domingo, 31 de agosto de 2025

Baú de memórias

    

         Estou enlutada. Sim, perdi um grande amigo e, provavelmente, o amor da minha vida na juventude, que resolveu deixar este plano por questões do coração, que há tempos andava falhando, como me disse da última vez que nos encontramos. A ocasião não era costumeira para gente da nossa estirpe: velha e sem filhos. Uma festa de crianças.

            Carlos Roberto, o Beto da nossa patota dos anos 1970, era um tipão. Mesmo assim, o que mais me chamou a atenção foram seus olhos egípcios, como se delineados fossem por mãos maquiadoras. Tentei não demonstrar interesse e, parece, funcionou, já que, no mês seguinte, estávamos no cinema assistindo ao filme Copacabana Mon Amour, quando fui quase surpreendida por um beijo repentino do Beto. Confesso que, apesar de desejá-lo, me senti ligeiramente desnorteada.

            Não pense você que aquele havia sido meu primeiro beijo. Já tinha visitado outras esquinas e, por isso mesmo, poderia me considerar uma mulher avançada à época. Não uma doidivana, porém, consciente dos próprios desejos aflorados pela juventude repleta de hormônios. Sim, uma mulher.

            O namoro não durou mais do que um ano, o que não impediu de criarmos laços para toda a vida. Era um amor fraternal, mas com aquelas costumeiras recaídas que puxavam nossos corpos sedentos para debaixo dos lençóis. Se havia culpa nesses momentos? De jeito nenhum. Éramos adultos e, como tais, sabendo ou não o que estávamos fazendo, voltávamos para a realidade como se acabássemos de degustar um chá de erva-cidreira com biscoitos amanteigados no final da tarde.  

            Além de bom amante, meu amigo era um sujeito divertidíssimo, desses que são notados até em velório. Não à toa, todos não conseguiram tirar os olhos sobre seu corpo inerte dentro daquele caixão. Se fosse outro o falecido, certamente estaríamos espalhados pelos cantos da capela fofocando ou falando sobre a última vitória do Vasco ou do Botafogo ou de qualquer outro time popular. 

            Por falar em velório, parece que é o real momento para nos despedirmos dos que partem sem avisos. Há o clímax do desespero, quando chega a hora do enterro, mas que, já no instante seguinte, nos dá uma sensação de alívio. É como se, a partir daquele instante, tudo tivesse realmente acabado, ficando apenas lembranças e fotografias, que vão se borrando com o passar dos dias até que, de repente, desaparecem. 

            Não sei se isso acontece apenas comigo, já que tenho enterrado, ao longo desses meus 73 anos, tanta gente querida. Isso me fez pensar que, provavelmente, quando chegar a minha hora, seja melhor a cremação para evitar tanto sofrimento alheio. Imagine, então, se ninguém aparecer? Como é que fico? Já pensou? Justamente eu, que carrego o inusitado nome de Lucrécia, ser enterrada sem plateia? Que vergonha!

  • Nota de esclarecimento: O conto "Baú de memórias" foi publicado por Notibras no dia 31/8/2025.
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sábado, 30 de agosto de 2025

Ela e o poeta

     

     Trocavam mensagens durante o dia, cada um no seu trabalho. Ele, mais carente, buscava a sombra da esposa, onde se sentia protegido das agruras que o afligiam. Ela, por sua vez, demonstrava altivez de quem encarava a vida, apesar dos medos e, não raro, inseguranças. 

       Ele era escritor, mas quem era dona da palavra era a sua amada, que sempre tinha a resposta pronta na ponta da língua ou, caso não tivesse, era artista o suficiente para dizer qualquer coisa que confortava o coração do sujeito. Entretanto, naquela manhã, ele recebeu uma mensagem dela, que o deixou perplexo. Não apenas palavras, como também uma fotografia, cuja incongruência com o dito era flagrante: "Sua esposa velha."

       O homem pensou, sorriu, voltou a pensar e, novamente, sorriu. Velha? Onde? Quando? Velha? Como assim? Não disse nada, preferiu escrever e mostrar que ela, pelo menos dessa vez, estava enganada. 

       Ele pensou em fazer um poema, mas talento lhe faltava para tanto. Era da prosa. Todavia, arriscou e, usando o instinto, acabou por ser ainda mais piegas do que de costume. 

