sábado, 31 de maio de 2025

Conversa desconexa

 

    Eram amigos há tanto tempo, que parecia que todos os segredos entre eles já haviam sido revelados. Se isso era verdade ou não, talvez fosse apenas um detalhe sem importância, mesmo porque era nítida a liberdade que desfrutavam nos diálogos incomuns, mesmo que espaçados pela correria do dia a dia.

    — Bom dia, Maria Tereza, como anda o caos por aí?

    — Ah, Luiz, tudo desorganizado como nos conformes.

    — Que bom! O Júlio já saiu da cadeia?

    — Não te contei?

    — Não. O quê?

    — Ele foi solto na semana passada.

    — Que bom!

    — É, mas ficou ainda melhor hoje bem cedinho.

    — Por quê?

    — A polícia bateu aqui em casa às seis da matina e o levou para mais uma temporada na prisão.

    — E a Sônia?

    — Ih, aquela não tem mais jeito. Inventou de fazer faculdade.

    — Sério?

    — Pois é, Luiz! Nem te conto! Engenharia!

    — Não é possível!

    — Pois não tô te falando?

    — Engenharia?

    — Uma perdida! Aquela largou o empregão de caixa no mercadinho aqui pertinho de casa.

    — Não acredito! Esses jovens não têm mesmo juízo.

    — Pra você ver o que não passo com essa menina.

    — Pelo menos o Júlio tá no caminho certo, né, minha amiga?

    — Graças a Deus! Graças a Deus!

    — Ih, Maria Tereza!

    — O que foi, Luiz?

    — A panela de pressão tá apitando que nem lagartixa.

    — Corre lá! Depois a gente se fala.

    — Inté, amiga!

    — Inté!

    Após salvar o feijão de queimar, o homem se sentou à mesa da cozinha e suspirou: 

    — Ainda bem que o vendaval na casa da Maria Tereza tá diminuindo. Eita, garotada que dá trabalho!

  • Nota de esclarecimento: O conto "Conversa desconexa" foi publicado por Notibras no dia 31/5/2025.
  • https://www.notibras.com/site/conversa-desconexa-cria-uma-linha-tenue-entre-o-futuro-incerto-e-o-seguro/

sexta-feira, 30 de maio de 2025

Com o rei na barriga

     

Amadeu, apesar da flagrante pobreza, parecia ter nascido com o rei na barriga. E, de tão empertigado, só percebia que havia pisado em caquinhas na calçada, não recolhidas por donos de cachorros, quando sentia a maciez abaixo do sapato. Soltava um palavrão e, em seguida, tentava, inutilmente, se livrar do dejeto arrastando o solado sobre a grama ao lado. O fedor já estava impregnado.

          O sujeito, para manter intacto o status, comprava coisas que nem sabia exatamente qual a serventia. Não importava, ainda que tivesse que fazer mais um furo no cinto para segurar as calças. Foi assim com um globo terrestre, que fez questão de colocar sobre sua mesa no trabalho. 

          Vez ou outra, quando alguém o observava, Amadeu girava o objeto, fechava os olhos e, com o indicador da mão direita, o parava. E, certa vez, o homem arregalou os olhos e, não tardou, balbuciou: 

          — Tuvalu?

          Onde diabos ficava aquele lugar? Era um país? Oceania? O que era essa tal Oceania? Amadeu nunca fora bom em geografia e, então, imaginou que fosse lá pelos lados de Anápolis. Mas eis que uma colega, Patrícia, se aproximou.

          — Tuvalu?

          — Sim. Conhece?

          — Nunca nem ouvi falar.

          — Pois tô pensando em ir no final de semana. 

          — Sério, Amadeu?

          — Sim. Tô querendo sair direto do trabalho. Vou até pedir pra Aline me deixar sair mais cedo.

          — Hum... Vai de avião?

          — Não. De carro mesmo.

          — De carro?

          — É. 

          Sem querer arranjar pendenga com o colega, Patrícia sorriu e foi até a garrafa térmica no final da sala. Serviu-se e retornou para sua mesa, onde uma pilha de papéis a aguardava. E, entre um gole e outro, a moça balançou a cabeça e pensou: "Meu Deus, como é que a raça humana conseguiu chegar até aqui?"

