quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

Síndrome de Stephen

 

    Eram vizinhos, mas mal se falavam, uma coisa bastante comum nas grandes cidades. Já haviam subido e descido juntos no elevador várias vezes, esbarrado no supermercado da esquina, tomado café na padaria em frente. Nenhuma palavra. Até que, por essas coincidências esdrúxulas, inimagináveis, começaram a namorar, quase ao mesmo tempo, duas irmãs. Quero deixar claro que cada um passou a namorar uma das irmãs. Creio que ficou óbvio agora. 

    Por causa dessa situação inusitada, começaram a frequentar alguns ambientes onde já não podiam mais se ignorarem. Trocaram algumas singelas palavras durante almoços na casa da namorada, em encontros nos barzinhos de Copacabana. Mas não se bicavam! Um era nitidamente eleitor da esquerda; o outro, não sabia o que era, pois votava sempre na direita. Mas iam se aturando, até que estavam na casa das namoradas, onde decidiram assistir ao filme "Django livre".

    Lá estavam os dois com as respectivas namoradas, todos acomodados no imenso sofá em frente à telona, o rapaz da esquerda e a sua namorada, à esquerda; o outro casal, à direita. Na mesinha de centro, uma garrafa de dois litros de guaraná, uma bacia enorme de pipoca. O interruptor foi empurrado para baixo, o que fez com que a lâmpada da sala se apagasse. Apenas a luz da televisão. Quase um cinema! 

    As cenas da obra-prima galopavam a passos sangrentos, típicos do Tarantino. Até que surgiu o momento em que apareceram na tela Samuel L. Jackson, interpretando Stephen, um escravo do poderoso proprietário de terras Calvin Candle, vivido por Leonardo Di Caprio.  Outros donos de fazenda com seus homens escravizados já haviam sido visto até então, mas algo chamou a atenção do rapaz da esquerda: Stephen, interpretado pelo ótimo Samuel L. Jackson, defendia os interesses de Calvin, em detrimento dos outros escravos e dele mesmo. Ele agia como se não fosse escravo, não se enxergava como se fosse um. 

    _ Esse Stephen é representa boa parcela do povo, que não se vê como povo e vota no patrão. É o típico pobre de direita. Ele é o policial, que não se vê como povo e que defende os interesses dos que estão no poder. São os capachos que pensam que são os sapatos - disse o rapaz sentado à esquerda.

    _ Você é um comunista! _ retrucou o rapaz da direita.

  Essas palavras do eleitor da direita levou a uma gargalhada do rapaz da esquerda, que acabou deixando o rapaz da direita ainda mais nervoso. Ele não conseguiu raciocinar, fechou a cara, o rosto voltado para o chão, os punhos cerrados, sem coragem.

   O filme nem chegou ao fim. O clima ficou ruim, mas não houve violência, pois o rapaz da direita estava sozinho. Depois de alguns meses, as irmãs e os rapazes deixaram de namorar. Eles ainda são vizinhos. Não se falam mais. De vez em quando se encontram no elevador, se esbarram no supermercado e tomam café na mesma padaria, que fica em frente ao edifício onde moram.

  Esse pequeno interlúdio demonstra uma coisa que sempre pensei, isto é, muitos de nós não conseguimos nos enxergar como esquerda, apesar de que raros são os realmente de direita. Tirando os empresários (e falo empresários mesmo, ou seja, não os comerciantes, que não possuem poder algum), todos os outros, ou seja, todos nós, somos de esquerda. No entanto, há vários de nós que somos verdadeiros paga pau da direita, pois votam na direita. Esses possuem o que chamo da síndrome do Stephen. São escravos, sofrem as agruras da escravidão, mas continuam defendendo a escravidão. 

    Esses paga pau gostam de enaltecer a moralidade, as virtudes divinas, a família, a tradição, mas, na verdade, são aquilo que, há alguns anos, eram chamados os tais buchas de canhão. Eles vão contra até mesmo aos próprios interesses, já que são presas facilmente capturadas por esse discurso bobinho da valorização da meritocracia, quando, na verdade, nosso maior problema é estrutural, social, coletivo. Somos, sim, um país para poucos, somos racistas, somos machistas, somos homofóbicos, não gostamos de certos estrangeiros (venezuelanos, paraguaios, bolivianos...). 

    Eu até entendo as pessoas que votaram no Collor, nas eleições de 1989. Ele era um cara bonitão, jovem, desconhecido pela maioria, apesar de ser de uma família há décadas ligada à política, falava bem, era o tal caçador de marajás ou, como o Brizola o chamava, o caçador de maracujás. Tudo isso aconteceu em 1989, ou seja, mal havíamos saído da cruel Ditadura Militar. No entanto, não consigo entender, por mais que eu tente, as pessoas que votaram no Bozo. Este é feio, velho, burro, não sabe conjugar uma frase digna de se dar atenção, além de ser acompanhado por todos aqueles filhos, um mais tacanho que o outro. Gente, o que foi que nós deixamos acontecer?

  • Nota de esclarecimento: O conto "Síndrome de Stephen" foi publicado pelo Notibras no dia 01/09/2023. Por solicitação da redação do jornal, foram feitas alterações no texto, que a fim da história se passar no Distrito Federal, bem como foram suprimidas as considerações finais.
  • https://www.notibras.com/site/ideologia-mata-amor-e-afasta-os-concunhados/


    

13 comentários:

  1. Penso que, deixamos nos levar pela falta de consciência, conscientemente.

    ResponderExcluir
  2. Com certeza temos culpa, pois não dá para jogá-la totalmente no desconhecimento. Somos culpados, sim!!!

    ResponderExcluir
  3. Conheço um cara exatamente assim, defende patrões sempre, mas não é patrão, mal é um chefete, trabalhador terceirizado do governo federal e se diz social-democrata.
    Não consigo nem mais falar com o cara.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Pois é, Anísio! Infelizmente, todos estamos cercados de pessoas assim. Creio que é a necessidade de alguns de se travestirem de algo que não são para se sentirem patrões. Mas o que mais me dói é quando esse tipo é alguém que estimávamos ou, pior ainda, da própria família.

      Excluir
  4. Excelente análise. Conheço uma miríade de "Stephen" e não consigo sentir nada além de pena deles.

    ResponderExcluir
  5. Cristovam, acabei me afastando de muitas pessoas, que saíram do armário com seu fascismo enrustido. Que saudade do tempo em que o sinônimo de sair do armário era apenas para expor a sua sexualidade. Que volte o tempo em que o significado de sair do armário era apenas isso, que não diz respeito a quem quer que seja, mas apenas ao próprio expositor.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Pesadíssima!!! Mas quem sofre essa carga toda somos todos nós, menos os realmente que pertencem à direita.

      Excluir
  6. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderExcluir
  7. O grande problema é a falta de consciência de classe. O sujeito simplesmente não se enxerga como ele é de fato na pirâmide social

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Dário, essa falta de consciência tem que ser combatida, nem que seja aos poucos. O nosso país ainda carrega o estigma da escravidão, das pessoas que querem pertencer a um lugar que nunca chegarão. Não conseguimos enxergar o que somos, continuamos defendendo os interesses dos patrões. E conviver com esse tipo de gente está cada dia mais difícil.

      Excluir