       Assim que abriu a mensagem, ela sorriu e pensou, quer dizer, teve certeza de que ele era o mais desastrado poeta que já havia lido. Que estabanado! Desajeitadamente lindo.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Ela e o poeta" foi publicado por Notibras no dia 30/8/2025.
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sexta-feira, 29 de agosto de 2025

Unha e carne

    

 Joana e Ruth se conheciam desde a adolescência e, talvez por isso, tenham se tornado tão íntima a ponto das duas não terem quase segredos entre elas. Tirando uma ou outra furada de olho recíproca, obviamente que nenhuma sabendo da traição cometida, poderia se afirmar que eram praticamente de confiança entre si. Quanto aos demais habitantes do planeta, não lhes era concedida tamanha regalia. 

          Não eram vizinhas de porta, mas moravam no mesmo prédio em uma das inúmeras quadras da Asa Norte, na capital do país. Por conta disso, as hoje casadas, com filhos e até alguns netos, se viam quase todos os dias e, quando não o faziam, se falavam para futricar um pouco. Afinal, como gostavam de dizer, sem a fofoca, o mundo não gira. 

          Não fazia muito tempo, Amanda, mulher de seus lá 30 anos, mudou-se para o edifício. Um tipo de chamar a atenção, ainda mais porque gostava de suar a camisa diariamente na academia da esquina. Impossível deixar de nota-la trajando aquelas roupas de cores felizes. Nada de cinza quando se tem vermelho-cereja, laranja e, não raro, aquele roxo intenso. Sem falar daqueles cílios postiços, que davam brilho aos enormes olhos castanhos. 

          Apesar da flagrante diferença de idades, Amanda se sentiu acolhida por Joana e Ruth. E não pense você que era algo do tipo maternal, mas amizade entre pessoas adultas, como se as barreiras etárias nem existissem. Tanto é que, não raro, as três se convidavam para um café da manhã ou um chá no meio da tarde, enquanto escutavam Maria Bethânia, Gal Costa, Alcione e Elis.

          Naturalmente, Joana e Ruth passaram a dividir os mexericos com a nova colega, que também se sentiu à vontade para compartilhar seus sentimentos. A jovem, emocionada com aquela sensação de acolhimento, olhou paras as duas amigas, momento em que uma lágrima furtiva escorreu pela face.

          — Ah, vocês são tão legais!

          As coroas, surpresas que ficaram, se entreolharam e, quase em uníssimo, disseram:

          — É que a gente é boa em fingir.

          Amanda arregalou os olhos, como se demonstrasse arrependimento pela confissão. Joana e Ruth já esperavam por uma frase de reprovação, quando, então, constataram que a mulher era uma delas.

          — Eu também!

          E as três caíram na gargalhada.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Unha e carne" foi publicado por Notibras no dia 29/8/2025.
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quinta-feira, 28 de agosto de 2025

Salete, a rainha da Inglaterra

    

Algum desavisado poderia afirmar que Salete poderia ser tudo na vida, menos humilde. Não por acaso, era frequentemente chamada de arrogante e egocêntrica, sem contar as vezes que foi dito que a mulher era narcisista em nível irreversível. E sempre, mas sempre mesmo, parecia estar preparada para receber alguém. Que fosse o Papa, não restava dúvida, lá estava a mulher toda empertigada como se fosse a própria rainha da Inglaterra. 

               — Cadê meu cachecol lilás, Cida?

             — Dona Salete, não é possível que a senhora vai colocar cachecol neste calor. Estamos no verão.

              — E desde quando elegância tem estação, mulher? Vá lá no meu quarto e procure por ele, que é capaz de algum ministro vir me fazer uma visita de surpresa.

               — Oxente! Que ministro o quê, dona Salete! Tá variando, é?

               — Não discuta! Vá, vá, vá logo!

               Hora do almoço, mesa pronta, nada de ministro, muito menos do Papa, Salete, pés inquietos, mãos agitadas, observava de relance através da janela da sala, quando Cida a alertou que a comida iria esfriar. Mal se sentou à mesa, a mulher observou as travessas, torceu os lábios para a empregada sentada na cadeira ao lado.

               — Frango de novo, Cida? Cadê meu filé?

