quarta-feira, 15 de outubro de 2025

Malu e o caquinho

Alfredo, assim que abria os olhos, era expulso da cama pelo pensamento que lhe fora incutido de que tempo é dinheiro. Levava tal premissa tão ao pé da letra, que não enxergava a pequena Malu, de dois anos, cujo semblante não parecia entender o porquê daquela correria toda. Se fosse ao menos para abrir a geladeira e pegar o pote de sorvete. Mas não!

          A menina, mal piscava os olhos de jabuticaba, perdia o pai de vista, que, não raro, saía de casa sem ao menos lhe dar um beijo de despedida. Era como se aquele homem fosse um ser praticamente desconhecido, caso não fossem por domingos e feriados breves. Aliás, mesmo nesses parcos momentos, sempre carregados de vazio, nada além de efêmeras trocas de olhares, como se o sujeito, apesar de esparramado no sofá, não estivesse ali, ou pior, não desejasse estar naquele ambiente. 

          A esposa se aproximou.

          — Vai trabalhar amanhã?

          — Preciso.

          — Hum...

          — O que foi?

          — Nada.

          — Como nada?

          — Nada, ué!

          — O que foi agora, Márcia?

          — É que a Malu sente a sua falta.

          Alfredo encarou a mulher, depois voltou a olhar para a filha, que estava sentada no tapete, absorta com o desenho animado na televisão. 

          — Ela nem sabe que existo.

          — Sabe, sim!

          — Até parece...

          — Alfredo, por que você não aproveita a sua folga hoje e vá brincar com a Malu no parquinho.

          — Parquinho?

          — É! Tem um parquinho ali em frente.

          — E eu lá tenho tempo pra ir a parquinho, Márcia?

          O leve tom acima do normal chamou a atenção da pequena, que voltou o semblante para o pai. 

          — Caquinho?

          — O quê?

          — Ela está te chamando pra ir pro parquinho, Alfredo.

          O homem encarou a garotinha, que abriu um sorriso que ele não conhecia ou, ao menos, não se lembrava. Sem coragem de dizer não, sorriu de volta.

          — Sim, Malu. Parquinho. Não é caquinho, hein?! Par-qui-nho!

          Alfredo, Malu no colo, atravessou a rua e se dirigiu ao parque, que ficava a menos de 200 metros da residência. Enferrujado por anos atrás da mesa do escritório, o corpo sentiu o tranco de aguentar tamanha euforia da criança. Todavia, quando se deu conta, já estava anoitecendo.

          A dupla, mal retornou ao lar, estava exausta, apesar de feliz. Tanto é que Alfredo, ainda com a filha no colo, beijou a esposa. 

          — E aí, se divertiram muito?

          — De montão!

          — Desculpe por tirá-lo do sossego no seu dia de folga, meu bem.

          — Sabe de uma coisa que há anos tinha me esquecido?

          — O quê?

          — Como é bom brincar no caquinho.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Malu e o caquinho" foi publicado por Notibras no dia 15/10/2025.
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segunda-feira, 13 de outubro de 2025

Tia Adriana e seu olhar gélido

              Exigente ou brincalhona, ninguém sabia dizer ao certo sobre o verdadeiro estado de espírito da tia Adriana, cujos olhos gélidos costumavam se fixar sobre o semblante assustado de familiares, amigos e desconhecidos. Tamanha incógnita, aliás, era mote de conversas pelos cantos, como se os alvos e as testemunhas pudessem decifrá-la. 

          Lembro-me bem de um acontecido incomum, até mesmo para minha tia, que geralmente se mantinha praticamente muda, caso possamos desconsiderar gemidos ou sons guturais emitidos enquanto aquele olhar inquisidor era alçado sobre mais uma das vítimas. No dia em questão, creio que uma quarta-feira, que era quando geralmente me encontrava com a minha parenta distante o suficiente para não me comprometer, e perto demais para correr risco de respingos tocarem o meu íntimo. 

          Lá estava eu no mercado da família a fim de fazer os pedidos semanais para os fornecedores. Enquanto entrava em contato com o frigorífico, notei que um homem enorme, desses que evitamos até olhar para não provocarmos pendengas desnecessárias, levantou a voz para a minha tia, que estava confortavelmente sentada na cadeira lendo o jornal. Nem quis me inteirar do assunto, mesmo porque temia que tamanha intromissão se voltasse contra mim. 

          Antes de lançar sobre o sujeito aquele olhar de provocar medo inclusive no próprio Demônio, tia Adriana deu uma enérgica sacudidela no jornal, o que fez com que até mesmo as moscas parassem de respirar por um instante. Foi o suficiente para que o grandalhão percebesse que havia ultrapassado a linha do bom-senso e, quase de imediato, abaixou os olhos em sinal de submissão. 