  • Nota de esclarecimento: O conto "Com o rei na barriga" foi publicado por Notibras no dia 30/5/2025.
  • https://www.notibras.com/site/viagem-a-tuvalu-logo-ali-e-de-carro-ja-imaginou/

quinta-feira, 29 de maio de 2025

Salomão, o leitor

   

Vivia em sebos atrás de livros que, tinha certeza, iria fazê-lo mudar o mundo. E, caso não fosse o mundo, ao menos seria seu dia ou, então, parte dele. O importante, dizia em voz quase muda diante do espelho do banheiro minimalista, era buscar alternativas mais palatáveis para o feijão e arroz do dia a dia. 

          Salomão, que carregava na carteira uma nota de um real, acreditava que a sorte, por mais que tardasse, iria saltitar das páginas amareladas de alguma obra. E, se não fosse de um exemplar de 'Dom Casmurro', seria a de 'A verdade nos seres', de Daniel Marchi ou, então, de 'O diagnóstico do espelho, de Sarah Munck. Quem sabe, talvez, de 'O setênio', de Edna Domenica ou, por que não, 'O afilhado do Capeta', da mineira Ilma Pereira? 

        Enquanto folheava 'Sob a pele de Maria', de Milena Maria Testa, o sujeito foi arrancado do torpor por uma moça, única funcionária do local. Salomão fitou a mulher com certa curiosidade, até que, do nada, sorriu-lhe o sorriso dos despreparados para flertes. Ela movimentou levemente a cabeça para a esquerda e forçou simpatia, revelando uma improvável covinha do lado oposto.

          — Esse livro é ótimo!

          — Já leu?

          — Sim. Duas vezes.

          — Duas?

          — Sim. Gosto de contos, mas, de vez em quando, pego um romance.

          — Também.

          — Vai levá-lo?

          — Estava na dúvida, mas você me convenceu.

          Na semana seguinte, Salomão retornou ao sebo e, entre tantos livros, buscou a dona daquelas covinhas. Não a encontrou, talvez estivesse de folga, férias ou de licença médica. Estaria tão doente a ponto de estar acamada? Preocupado, o homem questionou o senhor atrás do balcão.

          — Tem certeza que foi aqui?

          — Sim! 

          — Engraçado, pois a única mulher com essas características que conheci foi minha mãe.

          — Sua mãe?

          — Sim.

          — Impossível. O senhor tem idade pra ser avô daquela moça.

          O velho virou as costas, o que fez com que Salomão pensasse que ele tivesse ficado ofendido. No entanto, remexendo em uma gaveta, eis que o dono do sebo retirou uma antiga fotografia.

          — Esta era a minha mãe. 

          Salomão, boquiaberto, arregalou os olhos.

          — Sua mãe?

          — Sim. Papai tirou esse retrato pouco antes de mamãe falecer.

          O cliente pegou a fotografia em preto e branco e a observou por um instante. Depois a devolveu para o senhor e, por fim, saiu sem se despedir com palavras, apenas um leve aceno de cabeça. 

          No dia seguinte, Salomão retornou ao sebo, onde se postou no mesmo local em que havia encontrado a jovem de covinhas. Escolheu, entre tantos títulos, um que talvez fosse do agrado da sua quase amiga. Ela não apareceu naquele dia nem nos seguintes. Mesmo assim, é possível vê-lo no mesmo corredor folheando livros, o olhar absorto, como se o mundo pudesse até continuar igual, mas aquele dia seria especial.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Salomão, o leitor" foi publicado por Notibras no dia 29/5/2025.
  • https://www.notibras.com/site/amante-de-livros-busca-reliquias-em-sebos/

quarta-feira, 28 de maio de 2025

Cassiano, o vizinho perfumado

    

   Clarice andava tristonha. Não que isso não fosse comum, ainda mais depois que, do nada, Jofre arrumou as malas e até arriscou sair de casa. Quer dizer, não foi propriamente do nada, já que até os vizinhos menos curiosos não deixaram de ouvir os gritos desesperados da mulher suplicando para o marido não fazer aquilo. E aquilo, não era mais segredo, teria sido consequência de uma desavença conjugal, que, para muitos, seria uma bobice sem tamanho. 

