domingo, 30 de novembro de 2025

Onofre, o miserável

    

Há gente que tem a mania de fracassar. Isso mesmo. Pode até parecer loucura, mas conheci um tipo assim, o Onofre. Pois você acredita que o gajo não podia ver uma oportunidade de fracassar que corria para ter mais um revés?! Loucura, insanidade, masoquismo, seja lá o que for, é isso que acontecia.

       Onofre, assim como os demais na década de 1940 ali naquele quadradinho em Goiás, que nem sonhava se tornar a capital do país, vivia uma vida comum de menino. É verdade que a pobreza era flagrante, mas o então garoto nem se dava conta de sua situação, até porque lhe faltava tempo para pensar em outras coisas além de acordar cedo e ajudar o pai, meeiro, na lavoura e na lida de animais.

        De tanto pisar em estrume, Onofre sentiu certo desconforto quando sentiu pela primeira vez a dureza do asfalto. Como se aquela vida corrida e cheia de fumaça e indiferença não lhe pertencesse. Fora alijado da roça pelos donos da terra, que não queriam mais saber daquele povo. Que fossem embora em busca de novos ares, mesmo que morressem sufocados por falta de perspectivas. Não era problema deles.

          Quando chegou o tempo, alguns foram empurrados para o Rio de Janeiro, outros para São Paulo. Onofre, que não desejou fazer tamanha travessia, preferiu ficar pelas redondezas, ainda mais porque, com a chegada de milhares de trabalhadores, ditos candangos, de todas as partes, a região, que não parava de crescer, ofertava emprego para indivíduos sem muita qualificação. E o que antes era pasto, lavoura e mata, agora se transformara em canteiro de obras. 

          — Sabe fazer massa de cimento?

          — Num sei.

          — É fácil. Até burro aprende.

          Aprendeu. E, que nem burro de carga, carregava o que fosse preciso nos ombros. E cada vez mais o peso encurvava a postura do homem, que mais parecia animal diante dos que detinham o poder de mandar. Melhor acatar ou, do contrário, era mandado embora, ainda mais porque, como estava no papel, a era da chibata havia ficado para trás. Mentira das cabeludas, que ninguém acreditava, mas não havia corajoso para abrir a boca.

         Por destino ou coisa que o valha, eis que surgiu oportunidade de trocar o cabo da enxada por chicote. Receoso da mudança que se avizinhava, faltou-lhe ímpeto para cambiar o mundo dos miseráveis por algo que só conhecia através dos olhos dos acostumados a apanhar. Declinou.

           — Num sei fazer isso, não, seu moço.

           Um mais esperto tomou a dianteira e se prontificou a pegar o cargo.

           — Pois eu aceito! E posso começar agorinha mesmo.

          Menos desprovido de carnes, o minguado tratou logo de pegar o porrete antes que desistissem de lhe dar o emprego. E o primeiro a sofrer as agruras foi justamente o Onofre, que tropeçou nos próprios pés e derramou dois baldes cheios de massa. E toma! E toma! Que esse desperdício vai sair do seu salário, miserável!

         Percebe-se logo acima que a vírgula entre salário e miserável poderia ser retirada, pois tanto Onofre como o salário que recebia eram miseráveis. Miséria, aliás, poderia ser o sobrenome do sujeito. Onofre Miserável. Não há mal mais apropriado do que esse para alguém tão afeito a sentir o gosto amargo do azedume da amargura. Se lhe tirarmos isso, é capaz do homem reclamar por sua ausência.

         Psicologia, meu caro. Psicologia! Não raro, até os próprios entendidos se percebem em mato sem cachorro. E não pense você que a coisa parou por aí. Nananinanão! Se há raios que caem duas, três e até quatro vezes no mesmo lugar, esse é o tal raio da penúria, tão conhecido dos que praticam a mendicância.

         Onofre não quis ou não percebeu a oportunidade de se tornar servidor público, seja na então da Guarda Especial de Brasília (GEB), seja de chofer de algum ministro de Estado, seja até mesmo de contínuo da Câmara dos Deputados. Era como se o sujeito jogasse contra o próprio time, que apitasse a favor do adversário, que fizesse de tudo para que o inimigo o sobrepujasse.