          Nunca soube o que de fato teria levado àquele desaforo. Seja como for, procurei me concentrar no pedido junto ao frigorífico. No entanto, ainda me lembro do troglodita rateando mais do que motor de carro antigo antes de se despedir. 

            — Tá-tá-tá bom pra se-se-senhora, do-do-dona Adri-dri-driana?

            — Quase bom, pra não variar!

  • Nota de esclarecimento: O conto "Tia Adriana e seu olhar gélido" foi publicado por Notibras no dia 13/10/2025.
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domingo, 12 de outubro de 2025

Entre hormônios e devaneios

       

        Parecia que, daquela vez, a coisa não iria desandar como das tantas e tantas outras. Se bem que, como dizia a avó, a vida de Julião era mais imprevisível do que jogo do Botafogo.  E quem teria coragem de ir contra tal pensamento, ainda mais porque a matriarca era afeita a manter as rédeas curtas, sem qualquer possibilidade da parentada se rebelar. Quer dizer, uma das filhas, Helena, entre os 14 e 16 anos, tentou alçar voos mais distantes, mas não resistiu à pressão e logo voltou a baixar a cabeça para que o dinheiro continuasse a cair na conta. 

        Julião, fruto do relacionamento de Helena com Jorge, um músico fracassado, parece que herdou o tino para os negócios do pai, que nunca conquistou nada além do que o cargo de assessor parlamentar por conta de influência da sogra. Seja como for, ninguém poderia acusá-lo de não tentar, pois era o que mais havia feito desde que, aos 12 anos, imaginou que iria ganhar milhões vendendo sacolé. Obviamente que não faturou milhões, ainda mais porque passava mais tempo chupando a iguaria, principalmente os de amendoim com leite condensado, esquecendo-se de que aquilo era para vender. 

         Aos 15 anos, imaginou-se astro de rock que nem o pai, que nunca havia ultrapassado as gincanas de escolas, quando os cachorros-quentes com Coca-Cola parecem atrair mais a atenção do público do que as bandas desconhecidas que se humilham sobre o palco improvisado. Sem o sucesso almejado, Julião não se deu por vencido. Vendeu a guitarra e, ouvindo as vozes da sua cabeça, que se debateram por dias, despertou numa cinzenta manhã de segunda-feira.

          — É isso! Vou ser astro de cinema.

     O então novo desejo foi abandonado sem que as tais vozes precisassem debater novamente. Simplesmente foi esquecido como aquele beijo em não sei quem durante uma festa sei lá onde. Se bobeasse, era capaz do rapaz afirmar categoricamente que jamais se imaginou estrelando uma película ao lado da sua musa da vez, a atriz Carla Marins. 

          Vendedor de sacolé, astro de rock, galã do cinema, piloto de corridas e até astronauta, todos sonhos murchos que nem balão de festa no dia seguinte. Mas não podemos negar que Julião era dotado de imaginação. Quer dizer, não tanto assim, já que seus devaneios são comuns a jovens impulsionados por aquele turbilhão de hormônios, que parecem arrancar qualquer resquício de razão. O problema é que, agora aos 50 anos, o sujeito queria porque queria se tornar inventor.

          — Mas inventou de quê, meu filho?

          — Num sei ainda, mamãe, mas tô que não paro de pensar.

      — Hum! Pois vá pensar ali fora, que o ar aqui dentro já tá impregnado de tantas quimeras.

       Helena balançou a cabeça de um lado para outro, enquanto viu o filho ir se sentar debaixo de uma mangueira no amplo jardim da residência. Foi para cozinha, onde encontrou a mãe, que degustava um café, cujo aroma inebriava o ambiente. 

          — Que cara é essa, Helena?

          — Mamãe, estou encucada com uma coisa.

          — Que coisa, minha filha?

          — O Julião.

          — E o que tem o meu neto favorito?

          — Sei que ele é a cara do pai. Não tenho a menor dúvida de que o Julião é filho do Jorge. Mas...

            — Mas o quê?

         — É que o Julião não se parece nada comigo. Será que é possível ele não ser meu filho?

  • Nota de esclarecimento: O conto "Entre hormônios e devaneios" foi publicado por Notibras no dia 12/10/2025.
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sábado, 11 de outubro de 2025

Dona Loreta e o cachorro desmilinguido

    

    Desmilinguido, aquele cachorro, mero quadrúpede desprovido de qualquer graça, chegou ao pé da porta do barraco, moradia de dona Loreta, viúva desarranjada da vida, que a segurava talvez por teimosia. É que a velha já tentara de tudo para não precisar ser enxotada da cama antes mesmo do dia amanhecer, pois não tinha outro jeito a não ser sair para catar as latinhas na rua antes que outro catador o fizesse.

