
Ludmila, mas pode me
chamar de Lud. Nem precisa de senhora, pois sei que sou velha, não preciso de
ninguém para me lembrar disso a todo instante. Então, Lud ou, caso não se sinta
à vontade, que seja Ludmila, como as nossas idades fossem quase um abismo intransponível
para alguém tão cheio de regras que nem... Bem, que nem você!
Tudo aconteceu nos
idos de 1963, quase início de 1964. Festa de Natal na casa de Dalva, tia do
Jaime, com quem me casei tão novinha. Gente, como é que fui permitir que mamãe
fizesse tamanho descalabro comigo? Tempos outros, quando as mocinhas, mal
largavam as bonecas, já eram preparadas para o casório. E comigo não foi
diferente.
Jaime Gonçalves do
Amaral, um jovem advogado, provavelmente alvo de algumas garotas, haja vista o
futuro promissor. Nem o conhecia direito. Quer dizer, sabia quem era, pois
frequentava a casa dos meus pais há quase dois anos. Na época, imaginava se
tratar de negócios imobiliários ou coisa do tipo, até perceber, já perto do final
da minha festa de debutante, que o negócio, na verdade, era eu.
— Ludmila, minha
filha, este é o Jaime, seu futuro marido.
Boquiaberta, olhei
para minha mãe, que fora incumbida por papai a me dar a notícia logo após a
valsa. Desesperançada, busquei os olhos do meu pai em busca de conforto, mas só
senti náuseas quando ele me sorriu.
— Feliz?
Feliz? Como é que o
meu pai, justamente quem deveria me proteger, poderia me fazer tamanha
pergunta? Gente, eu era apenas uma pobre e indefesa garotinha de 15 anos. Já
imaginou a cena?
Sem ter a quem
recorrer, abaixei os olhos e respondi que sim. O que eu poderia ter feito?
Fugido ao som de rock and roll, tão em voga naquela época? Apesar de muito
nova, não era ingênua a ponto de imaginar que o Elvis ou o Marlon Brando fosse
me salvar, ainda mais porque sempre tive uma queda pelo Montgomery
Clift.
Mamãe me preparou, mas
sem entrar em detalhes. Disse-me o básico do básico, como se aquilo fosse
resolver todos os meus problemas. Pelo contrário, pois me trouxe outros após me
deparar com a realidade.
Casei-me no ano
seguinte sem nem mesmo conhecer direito o homem que, a partir daquele momento,
se tornou meu marido pelos próximos 43 anos, até ele sucumbir. Confesso que os
últimos anos ao seu lado foram de profunda cumplicidade, pois desenvolvemos
fortes laços de amizade, mas nunca de amor. Amor, creio que você bem sabe, é
coisa mais complicada.
Tornamo-nos amigos, mesmo que o início não
tenha sido um mar-de-rosas, quando meu marido, talvez querendo mostrar ao mundo
algo que não era, tentou, a todo custo, me engravidar. Conseguiu seu intento e,
nove meses após, nasceu Augusto, nosso único filho. A partir de então, enquanto
cuidava da criança, vi meu marido se entreter com meu primo Carlos, solteirão
convicto, em viagens de última hora, como se os dois fossem salvar o planeta da
então quase certa Terceira Guerra Mundial, cada vez mais temida por todas as nações
logo após a invasão da Baía dos Porcos orquestrada pelos Estados Unidos em
1961.
Não sei exatamente se foi o medo de que a
população mundial fosse dizimada ou o alívio pelo nascimento do filho que
empurrou Jaime para se aventurar com Carlos. Confesso que senti certo alívio
pela situação, mesmo porque andava exausta, apesar da presença constante de
Felícia e Maria Aparecida, nossas empregadas.
Quando Augusto já estava
em idade que não necessitava mais de tantos cuidados maternos, eis que comecei
a olhar ao redor. E foi justamente naquele Natal de 1963, que meus olhos se
cruzaram pela primeira vez com os do Renato, sócio do meu esposo no escritório.
Ainda tentei disfarçar meu interesse pegando uma castanha na ampla mesa.
Entretanto, péssima atriz que sempre fui desde a noite de núpcias, não consegui
convencer aquele homem tão... Bem, não estou aqui buscando redenção. Admito,
Renato foi meu maior desvio de caráter.
Nosso primeiro encontro aconteceu em uma
biblioteca pública. Estava eu folheando um exemplar de Dom
Casmurro quando Renato, sorrateiro, se aproximou por trás e pousou a
mão esquerda sobre meu ombro. Quase gritei, mas me contive, ainda mais porque
não queria ser descoberta, mesmo em local tão discreto.
Conversamos trivialidades, até que fui
convencida (ou será que fui eu a fazê-lo?) a irmos para um ambiente mais
apropriado. Confesso que não gostei do hotel escolhido, mas não estava em
condição de protestar. Seja como for, Renato me fez atingir notas que, até
então, desconhecia.
Apesar de amedrontada
pela situação, afinal, era uma mulher casada e com filho, o desejo falou mais
alto e, não sei de onde, arranquei coragem que até então desconhecia possuir. É
óbvio que morria de medo de ser descoberta, e acabei sendo por alguém que eu
nem desconfiava que iria aceitar aquilo.
