Dizem que quem acredita em história de pescador é mais ingênuo do
que os que se apaixonam pela primeira vez. Mas eis que, caso você tenha fé
neste escriba, puxe a cadeira, recomendo até aquela acolchoada, e aproxime-se.
Se for o caso, ainda sobraram alguns salgadinhos que consegui surrupiar da
festa de aniversário de um sobrinho. Estão na geladeira, dentro de um potinho
de plástico de tampa vermelha. Sirva-se, por favor, sem parcimônia.
Quatro amigos, todos ao redor dos 60
anos, cujos nomes poderiam gerar desconfiança: Popoca, Antonho, Mosés
Seisho-no-ie e Celestiano. E lá foi a patota rumo ao lago Serra da Mesa, um dos
maiores do Brasil, na região de Niquelândia-GO, que fica a aproximadamente
quatro horas de viagem de Brasília.
Durante o trajeto, os confrades, ainda que camaradas, talvez
até por tal condição, procuravam azucrinar a cabeça um do outro. Popoca,
certamente o mais gaiato, instigava o Antonho a não deixar barato uma
piada
— Ah, não, Antonho! Você entendeu o que o
Celestiano disse sobre a sua pessoa?
— Minha pessoa? E quem é essa minha pessoa?
— Ué! É tu, mané!
— Eu?
Enquanto Popoca, Mosés Seisho-no-ie e
Celestiano gargalhavam, Antonho, justamente o mais parrudo da trupe, fechou a
cara. Estariam aqueles três zoando da sua pessoa, que, àquele momento, ele
entendeu que era ele? Ah, aquilo não ficaria assim. Mas vingança é prato que se
come frio e, não tardaria, ele encontraria um meio de se vingar não apenas do
Celestiano, mas também dos outros cúmplices de festejos em forma de
risadas.
Assim que chegaram, os quatro amigos trataram de
preparar a tralha, mesmo porque não queriam perder tempo, ainda mais que a
tarde corria que nem bicuda, peixe encontrado por ali. O plano era colocar o
barco na água e partir para uma ilha, onde acampariam por alguns dias. Era algo
da qual gostavam muito. Natureza, bem longe da civilização e rodeados de
mosquitos.
— Cadê o repelente, Celestiano?
— Ué, Popoca, não era a vez do Mosés trazer?
— Minha? Eu trouxe da última vez. Por acaso se esqueceu?
— Antonho, cadê o repelente?
— E eu lá sei de repelente, Popoca?
Discute daqui, discute dali, discute até de
acolá, eis que o Popoca solta aquela gargalhada e, em seguida, retira quatro
frascos de repelente da mochila.
— Tá aqui, bando de bocós!
Salvos das muriçocas, Popoca e seus parceiros,
após se alojarem na ilhota, resolveram acender uma fogueira a fim de
aquecê-los, bem como espantar possíveis animais. Eles sabiam que havia uma
onça-pintada na região e, ressabiados que eram, queriam manter a fera afastada.
Você já deve ter escutado que homens vivem menos, e não faltam razões
para tal afirmação. Pois é, acredite ou não, Antonho e Celestiano decidiram
sair de barco quando começou a escurecer. Lembre-se de que o lago é muito
grande, e, caso a pessoa não conheça o local, corre o risco de se perder, ainda
mais de noite, quando todas as partes do parecem iguais. Alerta é que não
faltou.
— Vocês estão variando?
—
Mosés, tá tranquilo. Confio no Antonho como se fosse meu avô.
—
Tá me chamando de velho, Celestiano?
—
Nunca! Jamais!
—
Hum!
Popoca,
apesar de brincalhão, não gostou daquela ideia e tentou dissuadir os colegas.
Não adiantou. Teimosos que eram, lá foram Celestiano e Antonho, confiantes que
estavam que aquela era a hora ideal para se pescar uma boa corvina. Não
demorou, a dupla sumiu na imensidão da Serra da Mesa.
Não teve jeito. Popoca e Mosés Seicho-no-ie
tiveram que se conformar e, após quase três horas ao redor da fogueira, nem
cogitaram dormir, tamanha a preocupação. Conjecturaram e rezaram todas as rezas
que conheciam e, quando já não conheciam mais, começaram a inventá-las.
Lamentosos, pediam que os aventureiros retornassem sãos e salvos.