       Dona Loreta, com uma pedra maior e menos calejada que suas mãos, desferia porretadas até que cada lata ficasse tão amassada, que poderia ser usada como lâmina para cortar os pulsos ou as jugulares. Coragem que faltava para tal intento e, por isso, a idosa batia, batia, batia até que não sobrasse mais alumínio para ser batido. 

       Assim que todas as latas estavam devidamente espremidas e colocadas em um enorme saco trançado de propileno, a mulher imaginou ter ouvido um gemido. Pensou se tratar de uma vizinha mais exibida em mostrar que ainda conseguia arrancar algum prazer da vida, quando, então, constatou o engano. Isso é bicho com certeza! Pois passe, que aqui é casa de pobre.

        Mal completou a frase, se deparou com aquele fiapo que cismava em se agarrar a este mundo, quando o mais sensato era se render ao próprio destino. Entretanto, aquele animal parecia preferir trocar a brevidade por algo que, mesmo correndo o rico da quase certeza do prolongamento da penúria, lhe forrasse o estômago desértico. Dona Loreta torceu os lábios duas ou três vezes, franziu a testa e, finalmente, tentou arrancar uma confissão do filhote.

       Que porcaria é você? Hum! Quem te trouxe até aqui? Num vai me responder?

      Ela acolheu o vira-lata no colo e o levou até a cozinha, onde lhe deu um pouco da comida que lhe faltava. 

        — Só espero que você não coma muito ou vamos os dois morrer de fome antes que finde o mês. 

        Antes do cachorro devorar o último grão, a pobretona exclamou:

        — Jonas! Sim, vai ser Jonas! Tenho certeza de que o Jonas não vai se importar se eu colocar o nome dele em você, seu porcaria. Ele foi o meu cachorrão e, agora, você será o meu cachorrinho. 

        Dona Loreta soltou aquela gargalhada se lembrando da cara que o marido sempre fazia quando ela lhe contava algo engraçado. Só parou porque engasgou com a própria alegria momentânea, como se não lhe fosse permitido ser feliz, nem mesmo por um efêmero instante. 

            — Mas tu é mesmo feio!

            A mulher observou aquele pedaço de desnutrição, que pareceu não entender o que eram aqueles sons estranhos saídos dos lábios murchos.

            — Olha aqui, Jonas, não adianta fazer essa cara, que não tenho culpa de você ser feioso. 

                O cachorro ganiu, momento em que dona Loreta o acomodou novamente em seus braços.

              — Fica triste, não, Jonas. A vida é feia, mas é a única que você e eu temos. 

            Jonas não cresceu tanto, talvez por conta da genética, mais provável que fosse por conta das escassas refeições. Sobreviveu, é verdade, que nem dona Loreta, que nem toda aquela gente daquele lugar, que insiste em tentar mais um dia, apenas mais um. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Dona Loreta e o cachorro desmilinguido" foi publicado por Notibras no dia 11/10/2025.
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sexta-feira, 10 de outubro de 2025

Juvenal, Alaíde e a dívida

          

        Juvenal andava mal das pernas. Desempregado, fazia um bico aqui, outro ali. O que conseguia angariar era ninharia. Por sorte ou desespero do sujeito, Alaíde, a esposa, fazia jus a um vultoso ordenado no fim do mês. A necessidade de ser o provedor o consumia que nem bicheira em carne viva. 

          Sentado à mesa, enquanto mastigava a carne macia, sentia engulhos, desejo de cuspir, pois aquele mimo era afronta à sua masculinidade tão dilacerada. Se dependesse dos seus ganhos, possivelmente passaria fome. 

          Alaíde, por sua vez, incentivava o esposo, dizia que logo ele arrumaria colocação em importante firma. Não tardaria, chegaria ao posto de assistente. Melhor, seria gerente. Juvenal apenas balançava a cabeça, pois não acreditava naquele sonho tão distante, para não falar impossível. Gerente? Justamente ele que, até então, nunca havia passado de mero balconista de uma loja de ferragens. E, mesmo assim, perdera o emprego porque se confundiu entre uma furadeira e uma parafuadeira. Mero vacilo, que, até então, o patrão nunca havia visto igual.