               — Que filé, dona Salete? A senhora se esqueceu de novo, é?

               — Do quê?

               — Do que o cardiologista falou.

               — Hum! E desde quando médico entende de alguma coisa, Cida?

               — E é a senhora que entende agora, é?

               — Hum!

               — Ih, vai ficar emburrada de novo?

               — Tá bom, tá bom, tá bom, Cida!

               — E vê se come, pois a senhora vai ficar magrinha demais.

               — Hum!

               — Olha que, se a senhora não comer, como eu.

               — Hum!

               — Tá bom, tá bom, tá bom, Cida!

               — Isso! Tá uma delícia, né?

               — Hum!

               Enquanto as duas mulheres almoçavam, Cida quis saber se a patroa havia voltado a falar com a irmã.

               — Ih, Cida, a Lourdes não entende nada de nada.

               — Fizeram as pazes ou não?

               — É, você bem sabe que, entre paz e razão, prefiro a paz. Razão eu sempre tenho.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Salete, a rainha da Inglaterra" foi publicado por Notibras no dia 28/8/2025.
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quarta-feira, 27 de agosto de 2025

Enredo inusitado carregado de caipirinha

    

   A música ensurdecedora e as luzes, combinadas com algumas doses de caipirinha, ofuscavam qualquer pensamento lógico. No entanto, Larissa teve a nítida percepção de que ouvira, quando perguntou a Mauro, se ele ainda a achava bonita.

               — Tão real quanto sua beleza maquiada.

               A mulher tentou raciocinar, mas não conseguiu encontrar um motivo para aquilo: o marido não a amava mais, pior. certamente a teria trocado por uma mais jovem, talvez até com a metade da sua idade. 

               — Você não me ama mais?

               — Por que você está me perguntando isso?

               — Você me ama?

               O sujeito tentou cambiar palavras com ação, mas foi rispidamente impedido de beijar os lábios da esposa.

               — O que foi, Larissa?

               A mulher desabou em choro e soluços, borrando a maquiagem. 

               — Sai!

               — O que eu fiz, meu amor?

               — Amor? Você me acha horrorosa!

               — Horrorosa? De onde você tirou isso, Larissa?

               — Sai! Me larga!

               Mauro procurou entender aquela situação e, então, apontou um culpado: o álcool. Ele sabia que Larissa nunca se dera bem com bebida alcoólica. Resolveu pedir a conta, quando o celular tocou. Instintivamente, ele pegou o aparelho, mas não atendeu.

               — Atende! Vai, atende a sua amante!

               — Amante? 

               — Aposto que é a Júlia!

               — Júlia? Que Júlia?

               — Deixa de ser cínico, Mauro!

               — Amor, não conheço nenhuma Júlia.

               — Ah, não? Então, você vai querer me dizer que não conhece nenhuma Júlia?

               — Não!

               — E a filha da Marília?

               — Peraí! Você tá falando de uma garota que deve ter uns 18 anos.

               — Vinte, seu cretino! Vinte!

               — Vamos embora, meu amor. Por favor?

               — Então, me responda!

               — Responder o quê?

               — Por que você me trocou pela Júlia?

               — Larissa, meu amor, eu te amo! Não tenho outra mulher, muito menos a Júlia.

               — Você jura?

               — Claro que juro!

               — Mesmo?

               — Mesmo!

               — Por que me chamou de feia, então?

               — Feia? Nunca falei isso!

               — Não?

               — É claro que não, meu amor.

               — Então, diz que sou linda.

               — Você é linda.

               — Diz que sou a mulher mais linda do mundo.

               — Larissa, meu amor, você é a mulher mais linda do mundo.

               — Jura?

               — Juro.

               — Então, vem aqui me dar um beijo.

               Ao se aproximar dos lábios da amada, Mauro foi surpreendido por um vômito na cara. Pediu a conta e foram embora, apaixonados que eram, de mãos dadas.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Enredo inusitado carregado de caipirinha" foi publicado por Notibras no dia 27/8/2025.
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terça-feira, 26 de agosto de 2025

O advogado, o deputado e o café

    

             Empertigado que nem pavão, Lauro, quer dizer, Dr. Laurentino Alves de Campos, proeminente advogado tributarista, era disputado por seleta clientela em Brasília. A paga, apesar de vultosa, não era questionado por quem solicitava seus serviços, mesmo porque, com o afamado profissional à frente, a causa não estaria de todo perdida, o que lhe pouparia alguns milhões de multas. 

