marido.

          — Hum! Aqueles dois se merecem! Eita, casalzinho que não vale uma Cibalena!

  • Nota de esclarecimento: O conto "O caderninho de dona Lidiane" foi publicado por Notibras no dia 30/4/2025.
  • https://www.notibras.com/site/luciano-foi-dar-uma-escapada-na-asa-norte-e-caiu-na-boca-do-povo/

terça-feira, 29 de abril de 2025

O cálculo renal do Daniel Marchi

   

           Recentemente, durante um bate-papo descontraído com o meu grande amigo Daniel Marchi, renomado poeta e escritor, que estava passando por mais um problema de cálculo renal, ele parecia mais preocupado com as coisas que precisava fazer do que com o próprio estado de saúde.

          — Edu, doer dói, mas como não é algo que mata, fico tranquilo.

          Fico espantado e ao mesmo tempo surpreso quando me deparo com alguém tão prático em relação ao sofrimento físico, que é algo que sempre, sempre mesmo, me atormentou. É que não nego que sou um frouxo, verdadeira manteiga derretida quando o assunto é dor. Minha esposa, a maravilhosa Dona Irene, sabe muito bem disso.

          — Ah, Edu, você é tão sensível!

          Além de ter o limiar de sofrimento físico extremamente aguçado, alguns medos são tão próprios no meu ser. No entanto, não são temores tão comuns. Por favor, não me interprete como herói, mas não tenho medo de escuro, de me embrenhar por uma mata no maior breu, de andar na rua de madrugada, de viajar sozinho para um local desconhecido ou de parar na estrada de madrugada para fazer xixi. 

          Talvez você esteja pensando mesmo que sou um cara destemido. Não sou! Já tive a minha cota de montanhas-russas (fui em três) aos 12 anos, não tenho o menor interesse em pular de paraquedas ou de bungee jumping, muito menos de saltar de asa-delta. Também não me convide para entrar na praia de Boa Viagem em Recife, mesmo naquelas gaiolas de proteção. Isso me parece loucura, e, recentemente, visitei a capital de Pernambuco e percebi que muita gente parece que não leu as inúmeras placas na orla com avisos de área sujeita a ataques de tubarão. E, caso essas pessoas tenham lido, a situação me parece ainda mais grave. 

          Mas voltemos ao Daniel, que precisava expelir o cálculo renal. No meu caso, já teria implorado de joelhos para que o médico ou até mesmo o atendente da farmácia me operasse. Todavia, sereno que nem ele só, o meu amigo, confortavelmente acomodado no sofá de sua residência no Méier, com aquele sorriso que transborda simpatia, enquanto ouvia Ray Conniff, ainda teve tempo de filosofar. 

          — Edu, se a bicicleta parar, ela cai.

          — Que frase legal, Dan!

          — Também acho.

          — É de quem?

          — Bem, Edu, ela é atribuída ao Che Guevara, mas sem fontes seguras. Seja como for, é uma frase tão boa, que seria um disparate deixar passar.

          Por sorte, o meu amigo, de modo digno e elegante, conseguiu expelir o danado do cálculo, de incríveis 7 mm, e passa bem.

  • Nota de esclarecimento: A crônica "O cálculo renal do Daniel Marchi" foi publicada por Notibras no dia 29/4/2025.
  • https://www.notibras.com/site/o-calculo-renal-do-daniel-marchi-os-tubaroes-e-a-frase-sobre-a-bicicleta/


segunda-feira, 28 de abril de 2025

Na mira do revólver

    

   Poderíamos afirmar que, assim que Márcia e Múcio se beijaram primeira vez, foi possível vislumbrar faíscas saindo daqueles lábios ardentes. A partir daquele instante, os dois perceberam que tal evento seria muito mais do que uma noite tórrida de amor, na então menina capital do país em 1972.

          Loira oxigenada, 38 anos, Márcia andava com um pequeno revólver calibre .22 na bolsa de couro legítimo. Era para se livrar de certos homens inconvenientes, que, naquele tempo, se achavam no direito de tentar se aproximar à força por conta da situação de desquitada da mulher. Diante de tal argumento, até os amigos mais próximos concordavam que ela não estava de todo errado. 

