quinta-feira, 1 de maio de 2025

O homem que queria ser escritor

              Agripino Andrade, leitor voraz desde a longínqua infância, quando logo passou de 'O Pequeno Príncipe' para a deliciosa Coleção Vagalume, nunca havia pensado em se tornar, ele próprio, um escritor. Mas não é que, agora aposentado de uma estafante carreira de policial, o desejo, finalmente, chegou durante certa madrugada após dois goles a mais no vinho barato esquecido no fundo da geladeira? 

          Por falar no vinho, vale a pena mencionar que ele fora aberto há algumas semanas durante uma infrutífera tentativa do sujeito levar Lorena, uma ex-colega, para a alcova. É verdade que a mulher estava separada, mas nem por isso interessada em algo mais com Agripino. Tanto é que a agora novamente senhorita imaginou apenas rever o amigo com quem havia dividido anos na mesma seção de investigação. Nada mais! 

          Se o tino policial havia abandonado Agripino logo após a aposentadoria, não se sabe ao certo. Mas não resta dúvida de que, pelo menos no caso da moçoila, teria errado feio ou, como os jovens gostam de dizer, rude. No entanto, a amizade não se findou por completo, apesar da flagrante esfriada, parte por conta de certo afastamento de Lorena, parte pela vergonha de Agripino, que, sem dúvida, carregava toda a culpa. 

          A vergonha, aliada da consciência abarrotada, acompanhou o gajo pelo resto do mês, até que começou a se transformar em depressão. Não do tipo que se cura em uma mesa de bar ou em um passeio pela orla do lago Paranoá ou, então, em uma longa caminhada pelo Parque da Cidade. A coisa era séria, tão séria, que até Edmundo, o porteiro do prédio, percebeu que o antigo morador do apartamento 104, na Asa Norte, não estava bem. 

          Em contrapartida, Agripino pareceu encontrar a veia artística que tanto procurava. Descobriu-se poeta e, não tardou, encheu calhamaços com versos e mais versos. Sentiu-se o próprio Drummond e, na loucura, se afastou de todos, de tudo, do mundo. 

          Era nítido que o ex-policial não andava bem da cuca. No entanto, como sabê-lo, se o agora poeta não se permitia convívio nem com parentes e amigos mais próximos? E, nas raras vezes em que o via, Edmundo ficava assustado com o corpo cada vez mais magro. O morador permanecia quase sempre enclausurado, saindo no máximo uma vez por semana para uma rápida ida ao mercado. 

          Foi numa segunda-feira, logo pela manhã, que dona Arminda, vizinha de porta, reclamou do forte odor vindo do apartamento de Agripino. Assustada, comunicou o fato ao porteiro, que subiu apressado as escadas. Ele tocou a campainha. Nenhuma resposta. Tocou novamente, chamou pelo morador, bateu à porta. Nada. 

          Ligaram para a síndica, que, em acordo com outros moradores que se acumularam em frente ao apartamento do Agripino, decidiu que o melhor era arrombar a porta, enquanto o corpo de bombeiros não chegava. E foi o que fizeram, mas algo dificultava a abertura por completo da porta. 

          Edmundo esticou o pescoço e não teve dúvida, o fedor era dali. Dois enormes sacos de lixo. Com esforço e encolhendo a barriga protuberante, finalmente conseguiu entrar no recinto. Olhos arregalados, deu alguns passos, o suficiente para encontrar Agripino sentado em uma cadeira, parte do tronco e a cabeça estendidos sobre a mesa. 

          Temendo pelo pior, o funcionário do edifício se aproximou, esticou o braço e tocou o ombro do morador, cujo corpo estava cadavérico. Edmundo chamou-o pelo nome. Nenhuma resposta. Deu-lhe algumas sacudidelas. Nada. Desesperado, agitou o corpo inerte, até que, para sua surpresa, viu o rosto de Agripino se virar lentamente, e os lábios se mexerem.

          — Seu Agripino, o senhor está bem?

          O moribundo balbuciou algo, mas o porteiro não conseguiu entender. Precisou chegar os ouvidos para mais perto.

          — Seu Agripino, o senhor está bem?

          Até que, finalmente, Edmundo conseguiu entender o que Agripino dizia.

          — Por favor, não sufoque o artista.

          Foram as suas derradeiras palavras.

  • Nota de esclarecimento: O conto "O homem que queria ser escritor" foi publicado por Notibras no dia 1º/5/2025. 
  • https://www.notibras.com/site/policial-de-pijama-pede-em-ultima-frase-que-nao-sufoquem-o-artista/

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