            O luxuoso escritório, localizado na área central da capital, só recebia com horário marcado. É verdade que, quando a solicitação vinha do alto escalão, abria-se providencial brecha. E foi justamente por conta disso que o telefone tocou naquela manhã carregada de nuvens, relâmpagos e trovoadas, mas nem mesmo um mísero pingo de chuva. 

            — Sim, pode falar para o deputado que já agendei para o primeiro horário logo após o almoço.

            — Obrigado mais uma vez, Sônia.

            A secretária, ciente de que aquele atendimento demandaria mais tempo, refez a agenda do Dr. Laurentino. Nada além do que uma ou duas horas de postergação de outra consulta, já que o escritório só pegava causas milionárias. 

            No horário marcado, lá estava o deputado acompanhado de dois assessores. Sônia avisou o advogado que a autoridade havia chegado.

            — Por favor, Sônia, traga-o aqui.

            Enquanto acompanhava o deputado até a sala do Dr. Laurentino, ela não deixou de notar que os dois outros homens apresentavam volumes do lado direito da cintura. Ela não teve dúvida de que ambos estavam armados e, obviamente, eram destros. 

            Assim que entrou na sala, o deputado foi recebido com um sorridente advogado, como se velhos amigos fossem.

            — Deputado, como vai o senhor? Há quanto tempo!

            — É verdade, doutor. 

            — E o que traz o senhor aqui no meu humilde escritório?

            O deputado, ao ouvir aquelas palavras, não pôde deixar de notar certo talento para política no advogado. Humilde? Não. Mas o que são dois ou três quadros de artistas renomados pendurados nas paredes diante da firmeza daquela voz? Vale é o que foi dito e não visto, pensou. 

            Servido de café, o deputado falou sobre o seu imbróglio com a Receita Federal. E, após mais de uma hora de conversas, o advogado explicou a situação e disse qual seria o melhor caminho a ser tomado. O político pareceu satisfeito e agradeceu.

            — Então, doutor, vai pegar a causa?

            — É claro, deputado. Temos grandes chances. 

            Apertaram as mãos e, antes de sair, o deputado perguntou se poderia tomar mais uma xícara de café. Logo em seguida, lá estava a secretária com duas garrafas de café. 

            — Doutor, preciso saber qual é a marca desse café, que é delicioso.

            — Vou pedir para Sônia dar dois pacotes para o senhor, deputado.

            — Muito obrigado. Mas por que o senhor sempre toma café dessa outra garrafa? Posso provar desse também?

            — Poder até pode, deputado, mas não recomendo.

            — Pois eu faço questão!

           — Se o senhor insiste. Por favor, Sônia, sirva ao nosso nobre deputado.

           Mal provou o café, o deputado o cuspiu.

            — Que porcaria de café! Como é que o senhor consegue tomar isso?

           — É que preciso manter as minhas raízes, caro deputado. Caso contrário, sucumbiria na primeira ventania.

  • Nota de esclarecimento: O conto "O advogado, o deputado e o café" foi publicado por Notibras no dia 26/8/2025.
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segunda-feira, 25 de agosto de 2025

Relacionamento tóxico

    

Ana Paula lavava, engomava, varria, cozinhava, trabalhava em dois hospitais como técnica de enfermagem e, somado a isso tudo, perfumava-se para o marido. Uma brasileira como tantas outras, que mal dormem com a certeza de que o dia seguinte será mais uma maratona. E, se já não bastasse toda essa batalha contínua, era casada com Juliano, verdadeiro traste.

        — Se eu quisesse comer feijão de beira de estrada, nem tinha casado, Ana Paula.

        — Quer que faça outro, meu amor?

        — Cadê aquela minha camisa verde?

        — Tá no varal.

        — Pois trate de pegá-la, pois quero usá-la.

        — Mas, Juliano, meu amor, ela ainda tá úmida.

        — Que dê o seu jeito, que tenho negócios a resolver na rua logo mais.

        — Vai sair à noite de novo?