        Desde a demissão, Juvenal era uma espécie de faz-tudo da região. Se precisava de um carregador de caixotes ou de um trocador de lâmpada, lá estava o marido da Alaíde. Se o pneu furasse, bastava chamar o sujeito para que, meia hora depois, o automóvel já estaria apto a rodar novamente. E não havia tempo ruim, pois ruim mesmo era a humilhação cada vez maior de voltar para casa sem um vintém no bolso. 

          Para piorar ainda mais a situação, o homem começou a ser ríspido com a esposa. Esta, por sua vez, preferia a mudez a se envolver em embates desnecessários. Não que fosse passiva diante das ofensas, mas era inteligente o suficiente para não gastar energia, que era utilizada para cumprir a jornada dupla de trabalho, já que Juvenal se negava a fazer a sua parte das tarefas domésticas. 

          Por causa dessas coisas que raramente acontecem, eis que, no horário mais improvável de que algo no dia mude, Alaíde recebeu um telefonema. Era Lauro, um primo, com quem a mulher andava de conversa. Mas não pense você que era coisa de traição, pois Alaíde era mais fiel do que cão-de-fila. 

          De tão entregue a Morfeu, Juvenal nem acordou. 

          — Alaíde, consegui!

          — Conseguiu mesmo?

          — Num tô te falando, Alaíde?

          — Eu sei, Lauro. É que ando tão nervosa com essa situação, que nem consigo acreditar que isso vai acabar.

          — E pode acabar amanhã mesmo!

          — Sério?

          — Sério! Num tô te falando?

        Alaíde mal conseguia acreditar naquela notícia. Há tempos estava aguardando, apesar de não depositar muita fé na promessa do primo. Pelo visto, ela estava errada, e Lauro bem que merecia uma compensação. No entanto, mulher casada e adepta da fidelidade, não era de bom-tom extrapolar na maneira do agrado. 

          Mal amanheceu, Alaíde despertou o esposo, que ainda roncava o sono dos preguiçosos. 

          — Acorda, meu amor!

          — Acordar pra quê, mulher?

          — Tu tá empregado!

          — Empregado?

          — Sim!

          — Como assim?

          — O Lauro falou com um amigo dele, que é gerente de uma empresa. 

           — Hum! O Lauro, né?!

          — Sim! Anda logo, que não fica bem você chegar atrasado logo no primeiro dia.

           Sem alternativa, Juvenal jogou uma água no corpo, vestiu-se, tomou uma xícara de café e foi trabalhar. E parece que gostou, pois voltou para casa todo sorridente, como um leão que tinha recuperado a juba. Tanto é que o homem fez questão de marcar território, o que deu à esposa a certeza de que ele ainda a amava. 

           Tudo parecia lindo e maravilhoso no lar, doce lar daquele casal. Mas eis que, por um infortúnio ocorrido com o gerente da tal firma, cujo coração lhe parou implacavelmente, o seu cargo ficou vago. Por falta de opção, o dono da firma nomeou Juvenal como novo gerente. Foi aí que as coisas começaram a desandar. 

          Juvenal mostrou-se excelente gerente, muito melhor do que o seu antecessor. O problema foi que o sucesso, parece, lhe subiu à cabeça. Agora, após anos de humilhação, seu salário era maior do que o de Alaíde. 

            Em vez de encarar aquela situação de maneira racional, o gajo começou a se achar o rei da cocada preta. Não tardou, arrumou uma amante, justamente uma colega de função inferior. Não satisfeito, dois meses após, deu em cima de uma novata, que caiu em suas garras. 

          Alaíde, pura e besta, nunca desconfiou das traições do marido. Entretanto, percebeu que ele andava mudado. Passou a tratá-la com arrogância, como se fosse sua empregada. Ah, aquilo era demais! Como é que é? Agir assim justamente com quem tirou o sujeito da sarjeta? Nananinanão!

          Sem alarde, Alaíde, desprovida de qualquer sentimento de culpa, convidou o primo para um chá com torradas no meio da tarde de uma segunda-feira. Ela sabia que era dia do marido fazer serão. E, desde então, o Lauro vai visitá-la, mesmo que, não raro, os dois nem toquem nas torradas. Dívida paga! 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Juvenal, Alaíde e a dívida" foi publicado por Notibras no dia 10/10/2025.
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quinta-feira, 9 de outubro de 2025

Amarildo, o ranzinza

             Inconformado. Sim, era esse o modo do Amarildo, bancário por profissão, casado com a terceira ou quarta paixão de sua vida, dependendo se incluirmos ou não o amor platônico que teve pela professora no primário. Sem filhos por imposição da correria do dia a dia, era afeito a reclamar de quase tudo. E, caso não encontrasse algo nesse entulho de tudo, tratava logo de arrumar um. 

