domingo, 4 de maio de 2025

Garrincha da ponta-esquerda

    

        Pudores relegados a segundo, terceiro e sétimo planos, eis que me sinto no direito de roubar, na maior cara de pau, afamada frase do ainda mais afamado jornalista e escritor Armando Cardoso: “Rapaz formatado em academias.” E, antes que qualquer ofensa seja proferida por quem quer que seja, recorro a uma liminar substancialmente redigida por minha primogênita, a advogada Ana Maria Martínez: "... diante do exposto, e levando-se em conta a genialidade da referida frase, não resta dúvida de que a mesma caiu no gosto do povo e, por conseguinte, tombada pelo patrimônio de qualquer esquina, ainda que seja em Brasília, cujas esquinas são notoriamente inexistentes..."

          Devidamente protegido de qualquer tentativa de virem a me processar, sinto-me no direito de expor singular ocorrido nos meus tempos de meninote, quando guardava em meu âmago a certeza de ser o próprio Garrincha da ponta-esquerda nas areias da praia de Copacabana. Pontapés chegavam sem a menor cerimônia, mas não me impediam de ir até a linha de fundo e cruzar para o meu até hoje grande amigo Flavio, o Don Flavito, que, brilhantemente, cabeceava para o fundo das redes imaginárias. Gol! Gol!! Golaço!!!

          A escalação do nosso time ainda ressoa na minha mente, mesmo que o derradeiro jogo tenha acontecido muito antes até mesmo do longínquo ano de 1990 dar as caras. Paulinho Montanha no gol, Neném e Johnny na defesa, Cinderela, Tunico Perneta e Lindy Gogó de Ouro no meio de campo, Don Flavito e eu no ataque. Bons tempos de placares elásticos, tanto a favor como dolorosamente contra. Coisas do futebol, que, invariavelmente, terminavam num mergulho nas ondas da praia mais famosa do planeta Terra. 

          Sabe aqueles dias em que você não quer nada além do que simplesmente bater bola? Nada de correr desesperado atrás de mais um gol, nada de reclamar de uma jogada ruim ou, então, do companheiro fominha que prefere mais um drible a passar a pelota. Pois era como meus amigos e eu estávamos nos sentindo naquele fim de tarde de domingo, quando um grupo de rapazes mais velhos, muito mais parrudos do que nossos corpos magrelos, nos desafiou.

          — Ei, moleques, que tal uma pelada?

          Não sei de quem foi a ideia de aceitar tamanho descalabro de proposta, apesar de desconfiar que foi do Neném, que era craque em colocar nosso grupo em apuros. Se não foi ele o culpado, fica sendo, haja vista o colossal histórico a seu desfavor. Seja como for, não tardou, estávamos travando a batalha da nossa vida.

          Os caras eram enormes, certamente halterofilistas. E, para nossa surpresa, o receio inicial se tornou numa das maiores goleadas do nosso time, que massacrou aqueles grandalhões. Eles não viram a cor da bola.

          Quando já estava sete a zero, eis que o Neném recuou a bola inapropriadamente para o Paulinho Montanha. Foi a oportunidade de um dos adversários, justamente o mais musculoso, correr, pegar a gorduchinha, quase de frente para a meta, esticar a perna para trás para marcar o gol de honra. Só que isso não aconteceu, pois corri lá da ponta esquerda e consegui dar um leve toque na bola. O resultado é que o pé do sujeito chutou o vento, enquanto a pelota correu faceira para o lado. Pra quê? O rapaz formatado em academias se virou para mim, seus olhos faiscavam de ódio.

          — Moleque, da próxima vez, eu te mato!

          Obviamente que não teve uma próxima vez. Não deu outra, já que a nossa galera saiu em debandada. E, graças à Nossa Senhora de Copacabana, todos ilesos para comemorarmos a goleada. Que partida memorável!

  • Nota de esclarecimento: A crônica "Garrincha da ponta-esquerda" foi publicada por Notibras no dia 4/5/2025.
  • https://www.notibras.com/site/ja-adulto-vem-a-recordacao-do-famoso-garrincha-da-ponta-esquerda/

Nenhum comentário:

Postar um comentário