        — Só me faltava essa agora, mulher! Por acaso quer se meter nos meus negócios?

          Pois é, era assim a vida da Ana Paula, que, infelizmente, aguentou por muito tempo estar nessa canoa furada. Todavia, para tudo na vida tem limite. E esse dia chegou quando Juliano, com a costumeira grosseria, disse que iria viajar a trabalho. Como assim? Viajar a trabalho? Peraí! O sujeito era padeiro na panificadora da esquina. 

          Não pense você que a mulher fez cara feia ou reclamou. Nananinanão! Aguentou calada. Enquanto esfregava as mãos na xícara repleta de café quente, Ana Paula procurou manter a cabeça fria. E foi justamente nesse momento em que uma luzinha pareceu acender na sua mente. Ela sorriu para Juliano, que não soube por qual motivo aquilo não lhe pareceu boa coisa. Ficou ressabiado, mas o instinto de trair a esposa lhe falou mais alto. 

          O sujeito, ao colocar as malas no automóvel, procurou os lábios de Ana Paula, que recebeu o beijo do marido sem demonstrar qualquer arrependimento. Talvez isso tenha feito com que Juliano se sentisse confiante e, peito estufado, deu partida no velho carro. Ana Paula, em pé e sorridente, acenou para o homem, que acelerou até sumir na esquina. 

          Decidida, a mulher escolheu as melhores roupas e objetos que lhe eram caros e os colocou em duas mochilas. Já havia combinado com um colega, dono de loja de segunda mão, que lhe pagou boa quantia pelos móveis e utensílios, que foram pegos na manhã seguinte, pouco antes de Ana Paula abandonar a capital do país e, sem qualquer culpa, ir para o litoral, onde pretendia fixar moradia.

          Juliano retornou no domingo à noite. Mal entrou na residência, tomou um susto. Cadê o sofá? Cadê a televisão? Cadê a geladeira? Cadê o fogão? Onde foram parar os armários, talheres, pratos e copos? Até a cama de casal havia desaparecido. 

          Chamou por Ana Paula. Nada da esposa responder. Gritou, mas nem mesmo um mísero sinal da mulher. Foi aí que, ao observar perplexo o próprio reflexo no espelho do banheiro que notou um bilhete. Era a letra da esposa, não restava dúvida. Arrancou o pedaço de papel e o aproximou do rosto e, ao lê-lo, tomou ciência do que havia acontecido: "Sempre uma crítica, nunca um Pix."

  • Nota de esclarecimento: O conto "Relacionamento tóxico" foi publicado por Notibras no dia 25/8/2025.
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domingo, 24 de agosto de 2025

Entroncamentos do coração

    

Depois de tomar um fora da namorada, o sujeito ficou, por alguns míseros segundos, atônito. Não sabia se aquilo era verdade ou, então, mais uma das rotineiras brincadeiras de Alice, com quem dividia os lençóis há quase um ano, quando foram apresentados por amigos em comum. E aqui vale a pena relembrar tal momento, que, aos olhos do agora abandonado, tinha tudo para durar. 

          Parece que havia intenção de Fernando e Laura fazerem com que a solitária Alice se interessasse por Aluísio, cuja fama de acanhado vinha dos tempos de adolescente. Alguns diziam que faltava ao gajo adrenalina nas veias para tomar atitude, enquanto outros afirmavam que nem todo mundo nascia para guerra ou para fuga. Seja uma coisa ou outra, não importa, mas o momento do empurrãozinho aconteceu em um churrasco ao som de Beth, Martinho, Zeca e tantos outros bambas. 

          — Alô! 

          — Aluísio?

           — Sim. Quem é?

          — Acorda, Aluísio! É o Fernando! Cadê você?

          — Oi, Nando. É que não apareceu o seu nome no celular.

        — É que tô ligando do fixo. Meu celular caiu na privada. Acredita? A Laura tá tentando dar um jeito nele. 

          — Eita!

          — Eita digo eu! Cadê você que ainda não tá aqui? 

          — Ih, Nando! Desculpe, mas hoje não tô legal.

          — Que conversa mole é essa? Não aceito desculpas, e trate logo de vir pra cá, que hoje você desencalha.