          Múcio, por sua, vez, 42 anos, ostentava algo maior e mais potente na cintura: um revólver calibre .38, desses de meter medo até em leão de chácara. Ninguém se atrevia a se meter à besta com o sujeito, que sorria cheio de si sob o vasto bigode, tão em moda naqueles idos. Ademais, o gajo possuía um físico invejável, fruto de inúmeras flexões antes de se arrumar para ir trabalhar em um dos mais concorridos jornais que circulavam em Brasília. 

          O casal parecia deveras apaixonado, tanto é que não havia quem ousasse contestar os constantes arroubos de ciúme daqueles dois, por mais tolos que fossem os motivos. Quem ama cuida, diziam os mais chegados. Mas eis que, certa noite, num afamado botequim na Asa Norte, o inevitável aconteceu.

          Lá estava o Múcio bebendo todas ao lado de amigos, entre os quais o companheiro de redação, o José, jornalista dos melhores. Repare você que o problema não eram os homens que se aglomeravam ao redor da mesa, mas a cocotinha que enlaçava o pescoço do quase marido da Márcia. Seu nome? Bem, tal detalhe não importa. Todavia, como tenho boca de balde, irei satisfazer sua curiosidade: Sônia. 

          Só de escrever esse lindo nome feminino, sinto inúmeros calafrios. Para quem desconhece seu significado, digo-lhe que é de origem russa, diminutivo do grego Sophia, que quer dizer sabedoria. E, assim como você, tenho certeza de que Múcio não estava propriamente interessado no quociente de inteligência da beldade de pele trigueira. Não mesmo! 

          Márcia, por sua vez, não iria discordar do nosso pensamento, ainda mais após flagrar os adúlteros em momento tão singular de início de namorico. Furiosa, não teve dúvida. Sacou seu revólver e o apontou em direção ao amado, que, pego de surpresa, ficou sem ação. Sônia, a bela Sônia, foi se esconder no banheiro, quem sabe com o intuito de refazer a maquiagem. 

          Gritos desesperados no bar, o destino do Múcio parecia selado. Parecia, até que o José, notório pela costumeira falta de coragem, deve ter encontrado alguma e, inesperadamente, se postou entre o amigo e o cano do revólver. 

            — Márcia, por favor!

            — Por favor, o quê, José?

            — Estamos entre amigos.

            — Hum! Amigos! Conta outra!

            Por sorte, do nada, eis que a Márcia abaixou a arma e desandou a chorar. Sem tempo a perder, José se aproximou da mulher, que, assustada e por azar, acabou disparando no peito do gajo. Bem, aqui vale outro adendo.

            Enquanto o calibre .38 não pede passagem quando quer entrar e, sem pudor, arranca as carnes e quase sempre faz o trajeto em linha reta, muitas vezes saindo pelo outro lado, o .22 possui lá suas artimanhas. É que, traiçoeiro que é, gosta de percorrer trilhas pelo corpo da vítima, que, não raro, sangra internamente até morrer.

          Bem, o herói improvável não morreu, pois foi socorrido a tempo ao Hospital de Base. Entretanto, o que salvou o nosso José veio do local mais surpreendente. É que o jornalista possuía tipo sanguíneo raríssimo, O negativo, que estava em falta. Mas eis que era o mesmo da esquentada Márcia. 

          Como ironia pouca é bobagem, Márcia, repleta de remorso até o último fio de cabelo tingido, fez questão de ficar ao lado do moribundo até a sua completa recuperação. E, entre olhares de desespero e esperança, os dois acabaram se apaixonando. Quem não gostou nada dessa história foi o Múcio, que prometeu dar cabo no amigo da onça. 

