quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

Santana e o retrato falado

             Santana, como de costume, chegou atrasado à delegacia. Mas nada além do que as quase duas horas de costume. Afinal, ele, segundo as suas próprias palavras, já havia feito muito para a polícia nos seus tantos e tantos anos de casa. Chegou, arrastou seu corpanzil através da portinhola que separava o público dos grandes defensores da ordem pública e, sem causar espanto nos colegas no balcão, foi direto para a cozinha tomar algumas xícaras de café. Obviamente, o Santana merecia essa pausa antes mesmo de começar a fatigante labuta.

          Quase uma hora após, lá vem aquele paquiderme se sentar na cadeira ao canto, tentando não ser visto pelas pessoas que aguardavam o atendimento. No entanto, para o seu azar, uma mulher de seus lá trinta e poucos anos se sentou justamente no assento do outro lado da bancada. 

          — Quero registrar um boletim!

          — O que houve? - o Santana, com o mau humor costumeiro, questionou a mulher.

          — Fui estuprada!

          Pois bem, o Santana, até mesmo o Santana, tomou um susto e arregalou aqueles olhos, que ficaram ainda mais esbugalhados.

          — O quê? Onde foi isso?

          — No Rio de Janeiro!

          — E por que você não registrou isso lá?

          — Porque estão me perseguindo!

          O Santana, talvez resgatando aquele famoso tino policial, que na verdade nunca teve, começou a imaginar que a tal mulher não fosse muito boa da cabeça.

          — E isso foi onde no Rio exatamente?

          — Em Copacabana!

          — Onde em Copacabana?

          — Na praia!

          — Quando foi?

          — Domingo passado!

          — Domingo? Qual o horário?

          — Dez horas da manhã!

          — Estava fazendo sol?

          — Muito!

          — Provavelmente a praia deveria estar cheia de gente.

          — Lotada!

          O Santana já estava quase erguendo o seu enorme corpo para ir tomar mais algumas xícaras de café. Pretendia deixar aquela maluca ali mesmo falando sozinha. Mas, antes que ele o fizesse, ela disse algo que o deixou curioso.

          — Se quiser, posso fazer o retrato do estuprador!

          Ele ficou ali com aquela cara de espanto, como que curioso do desfecho da história.

          — Você pode me arrumar uma caneta e um papel? - perguntou a mulher.

          O Santana se virou para o colega ao lado e disse:

          — Me dá um papel e uma caneta aí.

          Já com os objetos à mão, a mulher desenhou toscamente um rosto, como aqueles que fazemos quando estamos aprendendo a desenhar ou, como a maioria de nós, continuamos a fazê-los simplesmente para demonstrar a nossa completa falta de talento.

Assim que olhou o que a mulher havia desenhado, o Santana apenas balançou a cabeça. Não havia mais nada a se fazer na delegacia naquele dia e, então, ele, utilizando a própria lógica, foi embora. Já que havia chegado mais tarde, tinha o direito de sair mais cedo.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Santana e o retrato falado" foi publicado por Notibras no dia 7/8/2024.
  • https://www.notibras.com/site/santana-deixa-dp-mais-cedo-apos-retrato-falado-hilario/

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