          Esmeralda, a esposa, trabalhava no mesmo banco, mas em outra agência. Mulher interessante, porém, possuía o péssimo hábito, desde jovem, de se relacionar com resmungões. Talvez porque fosse o tipo a que estivesse acostumada, já que o pai, os tios e o avô pareciam enxergar o mundo pelo avesso. A mãe até tentou dissuadi-la de se juntar ao Amarildo, mas Esmeralda tinha a resposta na ponta da língua.

          — Ah, mamãe, eu sei. Mas o Amarildo beija tão bem.

          Pois é, o que parece ter salvado o sujeito foi a arte de saber beijar. Entretanto, mesmo que toda aquela rabugice sempre estivera presente na vida da Esmeralda, chega uma hora em que enche a paciência. E ninguém poderia acusá-la de não ser tolerante, ainda mais porque o marido reclamava até mesmo quando o casal estava tomando sorvete no parque. aos domingos ensolarados.

          — Que barulho chato é esse?

          — Barulho?

          — É! Barulho! Não está ouvindo?

          — Amarildo, meu amor, por acaso você está falando do agradável canto daquele lindo sabiá-laranjeira?

          — Agradável? Lindo? Aquilo lá parece mais uma matraca. E fique você sabendo que aquilo é até mais feio do que sorriso banguela de criança.

          Incrédula, Esmeralda encarou o esposo, balançou a cabeça em desaprovação, levantou-se do banco e foi embora. Amarildo demonstrou surpresa e ainda tentou dizer algo, mas a voz lhe faltou. Olhou o sorvete, que começou a derreter em sua mão. Atirou-o na lata em frente. 

          Sem coragem de voltar para casa naquele momento, Amarildo foi fazer uma visita de última hora à mãe, que morava a duas quadras dali. Mal entrou, seu rosto o denunciou.

          — O que foi, meu filho?

          — Nada, mamãe.

          — Quem nada é peixe. Vamos, diga-me o que aconteceu, que não nasci ontem.

          Depois de contar o ocorrido, Amarildo baixou os olhos, como se querendo sumir. A mulher, sentindo que o filhote precisava ser acarinhado, foi até ele e o abraçou.

          — Amarildo, meu filho, tem dia que já nasce noite. Mas isso é possibilidade para acendermos uma vela.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Amarildo, o ranzinza" foi publicado por Notibras no dia 9/10/2025.
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quarta-feira, 8 de outubro de 2025

Edson Antônio, o tanatopraxista

          

            Edson Antônio, além da combinação incomum de nomes, exercia profissão ainda mais esdrúxula. Pois é, o sujeito era tanatopraxista. Não sabe o que é? Vou tentar ser mais específico. Necromaquiador. Ainda não pegou a referência? Bem, ele era maquiador de defunto. 

          Tal profissão, entretanto, não era o seu sonho de infância que havia se realizado. Afinal, quem, em sã consciência, deseja trabalhar lavando cadáveres, fazer com que fiquem com aparência natural e serena, além de amenizar as marcas da morte para, assim, os enlutados não ficarem ainda mais consternados na hora do velório? Seja como for, parece que o sujeito cavou a própria cova. 

          Voltando alguns parcos anos atrás, lá estava o então displicente estudante de veterinária em uma aula de patologia. Não que não gostasse de estudar. Era o cheiro de formol, que subia pelas narinas e lhe queimava os olhos. Talvez por isso, Edson Antônio aguçava os ouvidos para não perder qualquer dica que, porventura, o professor jogasse no ar. 

          Enquanto o mestre fazia a necropsia do cadáver de um cachorro, ele fez uma correlação, até então, estranha aos alunos.

          — A necropsia é um livro aberto, e o perito precisa saber interpretá-la para não se confundir com a causa mortis.

          Foi aí que o Edson Antônio, que estava interessado em uma colega, quis fazer um gracejo.

          — Professor, só que esse livro está escrito em braile, né?!

          O professor encarou o aluno engraçadinho, mas se conteve, o que não o impediu de pensar: "Que imbecil! Aposto que não vai se formar."

          A previsão do educador, afinal, se concretizou naquele mesmo semestre, quando Edson Antônio percebeu que o seu futuro seria o de astro da música. O problema é que parece que ele se esqueceu de combinar tal intento com o público. 

          Longe da veterinária e dos palcos, o sem-futuro pulou de emprego em emprego até que um amigo da família o convenceu de que dar um trato em mortos era uma boa profissão, ainda mais que a grande maioria dos candidatos desiste na primeira semana por falta de coragem. Por sorte, o Edson Antônio não temia os mortos, mas os vivos. 