          Diante do espelho, Múcio estava decidido em prosseguir com seu intuito, quando um resquício de razão apareceu carregado pelo vento que entrou pela janela do banheiro. Melhor deixar aquela traição de lado. O motivo, até hoje ninguém sabe. Se bem que, para quem desconhece, diz-se à boca pequena que o José tratava a navalha com maestria. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Na mira do revólver" foi publicado por Notibras no dia 28/4/2025.
  • https://www.notibras.com/site/uma-velha-historia-la-do-amarelnho-no-gilberto-volta-a-ordem-do-dia/ 

domingo, 27 de abril de 2025

Aluísio, o sedentário

    

Marta andava preocupada com o marido, sedentário de carteirinha. Ademais, o sujeito não largava mão do cigarro, sem contar que, quase todos os dias, exagerava na carne com generosa borda de gordura, e adorava uma caipirinha no final do dia, assim que chegava ao apartamento do casal localizado no Sudoeste, nobre região de Brasília.

          — Aluísio, Aluísio!

          — O que foi, meu amor?

          — Você deveria se matricular na academia.

          — Marta, minha querida, você já faz ginástica por nós dois.

          O homem continuava a levar a situação, cada vez mais calamitosa, na brincadeira, para desespero de Marta. Até promessa na igreja a mulher teria feito, conforme confidenciara às amigas mais próximas. No entanto, nada parecia demover o inativo a continuar com o traseiro gordo na poltrona. 

          Desanimada, Marta começou a ter pesadelos de que estava viúva. A criatura acordada toda suada, ofegante, o que começou a mexer com o seu emocional. Até pensou em buscar ajuda de um psicólogo, mas percebeu que o melhor seria marcar consulta com um nutricionista para o esposo. E foi o que fez, antes mesmo de comunicar sua decisão ao amado.

          Um dia antes da consulta, eis que Marta telefonou para Aluísio a fim de avisá-lo sobre o compromisso. Ela estava no trabalho, mas sabia que o companheiro curtia uma folga do trabalho. Todavia, assim que ouviu a voz ofegante do gajo, Marta teve um treco. 

          — Aluísio, minha vida, você tá bem?

          — Ah, amor, tô!

          — Pois tô com a impressão de que seu coração tá saindo pela boca.

          — Ah, é que acabei de chegar da academia. Ufa! Tô exausto!

          — Que maravilha, meu amor! Malhou perna ou braço?

          — Que nada! Fui só perguntar o preço.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Aluísio, o sedentário" foi publicado por Notibras no dia 27/4/2025.
  • https://www.notibras.com/site/aluisio-sedentario-provoca-pesadelos-de-viuvez-em-marta-a-esposa/

sábado, 26 de abril de 2025

Dora e o casal de joão-de-barro

        Sem sonhos, sem a mínima expectativa de mudanças, Dora se sentia livre quando entrava no ônibus a caminho de qualquer lugar, fosse para o trabalho, fosse para casa ou até mesmo para uma visita ao irmão, que residia do outro lado da cidade. Era seu momento de abstração da vida, quando deixava-se concentrar em coisas ou situações alheias ao seu mundo repleto de mesmices. 

        Maria das Dores Almeida dos Santos, 55 anos, em processo de separação, três filhos quase criados, um vira-lata, apanhado na rua e, desde então, tratado como se fosse da família. Ou melhor, é da família e, como a mulher costuma dizer para quem quiser ou não ouvir, é o único que realmente a escuta. 

          Entre tantas viagens de idas e vindas, Dora foi testemunha do começo de namoro entre um casal de joão-de-barro. Como assim? Bem, é que a mulher, alheia ao que acontecia dentro do coletivo, olhou através da janela e vislumbrou dois desses pássaros tão comuns pelo Distrito Federal. Um deles, talvez o macho, parecia indeciso, enquanto o outro, certamente a fêmea, com um sorriso no bico, observava o galanteador desastrado. 

          Dora percebeu que passarinhos parecem mais decididos em relação aos rumos da vida, pois, já no dia seguinte, lá estavam aqueles dois na mesma árvore construindo o ninho. Essa rotina durou quase três semanas, o que foi uma surpresa para a observadora: "E pensar que o traste do Gilberto levou mais de mês pra fixar um único azulejo no piso da cozinha."

          Fã dos atores Fernanda Montenegro e Fernando Torres, Dora passou a chamar seus amigos alados de Nanda e Nando. Pois é, para você ver! Alheios àquela observadora, os passarinhos eram chamados por apelidos, como se íntimos dela fossem. 