          Aluísio, sem ânimo, precisou lutar contra a própria inanição para sair da cama. Fernando já havia lhe falado sobre Alice, que lhe pareceu ser interessante, ainda mais porque soube que gostava de MPB. Ele também curtia um samba de primeira e, talvez, seus destinos estivessem entrelaçados pela boa música.

          Assim que Alice chegou ao apartamento de Laura e Fernando, recebeu um esfuziante abraço da anfitriã. 

          — Tá, me conta! Ele já chegou?

          — Ainda não, mas logo, logo chega. Parece que trabalhou até tarde da noite. 

          Era mentira ou, melhor, modo delicado de deixar a amiga motivada. Então, Aluísio era um tipo que se dedicava ao trabalho. Alice ficou animada, pois isso era sinal de dedicação e responsabilidade. 

          Mal o interfone soou, lá foi o Fernando atender. Torcia para que fosse Aluísio. Na verdade, só poderia ser ele, pois não faltava mais nenhum convidado. Mesmo assim, temeu que fosse o porteiro falando que a música estivesse alta. Nem estava, e era sábado e já passara das duas da tarde. 

          — Caramba, Aluísio! Pensei que não viesse mais.

          — Ela tá aí?

          — Tá, mas vamos com calma pra não assustar o coelho.

          Assustar o coelho? Que expressão mais inapropriada para um possível encontro, Aluísio pensou, mas preferiu relevar a pisada de bola do amigo. 

          — Cerveja ou caipirinha?

          — Água.

          — Água?

          — É que não gosto de maquiar meus sentimentos com álcool.

       — É cada uma, Aluísio! Mas vamos lá na cozinha pegar a sua água. Só não vá enferrujar, hein!

          O relógio da parede acusava cinco para as duas quando, finalmente, o provável par foi deixado à vontade em uma mesa na sacada. Nervoso, mas tentando demonstrar naturalidade, Aluísio parecia arrependido de não ter aceitado a cerveja. Melhor seria algo mais forte e, assim que viu a oportunidade, aceitou sem pestanejar a caipirinha ofertada por Alice.

          — Quer um pouco?

          — Sim.

          — Sabe, não sou de beber, mas há momentos que ajuda, né?

          — É verdade.

          O que se iniciou de forma despretenciosa logo se transformou em ardentes beijos no apartamento de Aluísio. Aqueles dois pareciam, de fato, nascidos um para o outro ou, também era possível, há muito teriam deixado de lado coisas do coração. A verdade é que Alice e Aluísio se amaram pelos meses seguintes, como se nada mais ao redor lhes importasse. 

           Diante do espelho do banheiro, Aluísio não acreditava que o mais lindo caso de amor da sua vida havia chegado ao fim. Não era possível. Será que os instrumentos entraram em descompasso ou, era até provável, teriam desafinado? Enquanto chorava as mágoas com seu reflexo, eis que o telefone toca. Um número desconhecido. Pensou em nem atender, mas, curioso que era, não resistiu.

           — Alô!

           — Oi, meu amor! Por que demorou tanto pra atender?

           — Alice?

           — E quem mais poderia ser? 

           — É que você...

           — Ah, esquece!

           — Tá bom.

           — Quer me convidar pra sair?

           — Sim. Que tal tomarmos sorvete? Você adora.

           — Hoje não tô a fim de sorvete. Tô com vontade de beber algo.

           — Cerveja?

           — Caipirinha.

         Aluísio lavou o rosto para espantar o desalento que, antes da ligação, havia se instalado por ali. Esboçou um sorriso e disse em voz quase alta demais:

           — É, meu caro, o que é seu encontra o jeito de chegar a você.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Entroncamentos do coração" foi publicado por Notibras no dia 24/8/2025.
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sábado, 23 de agosto de 2025

O diário de Geraldo

    

          Já vi e vivenciei muitas coisas nesta vida, algumas impublicáveis, além de outras tantas que não poderiam, por exemplo, serem ditas nos almoços de domingos em família, ainda mais se as almas mais pudicas estiverem à mesa. Entretanto, dariam boas histórias, mesmo que se dê aquela demão de verniz para torná-las mais palatáveis aos olhos de quem as escuta.