               — Bobice?

               — Sim, meu amor, bobice tua!

               — Minha?

               — E de quem mais poderia ser, Jofre?

               — Hum! Vá perguntar pro seu namoradinho do terceiro andar.

               — Que namoradinho o quê, Jofre?!

                Para esclarecer quem era o tal namoradinho do terceiro andar, digo-lhe que se tratava de Cassiano, tipo quase comum, caso não fosse pelo costumeiro perfume que parecia inebriar as moçoilas desavisadas, fossem inocentes ou não. Também conseguia atingir em cheio as narinas das compromissadas, incluindo nesse bojo indivíduos de gêneros distintos. 

               Ilda e Osvaldo formavam um dos mais apaixonados casais do edifício. No entanto, parece que isso não foi suficiente para impedi-los de discutir justamente por causa do vizinho de porta, cujo aroma era percebido até mesmo através do buraco da fechadura. E, por mais que as aparências tentassem camuflar os desejos, os olhares em direção ao sujeito gritavam, como se implorassem por um pouco de atenção. 

               — Feitiçaria!

               — O quê?

               — Feitiçaria, sim, senhora Ilda!

               — Tá maluco, Osvaldo?

               — Você ainda não me viu maluco, Ilda! 

               — Hum!

               — Hum, o quê?

               — Hum! Hum!! Hum!!!

               Diante da imposição da esposa, Osvaldo tratou de colocar o rabo entre as pernas e sair de fininho. Foi até tomar um ar fresco nas partes comuns do prédio, onde encontrou Jofre e mais alguns maridos contrariados com o morador perfumado. Não tardou, começaram a confabular, mas sem perder a pose.

               — E aí, galera?

               — Opa!

               — Tudo bem?

               — Ah, a mesma coisa de sempre.

               — Pois é.

               — Mas tá bom, né?

               — Ih, se melhorar, estraga. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Cassiano, o vizinho perfumado" foi publicado por Notibras no dia 28/5/2025.
  • https://www.notibras.com/site/cassiano-o-vizinho-perfumado-que-comecava-a-dividir-casais-no-predio/

terça-feira, 27 de maio de 2025

Que aperto!

            Não sou seguidor de religião, seja ela qual for. No entanto, não sou inquisidor da fé alheia, pois cultivo o pensamento de que cada um sabe onde o calo aperta. Seja como for, parece que o meu ateísmo atrai praticantes do cristianismo, especialmente aqueles ligados a igrejas evangélicas. Mas, mesmo que raro, acontece também com alguns católicos, como se possuíssem a certeza de que encontrarão em mim a próxima alma a ser salva.

             Talvez por conta do meu notório desconhecimento religioso, tomei um baita susto quando duas senhoras, devidamente cobertas com vestidos mais castos impossível, se aproximaram da minha pessoa num momento de precisão inadiável de um banheiro. Pois é, sabe aquela fisgada na barriga que anuncia que o negócio é urgente e, sem qualquer cerimônia, quer conhecer o mundo? E eu ali, a dois passos do portão da minha humilde residência, quando as beatas, na maior cara de pau, me cercaram.

               — Meu jovem, um minuto de sua atenção. Qual a sua graça?

                Entre calafrios, respondi instintivamente.

                — Luciano.

               Abismado e com cara de quem precisava urgentemente me aliviar, a mais falante das mulheres não me deixou abrir a boca.

               — Somos da igreja Nossa Senhora Desatadora dos Nós. Levamos a palavra do Senhor Jesus Cristo a todos que desejam ouvi-la. Blá, blá, blá...

               Enquanto a matraca cuspia palavras sem que eu entendesse o sentido daquilo tudo, os sons vindos do meu interior anunciavam que a situação se tornava cada vez mais periclitante. Ou tomava uma atitude ríspida ou, então, era inevitável borrar as calças. Tomei coragem e deixei as duas mulheres boquiabertas.

               — Dá licença, dona, que preciso resolver um negócio.