          Não morreu esquecido, pois não havia criatura que se lembrasse do Onofre.

          — Onofre?

          — Sim.

          — Que Onofre?

          — Dizem que é um que vivia por aqui desde bem antes de Brasília.

          — Dos Santos?

          — Pode ser. Talvez Oliveira ou da Silva. Vá saber?!

          — Num sei. Mas por que pergunta?

          — Por nada.

          — Por nada não pode ser. Se não, nem perguntava.

          — Curiosidade apenas.

         — Pois agora me lembrei de um Onofre. Acho que era mesmo Onofre. Morreu não faz nem um mês. Dizem que foi massa de cimento.

         — Massa de cimento?

         — Sim. Massa de cimento.

         — E como é que pode um troço desses?

      — Pois esse tal Onofre deu bobeira justamente quando um caminhão-betoneira derramou aquela montanha de massa de cimento. Só descobriram o sujeito dois dias depois. Duro que nem asfalto.

          — Eita! Coitado!

          — Ninguém liga, não. Era apenas mais um miserável neste mundo de Deus.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Onofre, o miserável" foi publicado no Notibras no dia 30/11/2025.
  • https://www.notibras.com/site/onofre-o-miseravel/

sábado, 29 de novembro de 2025

Celestiano e a firma

          

            Celestiano era sujeito respeitável no Cruzeiro Velho, especialmente aos olhos dos frequentadores da ARUC, a mais tradicional escola de samba do Distrito Federal.  E quem visse a criatura cercada de bajuladores não seria capaz de imaginar que nem sempre a situação havia sido aquela. 

          Bem, para que você que está me lendo possa entender de que forma o velho Celestiano veio parar aqui com tamanha reputação, precisaremos retornar ao longínquo ano de 1974, quando ele desfrutava o frescor dos 28 anos. Isso sem contar que o gajo era tido como bonitão, apesar da completa falta de recursos para bancar até mesmo uma simples cerveja para os brotinhos que lhe lançavam olhares ambíguos. 

          De índole quase dócil, Celestiano acabou cruzando o caminho de Lúcio, cujo pavio curto era notório naqueles idos. Um brigão, mas que não sabia se defender com eficácia, haja vista os diversos hematomas que cismavam em aparecer a cada contenda. Bastava um olhar enviesado, um pisão ou uma esbarrada de ombros para o sujeito se eriçar que nem galo de briga. E era lapada para todo lado. 

          De boa estatura e provido de carcaça desejável para um lutador, Celestiano não via motivo para brigas. Todavia, não suportava covardia, ainda mais diante dos seus olhos, como a que ocorreu naqueles idos. Lúcio, cercado por quatro tipos mais parrudos, parecia ter encontrado o seu fim. Mas eis que Celestiano, sem dizer palavras, já nocauteou o primeiro e, em seguida, o segundo e o terceiro. Quanto ao quarto elemento, nem foi preciso agir, pois o tipo tratou de se evadir do local que nem rato que foge para o bueiro. 

          Lúcio, ainda com os punhos em riste, olhou com desconfiança para o seu salvador. Em seguida, o frangote começou a relaxar até que, finalmente, baixou a guarda. 

        — Obrigado pela ajuda, amigo, mas não precisava.

        Celestiano sorriu amigavelmente e, como era da paz, concordou com um leve aceno de cabeça. Não seria ele a inflamar os ânimos daquele homem, ainda mais porque, como aprendera com o avô, os frangotes são os mais fáceis de serem derrubados, mas os mais complicados de serem vencidos, pois nunca desistem de lutar. Estendeu a mão.

        — Meu nome é Celestiano.

        — Lúcio. Prazer.

        — Prazer. 

          Aquela briga teria sido por disputa de área de jogo do bicho. E Lúcio estava se tornando graúdo demais para os olhos dos mais antigos. Decidido que era, precisava marcar seu território. E ele ficou muito agradecido pela ajuda inesperada e, então, arrumou posição para Celestiano na firma. 

          Apesar das incongruências e talvez por conta delas, a amizade entre aqueles dois foi instantânea e durou até o mês passado, quando Lúcio, que enfrentara problemas de saúde, sucumbiu. É verdade que a vida do bicheiro poderia ter sido muito mais curta, já que oportunidades não lhe faltaram ao longo dos anos. 