          Certa manhã, praticamente dois meses após testemunhar o início do relacionamento entre Nanda e Nando, eis que, para surpresa de Dora, ela observou um movimento incomum no ninho. Curiosa que era, não perdeu tempo e desceu no ponto de ônibus seguinte. Andou até debaixo da árvore e, então, constatou que eram filhotes. 

          A mulher não soube confirmar se eram dois ou três. Quem sabe até quatro? Não importava, já que se sentiu madrinha daqueles bebês. E, ainda que desejando ver de perto os herdeiros da comadre e do compadre, Dora achou por bem deixá-los sossegados. Afinal, quem já teve crianças em casa bem sabe o trabalhão que dá. 

          No final daquele dia, ao passar diante da árvore residencial dos seus quase parentes, Dora se sentiu tão emocionada por poder participar, a seu modo, claro, daquele milagre, que sorriu o sorriso de quem sabe que a felicidade ainda é possível. E, mal chegou à sua modesta casa em Samambaia, foi contar a descoberta para o seu cachorro.

          — Sansão, corre aqui, que mamãe precisa te contar um segredo!

  • Nota de esclarecimento: O conto "Dora e o casal de joão-de-barro" foi publicado por Notibras no dia 26/4/2025.
  • https://www.notibras.com/site/dora-o-casal-de-joao-de-barro-madrinha-por-afinidade-e-o-segredo/

sexta-feira, 25 de abril de 2025

Encontro de antigos e novos jornalistas

    

       Lá estavam reunidos os companheiros de redação do finado Silva, notório e notável jornalista dos mais combativos durante o cruel, nefasto e sanguinário período da Ditadura Militar. O grupo sempre se encontrava no mesmo bar, o Beirute, ali no coração da Asa Sul, em Brasília. Entre os confrades, poderíamos destacar Armando Cardoso, Mathuzalém Júnior, Marta Nobre, Cassiano Condé, Wenceslau Araújo e, obviamente, José Seabra, vulgo Chefe, que, com sua voz carregada de alcatrão, era o responsável por abrir a rodada de comes e bebes. 

          Aquela confraternização acontecia desde 1986, quando o país, finalmente, começou a respirar ares de democracia. Ressabiados que eram, as conversas continuaram em tom de bossa-nova, baixinho, baixinho, baixinho... Levou tempo, até que o Silva, naqueles idos vivinho da Silva, começou a aumentar o tom. Não tardou, os companheiros se sentiram desinibidos e confiantes após mais de duas décadas de repressão. 

          Alguns causos foram contados naquele fim de tarde e, dependendo do locutor, eram mais curtos ou deveras extensos. Aliás, o Armando, famoso por ser muito mais prolixo do que poliglota, abusou dos verbetes encontrados no livro do primo do Sérgio Buarque. Enquanto isso, o Wenceslau, a Marta e o Chefe fingiam prestar atenção, já que ninguém queria arrumar pendengas com o colega. 

         Alheio àquilo tudo, mesmo porque já conhecia todas as histórias do Armando, Cassiano trocava figurinhas com a caçula da trupe, Cecília Baumann, a Ceci. Esta, por sua vez, falava ao celular com o Daniel Marchi, que, entre seus felinos e o pequeno Francisco Filipino, tentava buscar inspiração para mais um dos seus contos. Foi aí que o Mathuzalém começou a enaltecer a mais nova colunista do Notibras, a Dona Irene. 

          O Chefe, que não perde oportunidade, resolveu fazer uma ligação de vídeo para a colega de última hora. A Dona Irene levou um tempo para atender, pois, segundo consta, estaria trocando a fralda da filha, a Malulinha.

          — Oi, Chefe!

          — Ouça o que o Mathuzalém tá falando de você.

          O antigo jornalista, então, repetiu palavra por palavra para que a Dona Irene pudesse se inteirar. Mas eis que a moçoila, vaidosa que é, surpreendeu a todos.

          — Mathuza, por favor, se quer elogiar, faço questão de elogios rasgados.