             Mas eis que a tagarela, talvez querendo dar sua última cartada, me puxou pelo braço, o que me fez perder a concentração e, então, lá se foi o resquício da minha dignidade. E, de tão flagrante, nem tentei disfarçar. Quanto às senhoras, as duas não perderam tempo e se evadiram do local tapando as narinas.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Que aperto!" foi publicado no Café Literário no dia 27/5/2025.
  • https://www.notibras.com/site/luciano-com-dor-de-barriga-tenta-se-livrar-de-beatas-para-chegar-ao-trono/

segunda-feira, 26 de maio de 2025

Um dia daqueles como tantos outros

Quando não consigo dormir direito, faço minhas coisas numa preguiça danada, como se fosse arrastada pela consciência, que pesa dolorida. Tudo parece precisar de esforço redobrado para ser feito, enquanto meu corpo, sonolento pela falta de repouso adequado, move-se que nem líquido se deslocando em busca de soluto. Pura osmose!

          — Mãe, cadê meu estojo?

          — Amor, você viu minha gravata listrada?

          — Mãããeee, a senhora sabe onde coloquei a minha saia lilás.

          Enquanto luto contra minhas pálpebras, meus filhos e meu marido me cobram coisas que são da conta deles. Tento manter um sorriso amigável, mas creio que a vontade de me transformar em pura ironia vence qualquer pretensão de ser politicamente correta em hora tão inapropriada para ser arrancada da cama.  

          — Você viu?

          — Vi o quê, Marco Antônio?

          — A minha gravata.

          — Que gravata?

          — Aquela azul com listras.

          — Não, amor da minha vida, não vi.

          — Onde será que ela está?

          — Sei lá! Na verdade, não me lembro da última vez que a usei.

          — Você usou a minha gravata?

          É incrível que o meu esposo não entende sarcasmo. Ou será isso característica dos homens em geral, como se algo lhes faltasse na cabeça. Será que eles são desprovidos de cérebro? Entretanto, para não causar imbróglio logo cedo, finjo candura.

          — Meu bem, estou brincando. Mas por que você não vai com aquela vermelha? Você fica um gato!

          — Sério?

          — Sério, meu lindo!

          Por sorte, consigo convencer o meu amado a usar a tal gravata de outra cor. Ainda bem ou, então, era capaz de eu me fazer viúva pelas próprias mãos, usando, talvez, a gravata listrada, que não tenho a menor ideia de onde esteja. Mas, antes de eu cantar vitória, eis que meu filho me cobra novamente.

          — Mãe, viu o meu estojo?

          — Já olhou na sua mochila, Tadeu?

          — Já.

          — Me dá ela aqui.

          Assim que meu primogênito me entrega a mochila, encontro o tal estojo, que estava bem no fundo. 

          — Tá aqui, Tadeu!

          — Valeu, mãe!

          Dou um suspiro tão alto, que minha família se volta para mim. Ergo os olhos para o teto, como se buscasse me confidenciar com possíveis duendes escondidos no lustre, herança de vovó. Tomo coragem e lanço uma pergunta, que, pelo tom, parece mais um desafio. 

          — Algo mais?

          Nenhuma resposta, até que a Luísa aparece vestida com uma calça colorida.

          — Que tal, mamãe?

          Antes que eu diga algo, minha filha completa.

          — Hoje vou apresentar um trabalho sobre a Tropicália. 

          Nem sei se minha menina falou a verdade. Seja como for, parece que ela me entende melhor do que o pai e o irmão. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Um dia daqueles como tantos outros" foi publicado por Notibras no dia 26/5/2025.
  • https://www.notibras.com/site/um-dia-daqueles-como-tantos-outros-na-dificil-rotina-das-maes/

domingo, 25 de maio de 2025

Entre predicativos e predicados

Marília era um típico caso de mulher que vive sob as próprias regras, o que, não raro, era visto com olhares desconfiados dos que não se conformavam com tantas liberdades vindas de alguém que, perante a sociedade, deveria ser poço de recato. Hum! Olegário, ex-marido, gostava de enaltecer os bons costumes.

          — Marília, você deveria ouvir as palavras do Temer.

          — Temer? Tá falando do traíra?

          — Ih, lá vem você com essa história de que foi golpe.

          — Olegário, basta ter um mínimo de inteligência pra saber que foi. 