          O trabalho era solitário e, na maior parte, noturno. E lá estava o Edson Antônio passando um creme para restaurar a cor e a vitalidade da pele do cadáver de uma idosa quando, por milagre ou algo estranho à razão, as pontas dos seus ágeis dedos começaram a decifrar algo:

"Por que não tomei mais sorvete? Sempre gostei tanto de sorvete!"

          Pego de surpresa, o necromaquiador deu dois passos para trás. O que era aquilo? Cautelosamente, depositou o indicador da mão esquerda sobre o cadáver:

"Não tenha medo. Só quero tomar sorvete pela última vez."

           Edson Antônio, atônito, balbuciou:

           — Sorvete?

Nenhuma resposta, até que ele voltou a tocar o cadáver com os dedos:

"Sim. De abacaxi, por favor."

           — Abacaxi? Mas onde vou arrumar sorvete a esta hora?

           "Tem um supermercado aberto 24h aqui pertinho."

           — Você deve estar de brincadeira comigo.

           "Brincadeira que nada. É desejo reprimido mesmo."

           — Desejo reprimido? Ah, para com isso, né?!

           "Por favor, estou morta de vontade!"

           Edson Antônio tinha a alternativa de ignorar tamanha súplica. Todavia, curioso que era, queria ver onde é que aquela história iria dar. Ademais, também era fã de sorvete de abacaxi e, então, foi até o supermercado e comprou um pote de dois litros. 

           O homem abriu o recipiente diante do rosto da mulher, que, para seu espanto, abriu os olhos e lhe sorriu os poucos dentes que ainda lhe restavam e que logo seriam enterrados com ela. Edson Antônio, para entender o que a morta queria dizer, dedilhou a pele da mulher.

           "Vamos! Quero sorvete!"

           — Puxa, acabei me esquecendo de comprar uma colher.

          "Esquece a colher. Enfie um dedo nesse sorvete e coloque na minha boca."

          — Eca!

           "Deixa de ser ridículo!"

           — Ridículo? Olha como fala comigo, hein?!

          "Hum! Tá bom, tá bom, tá bom! Não sabia que você era tão sensível. Por favor, Edson Antônio, tenha piedade desta criatura que nunca mais vai ver a luz do dia. Ponha, por caridade, um pouquinho de sorvete nos meus lábios."

          Pego de surpresa, o sujeito juntou uma boa quantidade do sorvete com dois dedos e colocou nos lábios da morta. Ela sorveu tudo e agradeceu com um sorriso e uma piscadela de olho.

           — Ei, peraí! Como é que você sabe o meu nome?

           "Simples. Tá escrito ali na escala de serviço."

           — Ih, é mesmo! Aliás, qual é o seu nome?

          "Greta Garbo."

           — Sério?

           "Claro que não, né, seu tolo?!"

           — Ei! Não precisa me ofender!

           "Perdão novamente."

           — Ah, deixa pra lá! 

           "Nádia."

           — O quê?

           "Eu me chamo Nádia."

          — Sério?

          — Sim.

           — Prazer, Nádia!

           "O prazer é todo meu, Edson Antônio."

            O gajo, que não conseguia mais distinguir ilusão de realidade, estendeu a mão para a defunta.

            — Amigos?

            "Amigos."

          O velório aconteceu assim que amanheceu. Os poucos parentes, ansiosos para que aquilo terminasse logo, apressaram o enterro. Edson Antônio foi o único a verter lágrimas.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Edson Antônio, o tanatopraxista" foi publicado por Notibras no dia 8/10/2025.
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terça-feira, 7 de outubro de 2025

A vida não é tão simples assim

          

        Ludmila, mas pode me chamar de Lud. Nem precisa de senhora, pois sei que sou velha, não preciso de ninguém para me lembrar disso a todo instante. Então, Lud ou, caso não se sinta à vontade, que seja Ludmila, como as nossas idades fossem quase um abismo intransponível para alguém tão cheio de regras que nem... Bem, que nem você!

            Tudo aconteceu nos idos de 1963, quase início de 1964. Festa de Natal na casa de Dalva, tia do Jaime, com quem me casei tão novinha. Gente, como é que fui permitir que mamãe fizesse tamanho descalabro comigo? Tempos outros, quando as mocinhas, mal largavam as bonecas, já eram preparadas para o casório. E comigo não foi diferente. 