          Antes de dar adeus ao mundo dos vivos, Lúcio mandou chamar Celestiano, que gozava de confortável aposentadoria em Cabo de Santo Agostinho, litoral de Pernambuco. Este, quando soube do quadro de saúde do amigo, não teve dúvida. Tomou um avião no mesmo dia e desceu em Brasília. 

          Foi o tempo de chegar e trocar poucas palavras com Lúcio, cuja fisionomia não deixava dúvida quanto ao quadro terminal. Celestiano se aproximou do leito, pegou a mão do antigo patrão, que disse que a firma precisava dele novamente. 

          — Já estou velho, Lúcio.

        — Todos estamos, meu amigo. Mas meu filho não saberá tocar os negócios sozinho. 

         Celestiano, sem alternativa, assentiu com a cabeça. Pacto firmado, seguiu-se o seguinte interlúdio.

         — Pois é, Celestiano, o fim da linha chegou pra mim.

          — Que nada! Você nunca vai morrer, Lúcio.

           — Quem não morre não vê Deus.

           No dia seguinte, Lúcio foi enterrado no Cemitério Campo da Esperança.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Celestiano e a firma" foi publicado no Notibras no dia 29/11/2025.
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sexta-feira, 28 de novembro de 2025

Genoveva, intragável e folclórica

    

Genoveva não era de gastar muita saliva quando queria cuspir algum desaforo, ainda mais se fosse por uma causa justa. No entanto, mesmo diante de flagrante equívoco, a mulher fazia questão de fazer uso do mesmo estratagema. E que os ouvidos se acostumassem com a insolência ou, então, que fosse pros quintos do inferno.

          A despeito de tamanho destempero, a senhora, que pela aparência beirava os 80 anos, desfrutava de certo prestígio na vizinhança, como se fosse parte da história daquela gente. Uma espécie de chata de estimação. E ai se alguém de fora falasse mal da mulher! Ih, não faltariam bocas para defendê-la com unhas, dentes e uma sacola cheia de impropérios.

        Viúva pela segunda vez antes dos 30, Genoveva até que tentou convencer dois ou três a firmarem compromisso, mas os gajos, ressabiados que ficaram, preferiram não ir além das noites de alcova. O tempo correu ligeiro e, então, a jovem e atraente Genoveva recebeu a visita das implacáveis rugas. Todavia, isso não foi empecilho para deixar de ir em busca de prazeres, apesar de cada vez mais escassos, até que o caldo engrossou e, então, a mulher se viu sozinha. Quer dizer, há quem afirme que, mesmo que raramente, a coroa ainda vive momentos de luxúria, que podem ser ouvidos por toda a quadra na Asa Norte. 

          Se isso é lenda ou fato improvável, não se pode afirmar com certeza. Seja como for, ninguém duvida ou acredita, como se aquela condição fosse mais um atrativo que encantasse e afastasse os olhares curiosos. Ademais, a folclórica personagem, vez ou outra, era o tema central de acaloradas discussões no botequim do Bosco, onde a galera mais tradicional costumava se juntar nos fins de tardes de domingo. 

          E lá estava a velha guarda reunida, momento em que adentrou no recinto a Genoveva, amparada pela velha bengala com castão de cabeça de cavalo. Ela lançou um olhar sobre a mesa e reconheceu a todos, não somente os amigos, mas principalmente um desafeto: o Horácio.

          Horácio, tipo incomum na área, não passava despercebido, seja por conta do bigode à Salvador Dali, seja pela peruca sem qualquer congruência com a realidade. Regulava em idade com Genoveva, mas apresentava aparência mais estragada, como se a combinação de genética ruim e hábitos péssimos tivessem dado as mãos na juventude e, desde então, mantinham sólido matrimônio. 

          Genoveva foi até o balcão e pediu um maço de cigarros, o que chamou a atenção dos presentes. Será que a velha havia começado a fumar? Outra hipótese é de que ela talvez o fizesse nas noites solitárias no pequeno apartamento. 

          — Começou a fumar, Genoveva?