  • Nota de esclarecimento: A crônica "Encontros de antigos e novos jornalistas" foi publicada por Notibras no dia 25/4/2025.
  • https://www.notibras.com/site/encontro-de-antigos-e-novos-jornalistas-com-um-brinde-a-dona-irene/

quinta-feira, 24 de abril de 2025

Contos, gostos e filhas

    

    Ainda não cheguei ao ponto de viver exclusivamente de literatura. Nem sei se tal dia chegará, mas realmente não é algo que me atormente. É que o bom de ser escritor é saber que sempre temos uma folha em branco diante da nossa imaginação infinita. 

          Já tive meus recalques, talvez até continue com alguns. Creio que o que mais me incomoda é a divergência de pensamentos de alguns leitores em relação ao que escrevo. Calma, que explico! 

          Após publicar centenas e centenas e centenas de contos e crônicas, além de alguns romances, tenho cá os meus prediletos. É verdade que não consigo memorizar todos, ainda mais porque saem diariamente aqui no Notibras. Entretanto, como disse, gosto mais de uns do que de outros. Talvez, até por isso, alguém poderia dizer que não sou um bom pai, já que os meus escritos, naturalmente, seriam como filhos e, dessa forma, não poderia ter preferências em relação a eles.

          Estive recentemente em Coqueiral-Aracruz, no Espírito Santo, onde passei alguns dias com a Mariana, minha filha do meio. Estávamos conversando no confortável sofá na varanda, quando ela pegou meu aparelho celular. Ela, que nem a minha esposa e a minha filha mais velha, a Ninica, sabe a senha. Para minha surpresa, a Mariana me questionou.

          — Sou a filha que você menos ama, né?

          — O quê?

        — É que a senha do seu celular tem a ver com a Ninica, e a foto da tela é da Malulinha.

          — É, mas com quem estou neste momento?

          A Mariana e eu nos abraçamos demoradamente. Na verdade, das três, ela é a que mais se parece comigo. E não é apenas fisicamente, mas no jeito de ser. Sem contar que somos apaixonados por matemática e temos uma rivalidade antiga no tênis de praia, que é uma modalidade esportiva inventada por nós dois há muito, muito, muito tempo. Inclusive, nossas partidas valem o título de campeão mundial de tênis de praia, quase sempre vencido por ela. 

          Mas estava eu falando sobre literatura e acabei descambando para o lado dos filhos que, no meu caso, são três filhas. Todavia, o que quero dizer é que não apenas tenho, entre tantos textos de minha autoria, alguns favoritos, como possuo um que guardo até em pedestal. Trata-se de um conto, que escolhi para ser o primeiro do meu mais recente livro '57 Contos e crônicas por um autor muito velho', que saiu pela Joanin Editora, e está concorrendo ao importante prêmio Jabuti deste ano. 

          Vou aqui expor um comentário que me é tão caro, pois foi feito por um dos mais notáveis autores do nosso tempo, o Daniel Marchi: "Edu, 'A carta e a urna' é uma das coisas mais sensacionais que já foram escritas em língua portuguesa."

          Ainda me lembro de como surgiu a trama na minha mente. Sentado à mesa do nosso apartamento em Porto Alegre, escrevi 'A carta e a urna' em meros 20 minutos. Devo acrescentar que digito muito rápido. Minha esposa, a famosa Dona Irene, logo percebeu o sorriso bobo estampado no meu rosto.

           — Edu, você tá bem?

           — Leia isto.

          Assim que terminou a leitura, a minha amada me deu um beijo quase cinematográfico, como se estivéssemos correndo na praia e, após alguns rodopios entre as ondas, rolássemos na areia. Já assistiram ao filme 'A um passo da eternidade'? Bem, não sou Burt Lancaster, nem a Dona Irene é a Deborah Kerr, se bem que considero a minha mulher muito mais linda. 

          — Nossa, Edu! Este conto já nasceu um clássico!

          Hum... O que estava dizendo mesmo? Ah, sim! Falava sobre recalques, pois tenho cá alguns poucos. É que, não raro, recebo elogios a respeito de textos que, a meu ver, não são tão bons assim. No entanto, o problema não é esse. O que me causa aflição é quando alguém faz comentários não tão lisonjeiros a algum dos meus contos que me são tão caros.

