quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

O menino e o pai

 

                   A bola, colada ao pé bom do menino, que estava certo de que conseguiria passar pelo pai. Ele gingou o corpo de um lado para o outro, deu um leve toque na bola, que passou rente ao lado direito do pai. O menino, com a agilidade de menino, tomou o mesmo rumo da bola, ciente de que conseguiria dar mais um olé, mas foi bruscamente interrompido por um leve, mas providencial, pontapé do pai. O menino foi com tudo nas areias de Copacabana. Cabeça, tronco e membros desabaram quase dolorosamente amortecidos pela areia. Imediatamente, ele gritou: “Falta!” O pai foi até a bola, a dominou com certa maestria, virou-se para o menino e disse: “O juiz não viu nada!”

            O Maracanã estava lotado, pelo menos era assim que o menino se lembrava. Vasco e Corinthians iriam jogar dali a uma hora ou mais. O pai puxava assunto com o menino, que estava maravilhado com aquela imensidão. “Sabia que eu assisti à final da Copa de 1950?”, “Ih, vi muito o Ademir!” O menino nem prestava atenção, não por falta de interesse, mas simplesmente era por causa do tudo novo para ele, que nem era Vasco, muito menos Corinthians. 

            Assim como a avó, gostava mesmo era do Botafogo. Tanto é que, ainda na entrada do grandioso estádio, o pai lhe havia comprado um boné do Glorioso, mas com a promessa de que ele teria que esconder muito bem dentro do short. “Se alguém vir isso, você vai apanhar da torcida”. E o medo tomou conta do menino por alguns instantes, até que ele soube guardar o objeto que lhe era tão precioso.

            A torcida do Vasco encantava o menino, que metia a mão dentro do short para se manter fiel ao Botafogo. “Vasco! Vasco! Vasco!” A torcida, ensurdecedora, não parava de cantar. O pai se virou para o menino e falou para ele também cantar, pois a torcida iria perceber que ele não era Vasco. O menino, temendo a desastrosa revelação, tentava acompanhar os gritos. “Mais alto!”, insistia o pai. “Vasco! Vasco! Vasco!”, o menino gritava de nervoso.

            Uma bandeira do Flamengo surgiu no meio da torcida. Em instantes, ela já havia sido queimada, e a multidão xingava o time da Gávea. “Tá vendo?”, perguntava o pai. “Esconde bem esse boné!”, insistia. O menino arregalava os olhos, sua mente imaginava as piores coisas, caso alguém descobrisse que ele não era Vasco. Tentando disfarçar, o menino voltava a gritar “Vasco!”, mesmo que o canto da torcida já fosse outro.

            Uma vaia monumental tomou conta do Maracanã. O pai apontou para o gramado, onde o time do Corinthians acabara de subir as escadarias do túnel. Os jogadores se dirigiram para o local onde se encontrava a pequena torcida do Timão, logo calada pela ensurdecedora vaia vascaína. Em seguida, surgiu a esquadra cruzmaltina, o que transformou as vaias em entusiasmados gritos de “Vasco! Vasco! Vasco!” “Olha lá o Dinamite!”, o pai, agora menino, apontava o craque para o menino. “Ele é melhor que o Ademir?”, o menino questionava. “O Roberto é bom, mas o Ademir era melhor”, o pai se prendeu às longínquas lembranças da infância.

            O jogo começou, as arquibancadas continuavam a balançar, o pai mantinha os olhos fixos no campo; o menino, nem tanto. Tudo lhe fascinava. Gol do Corinthians! Palhinha abriu o placar, o pai ficou murcho. A pequena torcida adversária fazia um barulho quase inaudível, pois os vascaínos continuavam gritando, ainda acreditando em mais uma virada. O menino olhou para o pai e falou: “O Vasco é melhor, ele vai virar!” O menino voltou a acompanhar a torcida: “Vasco! Vasco! Vasco!” A confiança do menino era tamanha, que ele não se espantou quando o Dinamite empatou a partida. O pai gritou como uma criança, pulou, xingou, sorriu com todos os dentes. Em seguida, o Dirceu faz o gol da virada, ainda no primeiro tempo. A alegria do pai contagiou o menino, que não tinha qualquer dúvida de que isso aconteceria.

            Como é fácil não ser um torcedor apaixonado! Não há angústias, não há irracionalidades. Como é prazeroso assistir a um jogo sem paixões clubísticas, poderia pensar o menino. Talvez a imensa torcida, que empurrava o Vasco para mais uma vitória, lhe desse a certeza da virada. O pai, atormentado pelo gol do Palhinha, não compartilhava tal pensamento até que o camisa 10 cruzmaltino empatou a peleja. Daí em diante, apesar de ainda temer por mais um gol corintiano, o pai, provavelmente, tenha se deixado levar pela euforia do menino, confirmada pelo tento do Dirceu. Vasco 2 x 1 Corinthians.

