Por falar no vinho, vale a pena mencionar
que ele fora aberto há algumas semanas durante uma infrutífera tentativa do sujeito
levar Lorena, uma ex-colega, para a alcova. É verdade que a mulher estava
separada, mas nem por isso interessada em algo mais com Agripino. Tanto é que a
agora novamente senhorita imaginou apenas rever o amigo com quem havia dividido
anos na mesma seção de investigação. Nada mais!
Se o tino policial havia abandonado Agripino
logo após a aposentadoria, não se sabe ao certo. Mas não resta dúvida de que,
pelo menos no caso da moçoila, teria errado feio ou, como os jovens gostam de
dizer, rude. No entanto, a amizade não se findou por completo, apesar da
flagrante esfriada, parte por conta de certo afastamento de Lorena, parte pela
vergonha de Agripino, que, sem dúvida, carregava toda a culpa.
A vergonha, aliada da consciência abarrotada,
acompanhou o gajo pelo resto do mês, até que começou a se transformar em
depressão. Não do tipo que se cura em uma mesa de bar ou em um passeio pela
orla do lago Paranoá ou, então, em uma longa caminhada pelo Parque da Cidade. A
coisa era séria, tão séria, que até Edmundo, o porteiro do prédio, percebeu que
o antigo morador do apartamento 104, na Asa Norte, não estava bem.
Em contrapartida, Agripino pareceu
encontrar a veia artística que tanto procurava. Descobriu-se poeta e, não
tardou, encheu calhamaços com versos e mais versos. Sentiu-se o próprio
Drummond e, na loucura, se afastou de todos, de tudo, do mundo.
Era nítido que o ex-policial não andava bem
da cuca. No entanto, como sabê-lo, se o agora poeta não se permitia convívio
nem com parentes e amigos mais próximos? E, nas raras vezes em que o via,
Edmundo ficava assustado com o corpo cada vez mais magro. O morador permanecia
quase sempre enclausurado, saindo no máximo uma vez por semana para uma rápida
ida ao mercado.
Foi numa segunda-feira, logo pela manhã, que
dona Arminda, vizinha de porta, reclamou do forte odor vindo do apartamento de Agripino.
Assustada, comunicou o fato ao porteiro, que subiu apressado as escadas. Ele
tocou a campainha. Nenhuma resposta. Tocou novamente, chamou pelo morador,
bateu à porta. Nada.
Ligaram para a síndica, que, em acordo
com outros moradores que se acumularam em frente ao apartamento do Agripino,
decidiu que o melhor era arrombar a porta, enquanto o corpo de bombeiros não
chegava. E foi o que fizeram, mas algo dificultava a abertura por completo da
porta.
Edmundo esticou o pescoço e não teve
dúvida, o fedor era dali. Dois enormes sacos de lixo. Com esforço e encolhendo
a barriga protuberante, finalmente conseguiu entrar no recinto. Olhos
arregalados, deu alguns passos, o suficiente para encontrar Agripino sentado em
uma cadeira, parte do tronco e a cabeça estendidos sobre a mesa.
Temendo pelo pior, o funcionário do
edifício se aproximou, esticou o braço e tocou o ombro do morador, cujo corpo
estava cadavérico. Edmundo chamou-o pelo nome. Nenhuma resposta. Deu-lhe
algumas sacudidelas. Nada. Desesperado, agitou o corpo inerte, até que, para
sua surpresa, viu o rosto de Agripino se virar lentamente, e os lábios se
mexerem.
— Seu Agripino, o senhor está bem?
O moribundo balbuciou algo, mas o
porteiro não conseguiu entender. Precisou chegar os ouvidos para mais perto.
— Seu Agripino, o senhor está bem?
Até que, finalmente, Edmundo conseguiu
entender o que Agripino dizia.
— Por favor, não sufoque o artista.
Foram as suas derradeiras palavras.
- Nota de esclarecimento: O conto "O homem que queria ser escritor" foi publicado por Notibras no dia 1º/5/2025.
- https://www.notibras.com/site/policial-de-pijama-pede-em-ultima-frase-que-nao-sufoquem-o-artista/
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