          — Horácio, quando é que foi mesmo a última vez?

         — Última vez do quê?

         — Que eu te mandei pro inferno.

         Todos riram, menos o Horácio, que quis porque quis dar o troco. O problema é que não era rápido de raciocínio. Pensou, pensou, pensou e nada. Mas eis que, já na calçada em frente ao bar, a Genoveva escorregou e caiu de bumbum no chão. 

          Ninguém riu. As testemunhas pareciam sinceramente preocupadas com o bem-estar da Genoveva. Horário e mais dois foram socorrê-la, mas a mulher estava mais intragável do que de costume.

            — Tire essas patas de mim, Horácio!

            — Eu só quero ajudar.

            — Que ajudar o quê?! Tu me passou uma rasteira, que sei!

            — Eu?

            — Sim! Você mesmo, seu salafrário!

            Bosco, o dono do boteco, quis sair em defesa do Horácio. 

            — Genoveva, todo mundo aqui viu. Você caiu sozinha. A culpa foi sua.

            A idosa fitou o Bosco, depois olhou a plateia ao redor e, utilizando de toda a sua expertise, sai com essa.:

            — Olha aqui, Bosco, como você mesmo disse, a culpa é minha, e eu a coloco em quem eu quiser.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Genoveva, intragável e folclórica" foi publicado no Notibras no dia 28/11/2025.
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quinta-feira, 27 de novembro de 2025

A menina, o pai e o dia de chuva

          

            Alice, dois anos, queria porque queria ir ao parquinho como todos os dias. Mas eis que amanheceu com aquela chuvarada, que se estendeu por toda a tarde, o que deixou a criança impaciente. O pai, que estava de férias, resolveu dedicar o tempo todo ao lado da filha, enquanto a mãe vivia em reuniões no trabalho.

          O homem, que adorava aqueles momentos, parecia se divertir até mais do que a pequena Alice. Era como se revivesse o seu tempo de infância, quando sua avó lhe contava e recontava histórias. Naqueles idos, também havia o galinheiro no quintal, com o galo cantando cocoricó a todo instante. E o então menino morria de medo do dono do terreiro, ainda mais porque o bicho tinha fama de bicar a criançada. 

          O pai pegou um livro de animais da fazenda. Alice pareceu encantada. Os dois imitaram a vaca, imitaram o cavalo, imitaram o porco, imitaram o pato, imitaram até o jumento e, óbvio, não poderiam faltar as imitações do galo, da galinha e dos inúmeros pintinhos. 

          Depois foi a vez do livro sobre os bichos da selva. Lá estavam o tamanduá, a onça, o jacaré, a coruja, a anta, a capivara e até a jiboia. Mas a menina ficou encantada mesmo foi com o lobo-guará. 

            — Au-au!

            — Não, Alice. Esse aí é o lobo-guará.

            — Au-au!

            Não tinha conversa e, por isso, o pai gargalhou do próprio pensamento. Aquele lobo-guará parecia mesmo um cachorro. Mas um cachorro de pernas compridas que nem girafa. O exagero fazia parte da brincadeira.

            Também brincaram de pintar, de colar, de amassar papel, de encher balão e fazer um monte de bolhas de sabão. Tudo dentro de casa. Aliás, casa de criança, do tipo que nem adianta arrumar arrumadinho, pois já desarruma desarrumadinho. 

      Quando a mulher chegou, viu o marido e a filha deitados no tapete da sala. Adormecidos, mas com semblante de felicidade. Ela desejou se deitar também. Tirou os sapatos que a apertavam e se esparramou ao lado. Como é bom deitar no tapete, pensou. Fechou os olhos e, abraçada ao esposo e à filha, dormiu.     _ 

  • Nota de esclarecimento: O conto "A menina, o pai e o dia de chuva" foi publicado por Notibras no dia 27/11/2025.
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quarta-feira, 26 de novembro de 2025

Um caso de polícia na alta sociedade

          

        Se há males que vêm para o bem, parece que a situação enfrentada por Jairo não era exatamente essa, pois o levaria para a prisão. E não havia mais instâncias a recorrer, já que todas teriam se esgotado com o trânsito em julgado. Também, quem mandou matar o pobre Waldomiro, cujos dotes generosos o levaram para a alcova de Monique, a fogosa esposa do condenado.

