
Mal cruzo o portão do pátio, percebo
uma enorme aglomeração diante do antigo prédio da delegacia. Viaturas com
aquelas luzes ligadas, num infinito giro. Estaciono na mesma vaga de sempre,
debaixo de uma mangueira. Desligo o carro e espero alguns minutos. Preciso
encarar aquele martírio mais uma vez.
Meu nome é Roberto Matos, mas meus colegas me chamam
simplesmente de Beto. Não que sejamos íntimos, mas, talvez, o longo
convívio os tenha enganado sobre isso. Na verdade, isso é apenas um
detalhe sem importância, já que nem ligo se me chamam de Beto, Roberto, Matos
ou qualquer outra alcunha.
Há quase 20 anos, certamente por um momento de insensatez, me
tornei inspetor de polícia. Deveria ter seguido meu caminho de técnico de
informática em outro órgão, onde meu dia a dia fosse apenas de computadores e a
minha mente. É verdade que teria que conviver com vozes de outros funcionários,
mas nada que se compare ao rebu que sou exposto nesses infernais plantões.
Para você, que talvez desconheça como é a minha rotina, vou
fazer uma breve exposição. Como mencionei, sou plantonista e, por isso, sujeito
à escala, que, no meu caso, se dá da seguinte maneira. Entro às 8h e saio às
20h desse mesmo dia. Volto para casa e, no dia seguinte, entro às 20h e fico
até as 8h do próximo dia. Daí, volto para casa e descanso por 72h e, assim,
sucessivamente até me aposentar ou, então, que eu não consiga mais suportar tal
situação.
Moro relativamente perto do trabalho, o que
faz com que eu chegue em no máximo 30 minutos, dependendo do trânsito. Meus
colegas me dizem que acordam por volta das 7h, tomam café da manhã, entram
debaixo do chuveiro e, sem se apressarem, chegam à delegacia no horário ou, no
máximo, 15 ou 20 minutos após. Não consigo fazer o mesmo.
Demoro a pregar os olhos já na noite anterior
e coloco vários alarmes no meu celular, sendo o primeiro às 2h e, os
subsequentes, a cada 20 minutos. Ergo meu corpo e vou direto para a cozinha,
onde espremo dois limões em um copo de vidro. Completo com água e bebo.
Logo em seguida, começo a erguer meu corpo na
barra fixa à porta que divide a cozinha e a sala. São inúmeras repetições, que
fazem com que minha mente comece a concatenar as ideias. E, entre uma sessão e
outra, assim que se passam 30 minutos, escovo os dentes.
Retorno para a cozinha, onde coloco água na
mesma panela e a deposito sobre a mesma boca do fogão. Volto a erguer meu corpo
na barra fixa e, antes que a água ferva, eis que coloco três colheres cheias de
pó de café coador de pano de sempre. Não demora, o café está pronto.
Despejo um pouco na mesma xícara, que conhece
meus lábios há anos. Meus pensamentos começam a se organizar com mais
desenvoltura. Mentalmente planejo as próximas ações, enquanto a garrafa térmica
cospe suas últimas gotas. Hora de tomar banho.
Depois do banho, escovo os dentes novamente,
enquanto observo meu rosto magro, olhos profundos, como se quisessem entender
aquele homem que os encara. Nenhuma palavra, apesar da umidade que, não raro,
escorre por sua face.
Eis que, ainda dentro do automóvel, tento
postergar outro dia de sofrimento. Mais alguns minutos, preciso abrir a porta e
encarar aquilo tudo. Passo por um colega, que está saindo do plantão. Ele me
cumprimenta e eu, sorridente, digo algo amigável. Prossigo no meu papel e,
finalmente, coloco os pés na delegacia. Vozes ensurdecedoras ao meu redor. Se
elas soubessem o que se passa na minha mente, certamente se calariam.
Sento na mesma cadeira de sempre, em frente ao
primeiro computador da direita, ao lado da porta de grade. Antes que eu tenha
chance de ligar o computador, alguém se aproxima e me pergunta se estou livre.
Esboço um sorriso, enquanto a mulher, praticamente da minha idade, se senta e
começa a tagarelar. Falo para ela aguardar um pouco até que eu ligue o
computador.
A mulher, impaciente, tenta puxar conversa,
enquanto eu procuro me fixar na tela, que demora a dar sinais de vida.