        — Ah, Edu, que final foi aquele? Não gostei! Por que você deixou o crápula impune?

      Nunca fui indelicado com meus leitores, nem mesmo quando fui ofendido publicamente. Não é papel do escritor ser grosseiro com quem o lê. Isso bem sei, pois, como qualquer leitor, tenho cá minhas preferências. E a Dona Irene, sempre sábia, tem a resposta para minhas angústias.

      — Edu, não adianta tentar controlar o gosto do leitor. Esquece! Isso nunca vai acontecer.

  • Nota de esclarecimento: A crônica "Contos, gostos e filhas" foi publicada por Notibras no dia 24/4/2025.
  • https://www.notibras.com/site/como-religiao-futebol-e-politica-gosto-do-leitor-tambem-nao-se-discute/

quarta-feira, 23 de abril de 2025

Causos e intrigas de botequim

   

Há gente para todos os gostos, ainda mais enquanto numa mesa de botequim. Desde completos ignóbeis aos mais notáveis filósofos de 51 ou Pitú. Em um ponto entre tais extremos, está o Dirceu, mais afeito aos destilados do que aos fermentados. 

          — Sou fiel a qualquer nova experiência que me atraia.

          — Tipo o quê, Dirceu?

          — Prefiro a incerteza do desconhecido à mesmice do cotidiano.

          Creio que a maioria dos que o aplaudem nem entende o real significado do dito, assim como a quase totalidade daqueles que o vaiam. Dirceu parece ter vindo a este mundo com propósito quase gêmeo ao do saudoso Abelardo Barbosa, aquele mesmo que o povo dizia que estava com tudo e, nem por isso, ficava prosa. "Eu vim para confundir, não para explicar!"

          Outra figura interessante é o Manuel, vulgo Arrependido. Por quê? É que o sujeito bebe todas e mais algumas nos finais de semana, mas, já nas manhãs das ingratas segundas-feiras, pode ser visto com uma Bíblia debaixo do braço, pregando para quem estiver disposto a ouvi-lo. Desse modo, tirando os desavisados, ninguém é besta de parar para escutar tamanha ladainha. Seja como for, basta o relógio apontar 18h na sexta-feira seguinte para que o Arrependido volte a pisar no solo sagrado da senhora cachaça. E digo mais: sem qualquer resquício de arrependimento!

          Por falar no Arrependido, não tem como deixar de mencionar a Santinha, cujo nome vou manter em segredo até mesmo para proteger a moça de certos comentários que, não tenho a menor dúvida, seriam todos maldosos. Pois é, a Ludmila... Eita! Escapuliu! Também, quem mandou a guria não se comportar? 

          Você deve estar se perguntando o porquê do tal apelido. Bem, é que a Ludmila, mulher casada com o Onofre, de vez em quando, aparece acompanhada do marido. Para entender melhor a história, vale a pena informar que o gajo também tem um codinome: Soneca.

          Creio até que você já deve ter percebido que o nosso Soneca é do tipo que, quando bebe além da conta, adormece em berço esplêndido, no caso, deposita a face sobre a mesa e ronca a plenos pulmões, como se estivesse em casa. Pois é justamente nessas horas que a Santinha, talvez estimulada pelas caipirinhas, começa a se atirar para cima do primeiro sujeito disponível. 

          Não vou ser maldoso ao ponto de afirmar que tais flertes foram além de piscadelas, sorrisos e toques de pés maliciosos sob a proteção divina da mesa. Se vi ou não algo além disso, prefiro me abster, mesmo porque, como já li num para-choque de caminhão, que Deus deu a vida para cada um cuidar da sua. Entretanto, como aprendi com minha finada avó, não coloco a mão no fogo nem por mim, quem dirá pros outros.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Causos e intrigas de botequim" foi publicado por Notibras no dia 23/4/2025.
  • https://www.notibras.com/site/causos-e-intrigas-acontecidas-em-botequim/

terça-feira, 22 de abril de 2025

TOC e acumulação compulsiva

    

Transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) e acumulação compulsiva não são a mesma coisa. Entretanto, ambos podem causar situações esdrúxulas para quem convive com alguém acometido dessas doenças. 