       O caso em questão, que repercutiu sem qualquer cerimônia pela alta sociedade brasiliense, atingiu também de maneira generosa a plebe, que se divertiu com a exposição dos fatos em rede local. E, quando todos imaginavam que o traído pagaria por seu crime, ao contrário do Zé, o executor, eis que o mandado de prisão bateu à porta da mansão no Lago Sul. 

          Às seis da manhã, não houve toc-toc, mas blim-blom, já que se tratava de região de endinheirados. Quem atendeu foi a Maria, uma das empregadas da residência. A mulher tomou um susto, mas não por causa da visão dos policiais, já estava acostumada com aquilo. Porém, não ali naquela parte do Distrito Federal, onde a campainha nem costuma tocar àquela hora da matina e, quando acontece, ou é parente chegando de viagem ou, então, alguma encomenda. 

          — Pois não?

          — Somos da polícia. O senhor Jairo Malaquias Bastos se encontra?

          — Sim. Mas o patrão ainda está dormindo e não gosta de ser acordado.

          O policial, mandado de prisão nas mãos, sorriu por conta da inocência da empregada.

          — Precisamos entrar, senhora. Estamos com um mandado de prisão.

          Enquanto dois policiais ficaram na sala, outros dois subiram as escadas e, aí sim, aconteceu o famoso toc-toc. Não tardou, surgiu Jairo, cara de sono, pijama listrado, como se esperasse ser preso. Monique, ainda na cama, cobriu-se quase por completo, deixando apenas o rosto para fora. Ela percebeu que, finalmente, as garras da justiça alcançaram o esposo. 

          Enquanto Jairo trocava de roupa, Monique apenas observava. Calada, já que não havia palavras para serem ditas. E seu único gesto foi apenas aceitar o beijo de despedida do marido, que foi conduzido, sem algemas, para o a sede da Polícia Civil do Distrito Federal, onde ainda passaria por audiência de custódia. De lá, direto para a Papuda, onde cumpriria a pena cabida.

          Monique aguardou por mais 10, 15 minutos, tempo mais do que suficiente para que os policiais saíssem do local com Jairo. Sem ter o que fazer, fechou os olhos e, não tardou, adormeceu. 

           Já era por volta de meio-dia quando Maria, preocupada com a patroa, foi bater à sua porta. Vá que a dona da casa tivesse sucumbido diante da visão da prisão do marido. Não adiantou o toc-toc e, então, a empregava abriu a porta de leve. 

           Lá estava Monique adormecida. A cútis impecável, como se tivesse saído de um spa. Teria morrido? Tal pensamento fez Maria se aproximar da patroa e, antes que pudesse dizer algo, os lindos olhos castanhos de Monique se abriram. 

            — Que susto, dona Monique!

            — O que é, Maria? Tá me espionando agora?

          — Que isso, patroa! E eu lá sou dessas? Tava é preocupada com a senhora.

          — E por que estaria preocupada comigo?

          — Ué, por causa do seu Jairo.

           — Ah, é! Você tem razão.

           Como num passe de mágica, o semblante da patroa se transformou em calvário. 

           — Maria, minha amiga, hoje é um dia triste, muito triste.

           — Sim, senhora. Muito triste. Nem sei o que faremos sem o seu Jairo.

           — É verdade, minha amiga Maria.

           — E a senhora não tem o que fazer pra ajudar o seu Jairo?

          — Eu? Não sou advogada, minha amiga. Além do mais, temos que enfrentar a realidade. C'est la vieVamos começar o dia!

           Maria observou nova mudança de semblante da patroa e, por um instante, também pareceu animada.

               — Vou preparar um café reforçado pra senhora.

               — Esqueça o café por esses dias, Maria. Traga-me champanhe!