Finalmente, as primeiras luzes brilham e sou transportado para um dia de sol na
praia do Peró, onde costumava passar os verões nos longínquos anos 1970. Não
sei quanto tempo fico nesse devaneio, até que alguém me toca no ombro. É o
Sousa, policial da equipe que está saindo.
—Beto, você pode trocar o plantão noturno da
sexta pelo noturno de domingo?
—Preciso ver nas anotações que estão no carro.
Me mande uma mensagem, que te respondo mais tarde. Pode ser?
Sousa é um dos poucos que parou de me torrar a
paciência para arrumar uma agenda eletrônica, que pode ser instalada no
celular. Ele me dá um leve toque no ombro e nos despedimos, cada um com um
sorriso, sendo o dele muito mais franco do que o meu.
Volto os olhos para a tela. O computador, ao
contrário de mim, parece estar pronto para mais um dia de trabalho. Respiro
fundo e começo a atender a primeira cliente do dia, que promete ser ainda mais
doloroso.
Depois de ouvir todas as lamúrias da mulher à
minha frente, chegam dois homens se acusando mutualmente sobre um golpe de um
site de vendas da internet. Enquanto tagarelam, procuro me concentrar em algo
mais prazeroso, o horizonte. No entanto, um homem esquálido encosta na porta de
grades e me pergunta se o inspetor Lima já havia chegado. Respondi que ele só
viria à tarde.
Volto minha atenção aos dois homens, que não
param de discutir, até que peço para que os dois se sentem. Explico que eles
eram vítimas, e que o golpista era outro, que provavelmente estava em outro
estado. Eles me olham com cara de incrédulos, até que os dois se viram para mim
e perguntam quase ao mesmo tempo: "O senhor também já caiu nesse
golpe?"
Olho para aqueles rostos coléricos e respondo
que não, mas conhecia como o golpe funcionava, tamanho o número de vezes que
havia registrado situações semelhantes. Levo quase uma hora para terminar o
boletim de ocorrência. Os sujeitos, agora mais calmos, agradecem e saem
conversando amigavelmente. Não duvido que, dali, foram tomar uma cerveja.
Meu dia ainda estava longe de terminar. O
próximo cliente é um senhor de quase dois metros, uns cento e não sei quantos
quilos. Ele se senta e minha mente não para de imaginar que, logo, a cadeira
não aguentará tanto peso e o homenzarrão desabará no chão frio da delegacia.
Instintivamente, levo as mãos aos ouvidos, mas nada acontece. A cadeira tem lá
seu mérito. Apesar de capenga, parece ser de bom material.
Pergunto para o homem qual o motivo de sua ida
à delegacia. Antes não tivesse perguntado e, melhor ainda, antes tivesse
mantido as mãos nos ouvidos. A sua voz me reporta a uma araponga. Não consigo
prestar atenção nas palavras, mas apenas no irritante som. Quero fugir dali e,
então, me levanto e digo que preciso ir ao banheiro.
Levo não sei quanto tempo, até que, recomposto, retorno. Por
sorte, o Geneci, colega de equipe, estava atendendo o senhor Araponga. Afinal,
o sujeito queria apenas registrar o extravio da sua carteira de motorista. Mal
me sento, o Geneci entrega o boletim de ocorrência para o cliente, que agradece
e, ainda bem, sai para bater asas em outras paisagens.
Outras tantas situações caóticas acontecem ao longo do expediente.
Finalmente, é hora de recolher os trapos e voltar para o meu refúgio. Entro em
casa, minha mulher me pergunta como foi o plantão. Não tenho vontade de
responder, mas me esforço para sorrir. Beijo-lhe a face e me sento no sofá por
quase meia hora.
—Vai tomar banho agora, Beto?
Levanto meu corpo carcomido e vou em direção
ao banheiro. Debaixo do chuveiro, volto meu rosto para a água que cai morna. As
lágrimas são levadas, nem sei se foram notadas pela minha esposa, que está ali
com a toalha na mão. Saio do box e Laura me cobre como se eu fosse um bebê. Ela
me beija os lábios e me diz: "Vai ficar tudo bem. Eu te amo!"
- Nota de esclarecimento: O conto "Um autista na polícia" foi publicado por Notibras no dia 30/3/2024.
- https://www.notibras.com/site/policial-autista-vive-dia-de-cao-em-dia-de-plantao/
- O conto "Um autista na polícia" foi publicado no volume XII, edição 62 da Revista Barbante, 2024.
- https://revistabarbante.com.br/wp-content/uploads/2024/04/completa_barbanteabril2024.pdf