        Marineide, aos 70 anos, completados recentemente, vive essa dupla experiência de lidar com pessoas singulares: Osmar, 45 anos, e Romilda, de 48. O primeiro é seu filho mais velho, que mora em um quarto e sala no Guará. A outra é sua amiga, moradora de Sobradinho, que conheceu em um churrasco de amigos. 

          A velha, que é mais de observar do que falar, tenta compreender como é que a mente desses dois indivíduos, que lhe são tão caros, funciona. Seja como for, Marineide gosta de falar que, até hoje, não conseguiu entender direito essa peça arredondada que todos temos acima do pescoço. Todavia, não lhe falta vontade para tentar decifrar seus enigmas, mesmo que saiba que jamais conseguirá alcançar tal intuito. 

          Marineide, aposentada há tempos, sabe que os transtornos do Osmar e da Romilda não são iguais. No entanto, para simplificar as coisas, gosta de dizer que a diferença é apenas por conta da localização. Isso mesmo! Enquanto o do Osmar fica no polo Norte, o da Romilda está no lado oposto.

          O apartamento do Osmar possui meros 40 metros quadrados, o que nem é tão pequeno assim para um solteirão convicto. Ah, mas nada comparado ao quase palacete de sua mãe, que ainda reside em Luziânia, município próximo ao Distrito Federal. Para se ter ideia, apenas a cozinha é maior do que o, vá lá, cubículo do filho.

          O sujeito tem TOC de limpeza. Como trabalha em regime de home office, faz seu horário no trabalho. Só sai para fazer compras no mercadinho ao lado.

          Ele limpa o apartamento três vezes por dia. Mas não pense você que é daquelas limpezas superficiais, tipo passar um pano e pronto. Não mesmo! É limpeza de verdade, inclusive com direito de fazer aquela faxina no banheiro, como precisasse disso, já que o local brilha mais do que purpurina em rosto de folião em tempos de carnaval.

          Marineide, que também não é fácil, toda vez que faz uma visita de surpresa, tenta encontrar algum deslize do filho. Não encontra nada! Nem aquele lodo nos cantinhos ou respingo de sabonete no blindex. Nessas horas, a coroa coloca até os óculos para enxergar melhor, mas nem um milímetro de sujeira. 

          — Osmar, fico aqui imaginando se lodo fosse remédio para salvar vidas.

          — O que a senhora disse, mãe?

          — Lodo! 

          — E o que tem isso a ver com salvar vidas?

          — Se alguém precisasse de lodo para se salvar, iria morrer aqui no seu apartamento.

          A mulher observa bem a cozinha, os armários, o fogão, a geladeira. Nada! Nem mesmo um mísero farelo de pão. 

          — Meu filho, queria eu ver você manter essa limpeza lá em casa.

          — Por isso, mãe, que procurei um apartamento minúsculo para dar vazão à minha ânsia de limpeza. Se fosse na casa da senhora, eu morreria de cansaço no primeiro mês. 

          Isso mesmo! O gajo não duraria muito tempo no casarão da matriarca. Pois é, com cinco quartos grandes, três banheiros, aquela infinidade de degraus para subir para o segundo andar, sem contar a enorme área externa. Sim, isso mesmo, se já não bastasse o quintal na frente, ainda tem outro nos fundos ainda maior.

          Agora é a vez de falar um pouco sobre a Romilda, que reside em uma casa pouco maior do que o apartamento do Osmar. Com dois quartos, sala e cozinha de tamanhos razoáveis, é um local que nem boa parte das moradias dos brasileiros. 

          Romilda, ao contrário do filho da Marineide, deixa juntar louça suja até que a pia, aos prantos, implora por alguma alma caridosa disposta a pegar a esponja e uma boa quantidade de detergente. Por sorte, Lucinha, a filha universitária, quando chegar com disposição ao lar, doce lar, consegue apaziguar aquele caos de panelas, pratos, copos e talheres. 

          — Mãe, a senhora entulhou a pia novamente.

          — Depois dou um jeito, minha filha.