          Lá estavam o pai e o menino sentados na arquibancada, olhando a movimentação da torcida. Os dois comendo cachorro-quente, praticamente engolido sem sentir o gosto, tamanha a excitação vivida no primeiro tempo. De repente, um magrelo vestido com uma camisa do Botafogo surge no meio da torcida vascaína. Ao invés da agressividade ocorrida contra o flamenguista, houve risos. O menino ficou ainda mais receoso de que alguém pudesse descobrir o que ele escondia dentro do short. Ele já não temia levar uma surra da torcida vascaína, receber uma gargalhada em uníssono de todos ali presentes era muito pior. Que vergonha, ele pensou!

            O segundo tempo veio, o Dinamite marcou mais um e sacramentou a vitória vascaína. O menino prestou mais atenção ao jogo, o que lhe pareceu uma eternidade em relação ao primeiro tempo. Até o pai, vascaíno desde sempre, estava com os ânimos mais controlados. Não gritou nem pulou tanto como nos dois primeiros gols do Vasco, talvez ciente de que o destino do seu time naquela partida fosse mesmo vencer.

O juiz apitou pela última vez, o pai e o menino se levantaram. Estavam com fome, precisavam de mais um lanche. Caminharam quase que empurrados pela multidão, o menino não se recordaria muito bem desse momento. Tudo foi tão rápido, que eles já se viram comendo mais um cachorro-quente, agora com o gosto mais nítido. “Vamos!” O pai puxou o filho pelo pescoço e, então, caminharam entre os últimos torcedores, que ainda saíam do estádio. Chegaram ao ponto de ônibus e, mesmo que tenham ido em pé durante todo o trajeto até Copacabana, o menino apenas se lembrava da maresia, pois preferiram descer alguns pontos antes e irem a pé até a Anita Garibaldi.

           A agência do Banco do Brasil, localizada numa esquina muito movimentada em Copacabana, estava lotada. O menino, agora não tão menino, tentava atender aos pedidos dos clientes. Início de mês era assim mesmo, ainda mais em tempos de inflação galopante, quando ninguém queria perder dinheiro.

Entre as várias dezenas de pessoas, o menino mal pode acreditar que aquele ali era o homem que havia encantado seu pai. Tímido, mas determinado – ele não poderia perder essa oportunidade -, aproximou-se do senhor de pernas arqueadas e cabelos prateados, que logo percebeu o olhar fixo do menino. “Você é o culpado do meu pai ser Vasco!”, falou quase gritando. O homem ficou espantado, mas não pelas palavras do menino, mas sim porque esse menino, apesar de não tão menino, ainda era muito jovem para saber quem ele era. “Os velhos sempre me param para trocar uma palavra ou outra, mas ninguém tão jovem como você.” Ali estava, diante do menino, o grande Ademir Menezes, o Queixada, ídolo de infância do pai.

            O pai estava deitado no sofá aguardando o menino, que há muito deixara de ser menino. Este chegou com duas caixas quase idênticas e entregou uma para o pai, que a abriu com a curiosidade de um menino. Ele endireitou o corpo. “Ademir!!!”, o pai exclamou. Além do artilheiro da Copa de 1950, outros craques completavam o quase imbatível Expresso da Vitória de 1949: Barbosa, Augusto, Sampaio, Eli, Danilo... “Que timaço!” O menino observou o pai e concordou com a cabeça, sorriu, abriu a outra caixa, não se conteve e provocou o pai: “Mas vai ter que jogar muito para encarar o Botafogo do Nilton Santos e do Garrincha”.

            Desde sempre eles nunca gostaram de jogar botão em mesas. O campo era sempre no chão, onde jogavam sentados ou ajoelhados. O velho despertador foi colocado do lado de fora do gramado de cerâmica. Os 45 minutos de cada tempo viraram 15, já que o adiantar das horas e os joelhos do pai já não permitiam uma partida mais longa.

Ademir passou para Ipojucan, que tentou um passe mais aprofundado, mas foi interceptado pelo Enciclopédia, que lançou com perfeição para o Didi. Didi, craque até no botão, conseguiu dar um passe magistral para Garrincha, que cruzou para a área. Barbosa se antecipou e evitou uma cabeçada certeira do Amarildo.

O início de jogo foi muito tenso para os dois lados, que não queriam perder. Vários ataques, várias defesas. Não apenas o Barbosa teve que se esforçar para fechar o gol; o Manga fez alguns milagres por conta dos inúmeros ataques perigosos dos cruzmaltinos.

Quase no final do primeiro tempo, o Folha Seca acerta um petardo (a avó do menino adorava essa palavra), que vai direto no ângulo de Barbosa, que se esticou mais que uma borracha, mas não conseguiu evitar a abertura do placar: Botafogo 1 x 0 Vasco. O menino, eufórico; o pai, murcho como uma bola depois de um canhão do Riva.

            O segundo tempo começou e, antes mesmo do despertador dar cinco minutos, o Queixada, de falta quase do meio de campo, marca um golaço. O pai saltou como um menino; o menino observou incrédulo aquele botão artilheiro, o mesmo que levava a culpa do pai ser Vasco. “Esse Ademir joga muito mesmo!”, reconheceu o menino em pensamento.