            Jaime Gonçalves do Amaral, um jovem advogado, provavelmente alvo de algumas garotas, haja vista o futuro promissor. Nem o conhecia direito. Quer dizer, sabia quem era, pois frequentava a casa dos meus pais há quase dois anos. Na época, imaginava se tratar de negócios imobiliários ou coisa do tipo, até perceber, já perto do final da minha festa de debutante, que o negócio, na verdade, era eu. 

            — Ludmila, minha filha, este é o Jaime, seu futuro marido.

            Boquiaberta, olhei para minha mãe, que fora incumbida por papai a me dar a notícia logo após a valsa. Desesperançada, busquei os olhos do meu pai em busca de conforto, mas só senti náuseas quando ele me sorriu.

            — Feliz?

            Feliz? Como é que o meu pai, justamente quem deveria me proteger, poderia me fazer tamanha pergunta? Gente, eu era apenas uma pobre e indefesa garotinha de 15 anos. Já imaginou a cena?

            Sem ter a quem recorrer, abaixei os olhos e respondi que sim. O que eu poderia ter feito? Fugido ao som de rock and roll, tão em voga naquela época? Apesar de muito nova, não era ingênua a ponto de imaginar que o Elvis ou o Marlon Brando fosse me salvar, ainda mais porque sempre tive uma queda pelo Montgomery Clift. 

            Mamãe me preparou, mas sem entrar em detalhes. Disse-me o básico do básico, como se aquilo fosse resolver todos os meus problemas. Pelo contrário, pois me trouxe outros após me deparar com a realidade.

            Casei-me no ano seguinte sem nem mesmo conhecer direito o homem que, a partir daquele momento, se tornou meu marido pelos próximos 43 anos, até ele sucumbir. Confesso que os últimos anos ao seu lado foram de profunda cumplicidade, pois desenvolvemos fortes laços de amizade, mas nunca de amor. Amor, creio que você bem sabe, é coisa mais complicada.

            Tornamo-nos amigos, mesmo que o início não tenha sido um mar-de-rosas, quando meu marido, talvez querendo mostrar ao mundo algo que não era, tentou, a todo custo, me engravidar. Conseguiu seu intento e, nove meses após, nasceu Augusto, nosso único filho. A partir de então, enquanto cuidava da criança, vi meu marido se entreter com meu primo Carlos, solteirão convicto, em viagens de última hora, como se os dois fossem salvar o planeta da então quase certa Terceira Guerra Mundial, cada vez mais temida por todas as nações logo após a invasão da Baía dos Porcos orquestrada pelos Estados Unidos em 1961.

            Não sei exatamente se foi o medo de que a população mundial fosse dizimada ou o alívio pelo nascimento do filho que empurrou Jaime para se aventurar com Carlos. Confesso que senti certo alívio pela situação, mesmo porque andava exausta, apesar da presença constante de Felícia e Maria Aparecida, nossas empregadas.

            Quando Augusto já estava em idade que não necessitava mais de tantos cuidados maternos, eis que comecei a olhar ao redor. E foi justamente naquele Natal de 1963, que meus olhos se cruzaram pela primeira vez com os do Renato, sócio do meu esposo no escritório. Ainda tentei disfarçar meu interesse pegando uma castanha na ampla mesa. Entretanto, péssima atriz que sempre fui desde a noite de núpcias, não consegui convencer aquele homem tão... Bem, não estou aqui buscando redenção. Admito, Renato foi meu maior desvio de caráter. 

            Nosso primeiro encontro aconteceu em uma biblioteca pública. Estava eu folheando um exemplar de Dom Casmurro quando Renato, sorrateiro, se aproximou por trás e pousou a mão esquerda sobre meu ombro. Quase gritei, mas me contive, ainda mais porque não queria ser descoberta, mesmo em local tão discreto. 

            Conversamos trivialidades, até que fui convencida (ou será que fui eu a fazê-lo?) a irmos para um ambiente mais apropriado. Confesso que não gostei do hotel escolhido, mas não estava em condição de protestar. Seja como for, Renato me fez atingir notas que, até então, desconhecia. 

               Apesar de amedrontada pela situação, afinal, era uma mulher casada e com filho, o desejo falou mais alto e, não sei de onde, arranquei coragem que até então desconhecia possuir. É óbvio que morria de medo de ser descoberta, e acabei sendo por alguém que eu nem desconfiava que iria aceitar aquilo.

            — Lud, discrição é tudo. Não estou aqui para censurá-la, pois cada um possui seus desejos. E vontades, quando pega, não tem quem segura.

            Incrédula, olhei para o meu marido, que me abraçou. A partir daquele dia, a nossa relação melhorou tanto, que passamos a ser confidentes. Ele me apoiava e, quando necessário, acobertava as minhas escapadas para os encontros furtivos e cada vez mais frequentes. E foi assim até que o meu Renato, que também era da Maria Cristina, faleceu em um acidente de carro. 