            Não cheguei a ser caixeiro-viajante, mas rodei muito por boa parte deste país. E foi justamente por uma dessas andanças que cheguei a um vilarejo mais colado ao Distrito Federal do que carrapato em orelha de cachorro. Isso em 1959, quando aqui ainda era Goiás, mas faltava um tiquinho assim para se tornar a capital do Brasil. 

            Para não causar imbróglios desnecessários, devo dizer que era solteiro do tipo que nem imaginava que um dia fosse encontrar a minha Aurora. Todavia, isso é outra história e não tenho certeza de que seria capaz de abrir o coração para estranhos que nem você que está me lendo. Não me interprete mal, mas vá que você veja maldade onde não existe e, pior, não seja daqueles afeitos a guardar segredo.

            Pois lá estava eu com meus 21 anos, quase 22, pois sou dos nascidos no mês sete. Fica a seu critério decifrar se sou canceriano ou leonino. Se bem que, percebo pelo olhar, talvez seja mais afeito a búzios ou, não duvido, tarô. E não pense que esteja eu divagando para não lhe contar de vez, já que isso que lhe digo tem a ver com o ocorrido.

            Mal cheguei ao tal vilarejo, fui acometido por uma constipação, que cheguei a me compadecer de mulher na hora do parto. Que sofrimento doido foi aquele, até hoje me pergunto. Por sorte ou predestinação, uma senhora de olhos amarelados, que tinha em mãos um baralho de cartas visionárias, percebeu o meu entra e sai do banheiro da única pensão do local. 

            — Na primeira vez imaginei que fosse caganeira; na segunda, a pulga se instalou atrás da orelha. Mas a quinta me deu a certeza de que é mesmo bosta-empedrada. Ademais, as cartas não mentem.

            Encarei a velha e supliquei para que ela tivesse uma solução para o meu problema. E, para meu alívio, possuía. Não vou entrar em detalhes aqui, mas afirmo, com a certeza de quem voltou a ver a luz no fundo do túnel, que o trem, até naquele instante desencarrilhado, voltou aos trilhos e seguiu seu caminho natural. E olha que nem quero fazer trocadilho com assunto tão alarmante. 

            Problema resolvido, ainda fui orientado a tomar um chá de ervas, que até hoje carrego uma porção no bolso. Nunca mais tive problemas dessa natureza. Entretanto, não se apresse, pois o causo que quero lhe falar não é esse.

            Dona Lúcia, a alma caridosa que me arrancou tamanho sofrimento, era proprietária da pensão. Mulher de visão, possuía algo mais rentável, que lhe garantia fazer viagem até de avião para o Rio de Janeiro, onde se hospedava no afamado bairro de Copacabana. Como soube disso? Bem, desde cedo, minha mãe me ensinou a tratar todos com respeito e, principalmente, aqueles que apaziguam nossas aflições. E lá estávamos dona Lúcia e eu proseando enquanto dividíamos uma garrafa de cerveja.

            — Geraldo, você é um rapaz vigoroso. E do jeito que é parrudo, estou certa de que a testosterona está lá nas alturas.

            Enquanto dona Lúcia falava, comecei a imaginar que ela queria que eu lhe pagasse pela ajuda de modo pouco incomum. Mas eis quão tolo estava eu, já que a mulher queria me propor emprego. Mas não na pensão, e, sim, no outro estabelecimento, que ficava na extremidade oposta do vilarejo.

            Sem poder dizer não, aceitei e, já na noite seguinte, fui levado pelas mãos de dona Lúcia para conhecer o local. Nenhuma placa, mas havia um sinal claro logo na entrada que não deixava dúvida qual era o ramo da casa: uma luz vermelha. E, mesmo aparentando certo desconforto, entrei no recinto, onde, atrás do balcão de bebidas, era possível ver um grande quadro com os dizeres: "Aqui você não precisa morrer para ver o paraíso."

            Talvez você esteja se perguntando se aceitei ou não o emprego de leão de chácara. Digo-lhe, sem qualquer sentimento de orgulho ou arrependimento, que trabalhei para dona Lúcia até abril de 1964, quando decidi mudar de ramo, justamente quando o país começou a viver anos de chumbo, e a poesia, por muito tempo, foi deixada de lado.

  • Nota de esclarecimento: O conto "O diário de Geraldo" foi publicado por Notibras no dia 23/8/2025.
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