Iranilde, mulher de gosto improvável
numa vida de poucos luxos por conta da parca aposentadoria de professora, sabia
o real valor do dinheiro. Por isso, pensava muito bem antes de sair por aí
gastando o que não tinha. Vale aqui lembrar aquele desejo dessa mulher por um
certo modelo de relógio, que há pouco voltou à moda.
Vaidosa que era, nem por isso se apegava à
autenticidade do produto. Dessa forma, se a mulher de César não basta ser
honesta, deve parecer honesta, ao tal relógio bastaria uma vaga aparência de
genuinidade. Ainda mais depois que Iranilde quase caiu para trás quando soube
do valor de um original. Impossível e, mais ainda, desnecessário gastar tanto
por algo que, afinal, era mero indicador de horas, minutos e segundos.
Aposentada que era, se havia uma coisa que a velha não
precisava se preocupar era com o tempo. Não mesmo! Nada mais de acordar cedo,
preparar aulas, corrigir provas. Ih, aquilo tudo havia ficado bem lá para
trás.
Enquanto se arrumava para um passeio pelo bairro, Iranilde
ligou o rádio. Um hábito. Não que chegasse a ser como escovar os dentes, mas o
costume de ouvir a rouquidão daquela voz lhe trazia lembranças do pai,
acometido por um infarto fulminante antes dos 40. Iranilde estava certa de que,
a qualquer dia, ouviria a notícia da morte repentina do locutor, um tal
Leopoldo Rossi.
Enquanto a mulher ainda aguardava pelo falecimento do
radialista, este anunciou o bom tempo para aquele dia. Sol a todo vapor na
capital. Iranilde, que havia combinado dar uma passada no apartamento da Martinha
para um chá, antiga colega de trabalho, tratou de separar uma roupa, blusa e
saia leves, além de rasteirinha para enfrentar a calçada cheia de percalços.
Ainda com tempo para um cafezinho, encheu uma pequena xícara e
foi bebericar junto à janela. Do alto, percebeu a movimentação dos camelôs lá
embaixo, bem junto à praça. Ela pensou que aquela gente tinha tudo para vender,
talvez até mesmo o seu último desejo.
Decidida, sorveu o último gole do café, passou os dedos nos
cabelos e, não tardou, já estava na rua. Foi em direção às barraquinhas e, como
quem não quer nada, olhava à procura daquele relógio, até que, de repente,
parou.
– Esse relógio é muito bonito!
– Sim. Tem muita gente usando.
– É vintage, né?
– Não, senhora. É trinta reais.
– Trinta? Tá caro!
– Se levar dois, faço a cinquenta.
Após a negociação, Iranilde retornou ao apartamento. Tomou mais
uma xícara de café, cochilou um pouco após o almoço. Acordou e, por alguns
instantes, imaginou que havia sonhado. Que nada, o relógio estava logo ali na
cabeceira.
A velha aproveitou o tempo que ainda lhe restava para tomar um
banho demorado. Passou creme hidratante por todo o corpo. Caprichou na
maquiagem, mas nada exagerado. Iranilde nunca fora espalhafatosa. Era discreta,
sempre austera. Mas aquele relógio. Como era lindo!
Quase pronta, pegou cuidadosamente o novo relógio e o passou
pelo pulso esquerdo. De tão inebriada, quase se esqueceu de pegar o embrulho
sobre a mesa da sala. Iranilde estava certa de que a amiga ficaria encantada
por conta daquele mimo.
- Nota de esclarecimento: O conto "Iranilde e o relógio vintage" foi publicado por Notibras no dia 18/3/2024.
- https://www.notibras.com/site/iranilde-e-o-vintage-falso-para-a-amiga-leal/
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