          Pior do que a situação da pia, há certamente outro. É que a Romilda junta aquelas inúmeras trabalhas, o que faz com que a sua casa pareça menor até do que o apartamento do Osmar.  

          Sem se dar conta, a mulher junta tudo o que se possa imaginar, ao contrário do Osmar, que é a pessoa mais minimalista do mundo. Romilda parece não distinguir o que é ou não útil e, dessa forma, guarda embalagens de refrigerantes e sucos. Para não deixar barato, até aquelas de isopor usadas para quentinhas são devidamente juntadas. 

          As visitas, mal chegam à casa da Romilda, precisam ir afastando as caixas, inclusive retirar os inúmeros objetos inúteis sobre o sofá. A pobre Lucinha, envergonhada pela situação, até fala para a mãe parar de guardar tanto entulho. Não tem jeito, pois é como falar ao vento.

          Recentemente, Marineide teve uma conversa com a amiga e, ao que tudo indica, a convenceu a procurar ajuda de um psicólogo ou psiquiatra. Parece mesmo que a mãe da Lucinha irá fazê-lo. Quanto ao Osmar, ainda se mostra reticente quanto à ideia. Quem sabe a solução para o TOC do gajo seja mesmo retornar para a casa da mãe?

  • Nota de esclarecimento: O conto 'TOC e acumulação compulsiva' foi publicado por Notibras no dia 22/4/2025.
  • https://www.notibras.com/site/osmar-faxineiro-do-proprio-ape-so-se-corrige-voltando-a-casa-da-mae/

segunda-feira, 21 de abril de 2025

Viagem de ônibus

    

Adoro viajar de ônibus, enquanto minha mente vagueia através das paisagens que surgem ao longo das estradas. Já vi árvore que parecia gente, os galhos eram cabelos, o tronco retorcido como se fosse pernas cruzadas. Coisas de criança que ainda pairam por aqui nesta quarentona.

          Às vezes, por causa do enorme fluxo de veículos, o trânsito quase para. Como não dá para lutar contra aquilo que não temos domínio, busco me distrair com os comentários dos outros passageiros. Alguns furiosos, como se fossem resolver o problema aos gritos. Outros chateados e há até alguns que não estão nem aí. Será que não ligam porque estão indo ou voltando para um lugar que odeiam?

          Entre tantas observações, costumo abrir a cortina da janela e procuro algo mais interessante lá fora. Quando estou com sorte, avisto alguns animais. Vaca é o que mais tem, mas cavalo não é algo raro. Já vi tatu, tamanduá, cobra e até lobo-guará, que estava tristemente se decompondo no acostamento, provavelmente atropelado ao tentar atravessar de um lado para o outro.

          Durante a viagem, várias cidades, algumas que mais parecem vilarejos. Tento adivinhar quem mora lá, como se não acreditando que a felicidade possa estar longe dos grandes centros urbanos. Que bobagem a minha! Logo eu, que vivo no interior que fica a mais de 500 quilômetros da capital. Todavia, isso não é motivo para não continuar tentando desvendar como é o dia a dia daquela gente. 

          Afinal, quem é que mora naquele casebre lá embaixo? Janelas e portas cerradas, ou está dormindo ou saiu. Se bem que pode ser um ermitão. Será? Talvez trabalhe naquele comércio adiante ou, então, seja um dos poucos fregueses, tão ínfimo que é o número de pessoas nas ruas. 

          De vez em quando, quando a noite se faz presente, é possível ouvir risos e gemidos próximos. Geralmente de jovens se divertindo. Volto os olhos para a janela e observo o céu. Quando tem estrela, tento contá-las, mas logo desisto. Se está nublado, fecho os olhos e procuro me lembrar de algo, geralmente bobagens ditas por Jorge, meu marido. Rio em silêncio, ao contrário de algum casal no fundo do ônibus. Nem me dou conta de quando adormeço. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Viagem de ônibus" foi publicado por Notibras no dia 21/4/2025.
  • https://www.notibras.com/site/da-poltrona-ve-se-e-ouve-se-de-tudo-inclusive-gemidos-de-jovens-casais-la-atras/