quinta-feira, 29 de maio de 2025

Salomão, o leitor

   

Vivia em sebos atrás de livros que, tinha certeza, iria fazê-lo mudar o mundo. E, caso não fosse o mundo, ao menos seria seu dia ou, então, parte dele. O importante, dizia em voz quase muda diante do espelho do banheiro minimalista, era buscar alternativas mais palatáveis para o feijão e arroz do dia a dia. 

          Salomão, que carregava na carteira uma nota de um real, acreditava que a sorte, por mais que tardasse, iria saltitar das páginas amareladas de alguma obra. E, se não fosse de um exemplar de 'Dom Casmurro', seria a de 'A verdade nos seres', de Daniel Marchi ou, então, de 'O diagnóstico do espelho, de Sarah Munck. Quem sabe, talvez, de 'O setênio', de Edna Domenica ou, por que não, 'O afilhado do Capeta', da mineira Ilma Pereira? 

        Enquanto folheava 'Sob a pele de Maria', de Milena Maria Testa, o sujeito foi arrancado do torpor por uma moça, única funcionária do local. Salomão fitou a mulher com certa curiosidade, até que, do nada, sorriu-lhe o sorriso dos despreparados para flertes. Ela movimentou levemente a cabeça para a esquerda e forçou simpatia, revelando uma improvável covinha do lado oposto.

          — Esse livro é ótimo!

          — Já leu?

          — Sim. Duas vezes.

          — Duas?

          — Sim. Gosto de contos, mas, de vez em quando, pego um romance.

          — Também.

          — Vai levá-lo?

          — Estava na dúvida, mas você me convenceu.

          Na semana seguinte, Salomão retornou ao sebo e, entre tantos livros, buscou a dona daquelas covinhas. Não a encontrou, talvez estivesse de folga, férias ou de licença médica. Estaria tão doente a ponto de estar acamada? Preocupado, o homem questionou o senhor atrás do balcão.

          — Tem certeza que foi aqui?

          — Sim! 

          — Engraçado, pois a única mulher com essas características que conheci foi minha mãe.

          — Sua mãe?

          — Sim.

          — Impossível. O senhor tem idade pra ser avô daquela moça.

          O velho virou as costas, o que fez com que Salomão pensasse que ele tivesse ficado ofendido. No entanto, remexendo em uma gaveta, eis que o dono do sebo retirou uma antiga fotografia.

          — Esta era a minha mãe. 

          Salomão, boquiaberto, arregalou os olhos.

          — Sua mãe?

          — Sim. Papai tirou esse retrato pouco antes de mamãe falecer.

          O cliente pegou a fotografia em preto e branco e a observou por um instante. Depois a devolveu para o senhor e, por fim, saiu sem se despedir com palavras, apenas um leve aceno de cabeça. 

          No dia seguinte, Salomão retornou ao sebo, onde se postou no mesmo local em que havia encontrado a jovem de covinhas. Escolheu, entre tantos títulos, um que talvez fosse do agrado da sua quase amiga. Ela não apareceu naquele dia nem nos seguintes. Mesmo assim, é possível vê-lo no mesmo corredor folheando livros, o olhar absorto, como se o mundo pudesse até continuar igual, mas aquele dia seria especial.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Salomão, o leitor" foi publicado por Notibras no dia 29/5/2025.
  • https://www.notibras.com/site/amante-de-livros-busca-reliquias-em-sebos/

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