  • Nota de esclarecimento: O conto "Um caso de polícia na alta sociedade" foi publicado no Notibras no dia 26/11/2025.
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terça-feira, 25 de novembro de 2025

Uma conversa do além

       

       Bartolomeu morreu e não percebeu, como se aquilo fosse cochilo de domingo à tarde. Já acordou do outro lado, no caso, o além, como se nada tivesse acontecido de diferente. No entanto, não tardou, pensou que estivesse sonhando. O motivo? É que se deparou com o Osvaldo, antigo desafeto, cujo destino, até onde Bartolomeu tinha conhecimento, teria sido na boca de um clã de hienas no parque Masai Mara, no Quênia. 

          O defunto de última hora, caso não estivesse mortinho da silva, certamente teria enfartado quando percebeu que Osvaldo se aproximou com aquele sorriso debochado e, pasmem, puxou conversa.

        — Finalmente, Bartô! 

        — Bartolomeu, por favor! 

        — Que isso? Somos amigos há tanto tempo!

         — Conhecidos e nada mais, Osvaldo.

         — Ih! Tu já chegou todo azedo!

         — Como assim?

          — Azedo. Que nem limão.

          — Não é isso.

          — Como não é, Bartô? Quer dizer, senhor Bartolomeu.

          — Não precisa ser sarcástico. 

          — Hum! Mas tu continua o mesmo chato de galocha, hein?!

          — Desculpe. Colegas. Pode ser?

           — Que seja, né, Bartolomeu?!

            — Mas você disse que eu já cheguei.

            — É.

            — Cheguei onde especificamente?

            — Ah, não acredito!

            — Não acredita no quê, Osvaldo?

            — Tu é mesmo um sortudo!

            — Sortudo?

            — É!

            — Você poderia ser mais direito, Osvaldo?

            — Tu tava dormindo, né?

            — É. 

            — Sabia!

            — Por acaso anda me espionando agora?

            — Não é isso, Bartô... Quer dizer, Bartolomeu.

            — E é o quê, então?

            — Tu morreu! Tá mortinho que nem eu e todo aquele povo dali.

            — Morto? Você quer dizer morto de verdade?

            — É! Só não vá ter um piripaque.

            — O quê?

            — Brincadeira! Aqui ninguém morre.

            — Não?

            — Óbvio que não! Só se morre uma vez, Bartolomeu.

            — O quê? E aquele lance de reencarnação? Não existe?

            — Bobagem! Morreu, morreu, babau.

            Bartolomeu, olhos arregalados, não sabia o que dizer. Ainda se considerava jovem. Quer dizer, havia passado dos 40 sem grandes remorsos e, agora que estava perto de completar meio século, todos os planos teriam se transformado em pó. 

        De tão perplexo com aquela situação, começou a sentir a orelha esquerda esquentando, como se alguém estivesse falando mal dele. O que estariam dizendo?  

        Junto à quentura, sentiu também a umidade. Agora não duvidava de que o estavam malhando quem nem Judas. O que ele teria feito de tão ruim para merecer tudo aquilo? Sempre se considerou bom filho, bom irmão, bom marido, bom pai, bom amigo... Diante de tantas dúvidas, Bartolomeu abriu os olhos e deu de cara com o Bronquinho, seu buldogue, que, após tantas lambidas, conseguiu despertá-lo. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Uma conversa do além" foi publicado no Notibras no dia 25/11/2025.
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segunda-feira, 24 de novembro de 2025

Era uma vez um aprendiz de escritor

  

Carlos ganhava a vida como corretor imobiliário, mas sonhava em ser escritor. E o sujeito nem pensava em ser famoso, era questão de extravasar no papel todas suas angústias. Se viesse inspiração para poesias, melhor. O problema é que a sua existência não possuía dramas homéricos, o que, segundo ele, era quase uma impossibilidade para escrever algo que valesse a pena. 

          Havia lido em algum lugar que o lance era escrever de maneira concisa ou, então, esticar ao máximo para parecer inteligente. Mas, aí, Carlos se encontrou em uma encruzilhada, pois receava por provável avalanche de besteiras, que certamente aconteceria. Pior, de modo impiedoso, o que frustraria qualquer tentativa de se tornar um escritor de verdade.

          Diante de tamanho dilema, eis que o gajo recebeu visita inesperada durante madrugada de insônia. A consciência.

          — Bobagem, Carlos!

          — Bobagem? Como assim, meu outro eu?

          — E quem disse que sou o seu outro eu?