          — Tá bom, Marília! Mas você deveria ao menos consideração com o que o homem disse a respeito da esposa.

          — E o que foi?

          — Que a esposa dele era cheia de predicados.

          — Ah! Pra você ver, né, Olegário?

          — O quê?

          — Ué, que aquele sujeito não é muito afeito à língua portuguesa.

          — Tá com inveja, é?

          — Inveja? Eu? 

          — Tá, sim!

          — Olegário, e desde quando vou ter inveja de um cara que não sabe a diferença entre predicativo do sujeito e predicado?

          — O quê?

          — Ué, isso mesmo! Predicativos atribuem qualidade, estado ou condição ao sujeito. Já predicado é tudo aquilo que não é sujeito. 

          — Ih, lá vem você com essas regras de português que ninguém precisa saber.

          — Ah, que saudade, Olegário!

          — Saudade do quê?

          — De ontem.

          — Ontem?

          — É. Ontem.

          — Por quê?

          — É que ontem eu ainda não tinha ouvido mais essa bobagem saída da sua boca. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Entre predicativos e predicados" foi publicado por Notibras no dia 25/5/2025.
  • https://www.notibras.com/site/incomodado-com-jeito-da-esposa-marido-recorre-a-fala-de-michel-temer/

sábado, 24 de maio de 2025

Gabriel, a bebida e o cachorro ruivo

  Gabriel, 30 anos, aparência agradável aos olhos femininos, solteiro por quase convicção, falava convincente quando sóbrio... Sim, quando sóbrio, haja vista a bebida alcóolica ser um hábito desde seus 15, 16 anos, época repleta de inseguranças, não recusou um copo de cerveja de amigos. Quis parecer adulto e, sem se dar conta, tornou aquilo como necessidade para se enturmar. Enturmou-se até demais, como pode ser visto hoje em dia.

          O gajo morava em um quarto e sala no Noroeste, nobre localização do Distrito Federal. Pelo salário, daria para comprar algo maior, mas preferia o conforto de apenas alguns passos entre o quarto, a sala, a cozinha e o banheiro. Também poderia ter um belo automóvel, caso a responsabilidade o abandonasse por completo. Melhor chamar um táxi ou motorista de aplicativo, ainda mais que os hábitos etílicos continuam firmes ao seu lado. 

          Bebia todos os dias, é verdade, mas somente após sair da autarquia, onde era concursado há quase cinco anos. E fazia-o somente até pouco antes da meia-noite, já que precisaria se recompor para o dia seguinte. Se fosse sexta-feira ou sábado, a bebedeira poderia se prolongar um pouco mais. 

          Pois bem, o que se deu foi justamente numa sexta-feira, que se estendeu no sábado. Gabriel, que saíra com colegas do trabalho, parece que bebeu além da conta. E, na hora de retornar, responsável que era, acionou um Uber pelo aplicativo do celular. 

          Quase meia hora após, lá estava o Gabriel debaixo do seu prédio. No entanto, não se sabe por que carga d´água, o homem resolveu dar um passeio pela quadra. Caminhou, caminhou, caminhou até que, do nada, avistou um enorme animal de pelos avermelhados. Que belo cachorro ruivo, pensou o sujeito. Quis porque quis levá-lo para seu apartamento, mas eis que o danado, arisco que nem ele só, desapareceu na escuridão.

          Gabriel até pensou em correr atrás do cachorro, mas, precavido que era, teve a certeza de que, não tardaria, iria se estabacar no chão. Melhor retornar para o lar, doce lar, antes que algo de pior lhe acontecesse. E foi o que fez. 

          Passou pelo porteiro da noite e o cumprimentou. Mal abriu a porta, tombou no sofá e adormeceu, como se precisasse descansar por uma eternidade, que durou até por volta das 14h, quando despertou e sentiu aquela fome. Olhou na geladeira e nada lhe agradou. Resolveu sair para almoçar em algum lugar.

          Assim que passou pelo porteiro do dia, Gabriel puxou conversa.

          — Seu Edvaldo, o senhor sabe de quem é um cachorro enorme, que parece estar abandonado?

        — Cachorro?