            Jaime e eu, como casal, comparecemos ao enterro e cumprimentamos a viúva, que chorava copiosamente. Não sei se ela sabia do nosso caso, talvez até desconfiasse, mas jamais me tratou mal ou com indiferença. Pelo contrário, Maria Cristina sempre me considerou como uma fiel amiga, inclusive insistindo para que eu e meu marido fôssemos padrinhos do seu caçula, Leonardo. 

            A amizade era tanta, que a esposa do meu amante, certa vez, me procurou para desabafar. Seus olhos azuis, marejados que estavam, eram de dar dor. Ela fitou-me e, em seguida, desabou em choro. Procurei confortá-la.

             — Lud, tenho certeza de que o Renato tem outra.

          O medo tomou conta do meu corpo, mas tentei controlar aquele turbilhão de emoções. 

                 — O Renato? Tem certeza?

                 — Olhe o que encontrei caído no banco do carro.

              Maria Cristina esticou o braço e abriu a mão. Lá estava um brinco. Não um brinco qualquer, mas com a letra "L". Gelei! E quando tudo parecia perdido, eis que surgiu o Jaime de armadura montado em um belo cavalo branco. Bem, não foi exatamente assim, apesar que, devido às circunstâncias, parecia estar. 

                 Delicadamente, ele tomou o brinco das mãos da Maria Cristina e sorriu.

                  — Olha só, meu amor, o seu brinco! Que cabeça a minha!

                 Estarrecida, voltei os olhos para Jaime, que continuou com seu teatro. Aliás, devo confessar que ele sempre foi o Paulo Autran da família. 

                — Maria Cristina, aposto que deixei cair no carro do Renato. Não foi lá que você o encontrou?

                  — Sim. Como você sabe disso?

                 — A Lud me pediu para pegar esse brinco no ourives, que ela havia deixado para arrumar esse ganchinho. Como é mesmo o nome, amor?

                 — Fecho.

                 — Sim! Fecho! Você me disse esse nome tantas vezes, que não sei como é que fui me esquecer. Aqui está o seu brinco de volta, meu amor. Você me perdoa? Por favor, diz que me perdoa.

                  Maria Cristina e eu nos olhamos e, então, sorrimos do meu apaixonado marido que, apesar de atrapalhado, era um amor.

                — Claro que perdoo, seu bobo! 

                Para não restar dúvida, Jaime e eu encenamos um beijo quase cinematográfico diante da agora aliviada Maria Cristina. A minha amiga me abraçou e, logo após aceitar tomar chá com torradas, retornou para os braços do seu marido fiel, ao menos aos seus olhos azuis ingênuos. 

                Após a morte do Renato, pensei que nunca mais me envolveria com qualquer homem. Já estava beirando os 60 anos e me sentia deveras isolada desse jogo de sedução. Todavia, há coisas que, mesmo não sejam provenientes do coração, o corpo necessita. E foi assim que conheci o Álvaro, viúvo que havia se mudado para o prédio. Chegamos a trocar algumas figurinhas, mas logo percebi que ele só possuía repetidas, enquanto as que eu carregava na bolsa eram todas premiadas. 

                Do Álvaro para o Marcelo, pouco mais jovem, cuja disposição me encantou por um mês, até que desisti antes que ele enjoasse de mim. Mas não pense você que saí do jogo, e fui à luta. Tive outros casos, inclusive alguns com maridos de amigas, até que fui surpreendida por um telefonema do Carlos. Ele estava em pânico e não sabia como proceder.

Jaime e meu primo haviam viajado em um final de semana, como há décadas faziam. Meu esposo, enquanto dormia, teve um enfarte e não mais despertou. Nem sei como arrumei forças, mas precisava honrar a história do meu querido marido e, então, peguei um voo e, poucas horas depois, lá estava eu no quarto da pousada em Salvador. 

            Após os trâmites legais, consegui que o corpo do Jaime fosse trasladado para Brasília. E lá estava eu, a viúva, sem chão. Carlos e eu, desolados, dividíamos lágrimas sobre o caixão do homem de nossas vidas.

  • Nota de esclarecimentos: O conto "A vida não é tão simples assim" foi publicada por Notibras no dia 7/10/2025.
  • https://www.notibras.com/site/a-vida-nao-e-tao-simples-assim/
  • O conto "A vida não é tão simples assim" foi publicado pelo Jornal de Cultura ROL no dia 10/10/2025.
  • https://jornalrol.com.br/?p=76108