A realidade, entretanto, mostrava sua face
mais cruel. É que Antonho e Celestiano, como já era previsto, se perderam e,
pior, a gasolina acabou. O resultado foi que tiveram que remar, remar, remar,
remar...
—
Celestiano, você não sabe nem remar. Remar é para os nobres.
— Hum! Antonho, se suas pescarias forem
caminho, só quero andar pelos desvios a partir de agora.
Remaram tanto que, já era de madrugada, quando os dois,
milagrosamente, chegaram a uma outra ilha. Sem alternativa, retiraram o barco
da água e o puxaram alguns metros adiante.
Os perdidos, diante da temperatura que havia
baixado consideravelmente, tiveram que deitar de conchinha para tentar aplacar
o frio. E não pense você que conseguiram dormir, pois algo parecia
espreitá-los. Sim, isso mesmo! Esturros de onça-pintada, que parecia cada vez
mais perto.
— Num vai borrar as calças, Celestiano!
— Pois eu digo o mesmo pra você, Antonho! Ouvi dizer que onça sente
cheiro de bosta de longe.
Não sei se você conhece a música "Galho
seco", do Zé Gerado. Bem, há uma parte da letra que é assim: "quando
tudo está perdido, só quando tudo está perdido na vida, é que a gente descobre
que na vida nunca tudo tá perdido, minha flor". Pois, no momento em que os
dois desesperados se encontravam em uma encruzilhada, eis que surgiu um
relampejo de lucidez.
— Antonho, me dá um cigarro.
— Num é possível que você vai querer fumar
justamente agora.
— Me dá logo esse cigarro, homem!
Antonho, não querendo discutir justamente no
instante em que ele e o amigo iriam virar comida de onça, pegou o maço e o
entregou.
— O isqueiro, né?!
— Tu vai mesmo fumar agora?
— Vamos!
— Num tô com vontade, Celestiano.
— Pois vai fumar, nem que eu tenha que enfiar
o cigarro goela abaixo.
— Tá bom! Tá bom!
Assim que passou o isqueiro para Celestiano,
Antonho viu dois olhos gateados brilhando vindo na sua direção. Não teve
dúvida, era mesmo a onça-pintada, que caminhava tranquilamente.
— A onça!
Celestiano
rosqueou, rosqueou, rosqueou até que, finalmente, a chama se fez presente.
Acendeu o cigarro e deu aquela tragada. Em seguida, soltou a fumaça, enquanto
sacudia o isqueiro acida da cabeça.
— Fuma,
Antonho! Fuma também!
Sem
alternativa e vendo que aquilo estava funcionando para manter o felino
afastado, Antonho acendeu um cigarro e começou a fumar. Pensou em juntar uns
galhos secos, mas a ilhota não passava de um banco de areia. O jeito, então,
era acender um cigarro atrás do outro e torcer para que eles não findassem até
o dia raiar.
Por sorte, algumas horas após, começou a clarear, quando Antonho e
Celestiano perceberam que nem sinal da fera, além de pegadas do tamanho de
abacate dos graúdos. Talvez ela não estivesse com fome ou, então, estaria mais
interessada nos jacarés. Seja como for, os homens arrastaram o barco de volta
para o lago e, após algumas horas, conseguiram avistar dois indivíduos
conhecidos, que acenavam vigorosamente. Lá estavam seus amigos Popoca e Mosés Seisho-no-ie.
Mais várias remadas, agora com os ânimos aliviados, Celestiano e Antonho
conseguiram chegar à ilha. Abraços efusivos dos quatro companheiros de viagem.
Nada mais de se aventurar noite adentro.
A pescaria, apesar do susto, foi proveitosa. Não por conta da
quantidade dos peixes, que não foi além de dois tucunarés e uma corvina. E, na
última noite no local, os quatro acenderam uma fogueira, onde assaram os
peixes. Foi aí que o Popoca, incomodado com a fumaça dos cigarros do Celestiano
e do Antonho, disse:
— Vocês dois vão acabar morrendo de tanto
fumar.
—
Hum! Popoca, pois fique sabendo que foi justamente o cigarro que nos salvou.
Num foi, Celestiano?
— De acordo, meu amigo Antonho!
- Nota de esclarecimento: O conto "Os pescadores, a onça e o cigarro" foi publicado por Notibras no dia 3/11/2025.
- https://www.notibras.com/site/os-pescadores-a-onca-e-o-cigarro/