          — E não é?

          — Óbvio que não!

          — E o que tu és, então?

          — Sua consciência, meu caro.

          — Que seja! Mas o que quero saber é por que você disse que é uma bobagem?

          — Simples, meu querido. Quantos e quantos escritores famosos você conhece?

          — Sei lá! Um monte.

          — Pois você se recorda dos seus tempos de estudante?

          — Hum! De que época específica você está falando?

          — Final dos anos 1970, início de 1980.    

          — E o que tem isso a ver?

          — Pois você se lembra de que não parava de reclamar que era um certo baiano o autor brasileiro mais lido no mundo?

          — Jorge Amado?

          — Tá vendo como sua memória continua boa?

          — Tá! Mas e o que tem isso a ver?

          — Pois é, Carlos, pra você ver como a coisa desandou de vez. 

          — É. Você tem razão.

          — Não sente saudade daquele tempo?

          — Nesse ponto, devo concordar. 

          — Então, deixa a bobagem de lado, e trate logo de colocar suas ideias no papel, nem que sejam tolices. Aliás, melhor que sejam.

          — Que sejam o quê?

          — Tolices! Bem sei que essas suas palavras darão boa liga. Quem sabe você não consiga transformar chumbo em ouro?

          E assim nasceu mais um escritor...

  • Nota de esclarecimento: O conto "Era uma vez um aprendiz de escritor" foi publicado por Notibras no dia 24/11/2025.
  • https://www.notibras.com/site/era-uma-vez-um-aprendiz-de-escritor/

domingo, 23 de novembro de 2025

Jaqueline, o sofá, o café e os passarinhos

          

        Jaqueline se desdobrava entre trabalho, casa, ser mãe e, quando sobrava tempo, mulher. Exaustão era algo que a acompanhava há tanto tempo, que ela nem percebia, como se aquilo fosse a própria normalidade cobrando seu quinhão diário.

          Sexta-feira, chegou ao pequeno apartamento, lançou um olhar apaixonado sobre o velho sofá, como se fosse refúgio. Exausta, só teve tempo de retirar os sapatos e se esparramar por cinco ou dez minutos, que se prolongaram até a manhã seguinte. Ninguém teve coragem de acordá-la. Que se virassem sem ela. 

          Despertou. Sim, despertou como há anos não o fazia. Abriu os olhos com dificuldade por conta da luz do amanhecer. Olhou ao redor, ergueu os braços e se espreguiçou com um sorriso nos lábios. Sorrir era algo que a mulher, até aquele instante, imaginava ter deixado em algum ponto lá atrás.

          Levantou-se e, descalça, foi até o banheiro e se olhou no espelho. Achou-se bonita, fez caras e bocas e pensou em soltar um grito só para escutar a própria voz, que andava tão calada. Não o fez, lembrou-se de que o marido e os filhos deveriam ainda estar dormindo. 

          Na cozinha, preparou uma xícara de café. Soprou de leve, sorveu um gole apenas. Sentiu o gosto reconfortante e, em seguida, voltou para sala. Abiu a janela. Olhou dois passarinhos, que supôs serem um casal. Teriam filhotes ou ainda estavam na fase de namoro? Talvez tivessem ninho com dois ou três ovos, que certamente eclodiriam em breve. 

          João-de-barro. Sim, era um casal de joão-de-barro. Um tipo comum por ali. Jaqueline gostava do canto acolhedor daqueles pássaros de aparência simpática. Quando percebeu, havia dado o último gole no café.

          Retornou saltitante para cozinha, às vezes dois passos para um lado, depois para o outro, um ou dois para trás, seguia adiante num balé harmonioso. Ao redor, o caos, ainda que organizado, da sua vida.

Mais café. Jaqueline desejou mais café.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Jaqueline, o sofá, o café e os passarinhos" foi publicado por Notibras no dia 23/11/2025.
  • https://www.notibras.com/site/jaqueline-o-sofa-o-cafe-e-os-passarinhos/

sábado, 22 de novembro de 2025

Gente invisível

     

          Há uma fase da infância em que a imaginação é tão presente, que se confunde com a realidade. E foi nesse tempo em que Gilson queria ser invisível. Quer dizer, não só queria, como acreditava piamente que era. Só anos depois que percebeu que as pessoas podiam vê-lo. Era só uma questão de estar ou não interessadas em voltar os olhos para aquele pirralho, com cara de fome, cuja pele era marcada pelo barro vermelho de Brasília. 