— Lud, discrição é tudo. Não estou aqui
para censurá-la, pois cada um possui seus desejos. E vontades, quando pega, não
tem quem segura.
Incrédula, olhei para o meu marido, que
me abraçou. A partir daquele dia, a nossa relação melhorou tanto, que passamos
a ser confidentes. Ele me apoiava e, quando necessário, acobertava as minhas
escapadas para os encontros furtivos e cada vez mais frequentes. E foi assim
até que o meu Renato, que também era da Maria Cristina, faleceu em um acidente
de carro.
Jaime e eu, como casal,
comparecemos ao enterro e cumprimentamos a viúva, que chorava copiosamente. Não
sei se ela sabia do nosso caso, talvez até desconfiasse, mas jamais me tratou
mal ou com indiferença. Pelo contrário, Maria Cristina sempre me considerou
como uma fiel amiga, inclusive insistindo para que eu e meu marido fôssemos
padrinhos do seu caçula, Leonardo.
A amizade era tanta, que a esposa do meu
amante, certa vez, me procurou para desabafar. Seus olhos azuis, marejados que
estavam, eram de dar dor. Ela fitou-me e, em seguida, desabou em choro.
Procurei confortá-la.
— Lud, tenho certeza de que o
Renato tem outra.
O medo tomou conta do meu corpo, mas tentei
controlar aquele turbilhão de emoções.
— O
Renato? Tem certeza?
— Olhe o
que encontrei caído no banco do carro.
Maria Cristina esticou o braço e abriu a mão.
Lá estava um brinco. Não um brinco qualquer, mas com a letra "L".
Gelei! E quando tudo parecia perdido, eis que surgiu o Jaime de armadura
montado em um belo cavalo branco. Bem, não foi exatamente assim, apesar que,
devido às circunstâncias, parecia estar.
Delicadamente, ele tomou o brinco das
mãos da Maria Cristina e sorriu.
— Olha só, meu amor, o seu
brinco! Que cabeça a minha!
Estarrecida, voltei os olhos para
Jaime, que continuou com seu teatro. Aliás, devo confessar que ele sempre foi o
Paulo Autran da família.
— Maria Cristina, aposto que deixei
cair no carro do Renato. Não foi lá que você o encontrou?
— Sim.
Como você sabe disso?
— A Lud me
pediu para pegar esse brinco no ourives, que ela havia deixado para arrumar
esse ganchinho. Como é mesmo o nome, amor?
— Fecho.
— Sim!
Fecho! Você me disse esse nome tantas vezes, que não sei como é que fui me
esquecer. Aqui está o seu brinco de volta, meu amor. Você me perdoa? Por favor,
diz que me perdoa.
Maria Cristina e eu nos olhamos e,
então, sorrimos do meu apaixonado marido que, apesar de atrapalhado, era um
amor.
— Claro que perdoo, seu bobo!
Para não restar
dúvida, Jaime e eu encenamos um beijo quase cinematográfico diante da agora
aliviada Maria Cristina. A minha amiga me abraçou e, logo após aceitar tomar
chá com torradas, retornou para os braços do seu marido fiel, ao menos aos seus
olhos azuis ingênuos.
Após a morte do
Renato, pensei que nunca mais me envolveria com qualquer homem. Já estava
beirando os 60 anos e me sentia deveras isolada desse jogo de sedução. Todavia,
há coisas que, mesmo não sejam provenientes do coração, o corpo necessita. E
foi assim que conheci o Álvaro, viúvo que havia se mudado para o prédio.
Chegamos a trocar algumas figurinhas, mas logo percebi que ele só possuía
repetidas, enquanto as que eu carregava na bolsa eram todas premiadas.
Do Álvaro para o Marcelo, pouco mais jovem,
cuja disposição me encantou por um mês, até que desisti antes que ele enjoasse
de mim. Mas não pense você que saí do jogo, e fui à luta. Tive outros casos, inclusive
alguns com maridos de amigas, até que fui surpreendida por um telefonema do
Carlos. Ele estava em pânico e não sabia como proceder.
Jaime
e meu primo haviam viajado em um final de semana, como há décadas faziam. Meu
esposo, enquanto dormia, teve um enfarte e não mais despertou. Nem sei como
arrumei forças, mas precisava honrar a história do meu querido marido e, então,
peguei um voo e, poucas horas depois, lá estava eu no quarto da pousada em
Salvador.
Após os trâmites legais, consegui que o corpo do Jaime
fosse trasladado para Brasília. E lá estava eu, a viúva, sem chão. Carlos e eu,
desolados, dividíamos lágrimas sobre o caixão do homem de nossas vidas.
- Nota de esclarecimentos: O conto "A vida não é tão simples assim" foi publicada por Notibras no dia 7/10/2025.
- https://www.notibras.com/site/a-vida-nao-e-tao-simples-assim/
- O conto "A vida não é tão simples assim" foi publicado pelo Jornal de Cultura ROL no dia 10/10/2025.
- https://jornalrol.com.br/?p=76108