A partida recomeçou ainda mais tensa, os erros de passes se intensificaram. Como é que o Zagalo errou esse cruzamento? Augusto, que chute torto foi esse? Até os craques mais craques sentiram esses momentos onde todos querem vencer. O despertador lembrou aos presentes que o tempo regulamentar havia acabado.

            Mais dois tempos de cinco minutos, o pai sugeriu. O menino concordou sem pestanejar, se bem que ele entendesse que o empate seria um resultado muito justo, tamanha a grandiosidade dos 22 cracaços que estavam em campo. O primeiro tempo da prorrogação começou e, quase sem muita pretensão, o Nilton Santos arriscou um chute de longa distância, que pegou o Barbosa desprevenido. Botafogo 2 x 1. Agora era a vez do menino gritar gol.

O pai, querendo reiniciar logo a partida, já pegou a bola no fundo do barbante e a colocou no centro do gramado. O menino ainda comemorava, quando o Ademir conseguiu chutar uma bola acima do Manga. Por sorte do menino, a bola explodiu no travessão e caiu no peito do Didi, que a amorteceu com carinho e a lançou para o Garrincha, que ficou diante de dois marcadores. Ele passou facilmente pela marcação, mas não cruzou para Amarildo, que estava bem marcado por Bellini.

O Anjo das Pernas Tortas prendeeu a bola por alguns preciosos minutos até que, de trivela, lançou para o Nilton Santos. O menino preferiu não arriscar levar mais um gol, ele sabia que o Botafogo sempre procurou jogar na retranca. Ele fechou todo o time, deixando apenas Garrincha na ponta direita e Amarildo na frente. Dessa forma, o menino conseguiu fazer o seu time terminar em vantagem nessa primeira etapa da prorrogação.

            O segundo e último tempo iniciou ainda mais tenso. O pai mandou praticamente todo o time para o ataque, mas o menino, talvez por milagre, conseguiu impedir que o Expresso da Vitória marcasse mais um gol. Ele fez cera, retardou a reposição da bola, planejou cada toque com a demora de um parto. O pai pediu para seus atletas arriscarem de qualquer distância, mas a maioria dos chutes saiu muito longe da meta alvinegra ou, então, encontrou as mãos firmes do Manga.

O relógio voltou a despertar, mas o pai diz que o juiz deu mais três minutos. O filho achou três minutos muito, mas é melhor não discutir com a decisão do juiz. Mais três minutos ainda mais nervosos. O tempo praticamente engatinhava, até que novamente o som apontou aquele que seria o final da partida. Todavia, novamente o juiz, segundo o pai, deu mais um minuto.

O menino ficou preocupado com a reação dos seus jogadores, principalmente do Nilton Santos e do Amarildo, que não costumam levar desaforo para casa. O Vasco ainda mais no ataque e, em um lance de pura categoria, Ademir deu um drible desconcertante no Rildo e chutou. A bola passa pelo Manga, mas encontra a trave e sai. O despertador avisa os presentes que a partida acabou. Acabou mesmo! O pai cumprimenta o filho e o chama para tomarem sorvete de uva.

       Não demorou muito para acontecer a revanche. Esse jogo realmente aconteceu na semana seguinte, quando os atletas já haviam descansado e treinado para a nova batalha. Mesmo campo, praticamente o mesmo horário, o mesmo relógio. Dessa vez, o menino estava mais tranquilo, pois sua esquadra (a sua avó também adorava essa palavra) havia saído vitoriosa. O pai, ao contrário, se encontrava ansioso como um menino. Não poderia perder novamente. Ah, isso não poderia mesmo acontecer! Aquele Botafogo, reconhecia, era um timaço. Mas o seu Vascão não ficava atrás. E ainda tinha o Ademir! “Ah, o Ademir é o Ademir!”, pensava.

      O novo jogo começou, o Botafogo jogava muito atrás. O Vasco sempre no ataque, apesar de, de vez em quando, sofrer um contra-ataque perigoso. Mesmo assim, o placar permanecia inerte. Os 15 minutos voaram para o pai. O menino, talvez, estivesse alheio ao tempo.

Mal o primeiro tempo terminou, o pai já repôs seus craques em posição para o recomeço da partida. O menino se levantou um pouco, espreguiçou o corpo e fez o mesmo com seus jogadores. O segundo tempo iniciou e parecia que teria o mesmo destino do primeiro, até que o Ademir – ele mesmo – deu um chute e acertou o cantinho do Manga. Indefensável! O pai gritou, correu em volta do gramado, abraçou o Ademir. “Craque demais!!!”, exclamou.

O menino apenas observou o pai, talvez até tenha sorrido por causa da esfuziante demonstração de satisfação do pai. O jogo recomeçou, mas sem prorrogação. O filho não reclamou com o juiz. “O Vasco mereceu vencer! Ainda mais por conta desse tal Ademir!”, pensou. Em seguida, o menino e o pai foram tomar sorvete. Aliás, sorvete de uva.

2 comentários:

  1. Preciso de tempo para aproveitar, à altura, essas preciosidades sobre nosso amado Alfredo. Maravilha,,,amei,,, mas, é muita saudade!

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