          Antes mesmo de chegar à adolescência, Gilson teve certeza de que a vida pode e costuma ser cruel. As coisas belas que lhe contaram são destinadas a poucos. Quanto aos demais, que lutassem por migalhas porventura caídas.  E foi justamente a partir daí que começou a preencher folhas e mais folhas com seus garranchos. 

          A princípio, o meninote não tinha consciência do que estava fazendo, mas, assim que a puberdade chegou carregada de hormônios, a revolta se instalou de vez. Escrevia para protestar contra tudo e contra todos e, quando não havia por que reclamar, reclamava pelo simples hábito de reclamar.

          Protestou contra pai, mãe, tio, tia, irmãos, vizinhos, amigos e inimigos. O que não faltava era gente para o gajo reclamar. Suas ideias vinham do fígado e, por isso, era mais amarga do que a própria bile. E, quando tentavam florear seus escritos, Gilson se irritava, pois acreditava que apaziguar os ânimos era dar ainda mais força aos fortes. 

          Sem grandes expectativas, conseguiu vaga de repórter num pequeno periódico, onde começou a publicar suas amarguras. Lúcio, editor do jornal, logo percebeu que o rapaz possuía talento incomum para o drama e, desde então, lhe abriu meia página diariamente. Foi um sucesso. 

          Não se pode baixar a guarda. Quanto nos deparamos com problemas que parecem não ter solução, a infelicidade quer porque quer se instalar. E Gilson sabia disso melhor do que a maioria ao redor e, dessa forma, procurava ocupar a mente, nem que fosse com um Chicabon de Nelson Rodrigues. Mas o famoso picolé, quando imaginado por Gilson, não tinha o sabor adocicado, e sim o amargor da completa falta de alento em tempos cada vez mais sombrios na capital.

          Era 1973, ano do assassinato da pequena Ana Lídia, que abalou a sociedade brasileira, mas foi incapaz de prender e condenar os verdadeiros culpados, já que os ditos cujos eram filhos de autoridades do mais alto escalão do governo federal. Nananinanão, meu pirão primeiro! Ame-o ou deixe-o!

          — Te amo.

          — O quê?

          — Te amo!

          — Por quê?

          — Num sei. Quando a gente ama, Gilson, precisa ter um motivo?

       Envolvido com tantas denúncias anônimas de assassinatos, torturas e desaparecimentos, Gilson não soube o que dizer. Aceitou o convite para um cinema por simples falta de forças de dizer não. 

          Lara era desquitada. Praticamente uma contraventora dos bons costumes. Ademais, sem filhos por simples capacidade de gerá-los. Perfeita, diriam alguns, por conta da impossibilidade de gerar bastardos de algum homem respeitável. Seria, então, mera válvula de escape para mais um dia estafante de um figurão.

          Não foi naquele fim de tarde que aconteceu. Também não surgiu nos dias seguintes, mesmo após se amarem. Somente no final de dois ou três meses que algo começou a despertar no coração do Gilson.

           — Te amo.

           — Diz isso por educação?

           — Educação?

           — É!

           — Não! Por que faria isso?

           — Sei lá! Você que tem que saber.

           — Te amo! Te amo, Lara!

           No final de 1974, resolveram juntar os panos. Os vizinhos cochichavam sobre aquela pouca-vergonha. Houve alguém que pensou na possibilidade de acionar as autoridades, mas essa ideia foi deixada de lado. Quem se importaria? Que mantivessem ao menos portas e janelas fechadas.

             Chegou a redemocratização. Liberdade, liberdade! Abaixo a censura!

          Gilson e Lara ainda vivem no mesmo apartamento na Asa Norte. Sobreviveram. Uma vez por semana, ele escreve para um jornal virtual. Faz questão de relembrar os horrores da Ditadura Militar. É preciso. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Gente invisível" foi publicado por Notibras no dia 22/11/2025.
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