        — Sim, um de pelagem vermelha.

        — Hum...

        — Ele é tão lindo, que pensei em adotá-lo.

        — Seu Gabriel, acho que sei de qual cachorro o senhor tá falando.

        — O senhor viu também?

        — Vi, sim. Mas acho que não vai dar pro senhor adotar esse cachorro, não.

        — Ué, por quê? Ele tem dono?

        — Não, seu Gabriel. É que é um lobo-guará que está andando por aqui. Deu até na televisão. 

        — Caramba, seu Edvaldo, o que o sono não faz com a gente, né?

        — Pois é, seu Gabriel, o sono é terrível.

     Gabriel se despediu e caminhou até o restaurante para saciar a barriga, que clamava por algo substancial. Quanto ao porteiro, assim que o morador virou as costas, balançou a cabeça e pensou: "Sono? Que sono o quê! Por acaso porre mudou de nome?"

  • Nota de esclarecimento: O conto "Gabriel, a bebida e o cachorro ruivo" foi publicado por Notibras no dia 24/5/2025.
  • https://www.notibras.com/site/gabriel-30-anos-chega-de-madrugada-e-pensa-em-adotar-cachorro-ruivo/

sexta-feira, 23 de maio de 2025

Um dia no metrô

    

Hoje resolvi dar folga ao estresse e deixei o carro na garagem. O trânsito infernal de Águas Claras até o Plano Piloto vai ficar para os demais dias da semana, pois fui trabalhar de metrô. Aliás, deveria fazer isso mais vezes, já que, apesar do desconforto de ir em pé, me divirto com histórias, no mínimo, curiosas. 

          Dois rapazes conversavam ao meu lado. Um deles, muito mais falante do que o outro, arregalava os olhos antes de desandar a falar.

          — Véi, tive um pesadelo lazarento de madrugada.

          — Sério?

          — Sério!

          Enquanto meu pensamento tentava concatenar as ideias, eis que o contador de causos avançou sem a menor cerimônia.

          — Acordei no maior susto! A TV ligou sozinha.

          — O quê?

          — Não tô te falando, véi? A TV ligou sozinha! Acredita nisso?

          Diante de tamanha ênfase, já não era apenas eu que queria saber o desfecho da trama, outros ouvidos apontaram para a dupla. Uma senhora em frente olhou para mim e esticou o lábio inferior, como querendo dizer "Nossa! Que coisa, né?"

          — E daí, véi? O que rolou depois?

          — TV ligada, eu, me tremendo todo, fui procurar o controle, mas...

          — Mas?

          — Véi, tu não vai acreditar!

          A senhora e eu, a essa altura, já éramos como dois velhos conhecidos, tamanha a troca de olhares. Sem contar um senhor logo atrás de mim, que me cutucou no ombro e, do nada, arregalou os olhos e esticou o lábio inferior, certamente querendo dizer "Meu amigo, que coisa, hein?"

          — Véi, procurei o controle, revirei tudo, mas nada. 

          — Sério?

          — Num tô te falando,véi?

          O zum-zum-zum dentro do vagão era para saber o final da história. Todo mundo se perguntando, até que todos esticaram as orelhas para tentar escutar a voz do jovem. Até eu, que deveria ter descido na estação anterior, preferi chegar atrasado ao trabalho para não perder o epílogo.

          — E você não sabe qual foi a maior.

          — E qual foi?

          — Sabe onde o controle estava?

          — Num faço a menor ideia, véi.

          — Dentro da geladeira. 

          — Da geladeira, véi?

          — Da geladeira, véi! Dentro do pote de sorvete.

          — Do pote de sorvete?

          — Pois é! Sorvete de morango. Você sabe, né?

          — O quê?

          — Pô! Eu adoro sorvete de morango!

          Não sei se foi por conta da surpresa ou, então, para ser simpático com a senhora e o senhor, arregalei os olhos e estiquei o lábio inferior: "Nossa, que coisa, gente!"

  • Nota de esclarecimento: O conto "Um dia no metrô" foi publicado por Notibras no dia 23/5/2025.
  • https://www.notibras.com/site/homem-vai-trabalhar-de-metro-e-se-depara-com-caso-de-assombracao/