sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Mário Lago, a genialidade de um oceano

 

Foto de Cristina Rufatto


    Mário Lago foi um errante romântico, perambulou com elegância por distintas áreas, cheio de perspicácia, tantas vezes com tamanha discrição, que muitos de nós nem desconfiamos que ele compôs músicas que estão no imaginário popular. Foi radialista também, justamente num tempo em que o rádio era o grande meio de comunicação. Ser do rádio era como atingir em cheio a mente e o coração do ouvinte, que colava a orelha mais aguçada para não perder nenhuma palavra.

    O Mário era torcedor do Fluminense. Não sei se já falei como me refiro aos tricolores. Pois bem, há muito tempo conto a mesma piadinha, talvez sem graça. Mas vamos lá! Quando você pergunta qual é o seu time para um botafoguense, um vascaíno ou um flamenguista, as respostas são, respectivamente: "Sou Fogão!!!", "Sou Vascão!!!", "Sou Mengão!!!" Todavia, o tricolor responderá: "Ah, eu gosto do Fluminense". Não há exclamação, pois até nisso o torcedor do tricolor carioca se distingue dos demais, pela elegância, pela discrição, pelo modo Mário Lago de ser. Ele não precisa gritar aos quatro cantos para tentar convencer quem quer que seja da sua paixão pelo clube das Laranjeiras. Ele simplesmente é. Por isso, creio que o Mário Lago se sentiria deslocado do resto da torcida, caso optasse por qualquer um dos outros três grandes cariocas.

    Essa aparente falta de euforia nem de longe significa ausência de amor. Ah, amor é o que o Mário sempre demonstrou pelo que fazia, seja na música, seja no rádio, seja no teatro, seja na televisão, seja em qualquer momento da sua vida. Foi preso sete vezes! Sete! Preso político! "Ah, mas era um criminoso, pois estava descumprindo a lei", alguns poderiam supor. Pois é, estava mesmo! Todavia, isso demonstra mais uma faceta do Mário: a coragem! Sim, a coragem! Mas não aquela coragem que aparentemente o covarde ganha quando está entre vários amigos contra um só adversário. Não! A coragem do Mário era diferente, pois ele lutava contra ditaduras. Foi assim contra o Estado Novo, foi assim contra a Ditadura Militar. 

    Se o Mário fosse jogador de futebol, com certeza seria o Didi. Sim, o Didi de 1958. Quando a Suécia abriu o placar na final, o Didi correu até o gol, pegou a bola, a colocou debaixo do braço e foi caminhando tranquilamente para o meio de campo, enquanto outros jogadores, entre os quais o Zagallo, reclamavam para que ele corresse, pois os suecos estavam em vantagem. Inabalável, o Didi continuou impávido. O Mário e o Didi talvez fossem gêmeos de espírito, ambos serenos, ambos destemidos sem precisar levantar a voz. Nada dessas bobagens de gritos de guerra!  Pois é, nesses tempos sombrios em que o fascismo surgiu com força, o Brasil, mais do que nunca, precisa de mais Mários Lagos.

  • Nota de esclarecimento: "Mário Lago, a genialidade de um oceano" foi publicado pelo Notibras no dia 20/12/2022.
  • https://www.notibras.com/site/brasil-precisa-de-novo-mario-lago-contra-direita/


quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

Síndrome de Stephen

 

    Eram vizinhos, mas mal se falavam, uma coisa bastante comum nas grandes cidades. Já haviam subido e descido juntos no elevador várias vezes, esbarrado no supermercado da esquina, tomado café na padaria em frente. Nenhuma palavra. Até que, por essas coincidências esdrúxulas, inimagináveis, começaram a namorar, quase ao mesmo tempo, duas irmãs. Quero deixar claro que cada um passou a namorar uma das irmãs. Creio que ficou óbvio agora. 

    Por causa dessa situação inusitada, começaram a frequentar alguns ambientes onde já não podiam mais se ignorarem. Trocaram algumas singelas palavras durante almoços na casa da namorada, em encontros nos barzinhos de Copacabana. Mas não se bicavam! Um era nitidamente eleitor da esquerda; o outro, não sabia o que era, pois votava sempre na direita. Mas iam se aturando, até que estavam na casa das namoradas, onde decidiram assistir ao filme "Django livre".

    Lá estavam os dois com as respectivas namoradas, todos acomodados no imenso sofá em frente à telona, o rapaz da esquerda e a sua namorada, à esquerda; o outro casal, à direita. Na mesinha de centro, uma garrafa de dois litros de guaraná, uma bacia enorme de pipoca. O interruptor foi empurrado para baixo, o que fez com que a lâmpada da sala se apagasse. Apenas a luz da televisão. Quase um cinema! 

    As cenas da obra-prima galopavam a passos sangrentos, típicos do Tarantino. Até que surgiu o momento em que apareceram na tela Samuel L. Jackson, interpretando Stephen, um escravo do poderoso proprietário de terras Calvin Candle, vivido por Leonardo Di Caprio.  Outros donos de fazenda com seus homens escravizados já haviam sido visto até então, mas algo chamou a atenção do rapaz da esquerda: Stephen, interpretado pelo ótimo Samuel L. Jackson, defendia os interesses de Calvin, em detrimento dos outros escravos e dele mesmo. Ele agia como se não fosse escravo, não se enxergava como se fosse um. 

    _ Esse Stephen é representa boa parcela do povo, que não se vê como povo e vota no patrão. É o típico pobre de direita. Ele é o policial, que não se vê como povo e que defende os interesses dos que estão no poder. São os capachos que pensam que são os sapatos - disse o rapaz sentado à esquerda.

    _ Você é um comunista! _ retrucou o rapaz da direita.

  Essas palavras do eleitor da direita levou a uma gargalhada do rapaz da esquerda, que acabou deixando o rapaz da direita ainda mais nervoso. Ele não conseguiu raciocinar, fechou a cara, o rosto voltado para o chão, os punhos cerrados, sem coragem.

   O filme nem chegou ao fim. O clima ficou ruim, mas não houve violência, pois o rapaz da direita estava sozinho. Depois de alguns meses, as irmãs e os rapazes deixaram de namorar. Eles ainda são vizinhos. Não se falam mais. De vez em quando se encontram no elevador, se esbarram no supermercado e tomam café na mesma padaria, que fica em frente ao edifício onde moram.

  Esse pequeno interlúdio demonstra uma coisa que sempre pensei, isto é, muitos de nós não conseguimos nos enxergar como esquerda, apesar de que raros são os realmente de direita. Tirando os empresários (e falo empresários mesmo, ou seja, não os comerciantes, que não possuem poder algum), todos os outros, ou seja, todos nós, somos de esquerda. No entanto, há vários de nós que somos verdadeiros paga pau da direita, pois votam na direita. Esses possuem o que chamo da síndrome do Stephen. São escravos, sofrem as agruras da escravidão, mas continuam defendendo a escravidão. 

    Esses paga pau gostam de enaltecer a moralidade, as virtudes divinas, a família, a tradição, mas, na verdade, são aquilo que, há alguns anos, eram chamados os tais buchas de canhão. Eles vão contra até mesmo aos próprios interesses, já que são presas facilmente capturadas por esse discurso bobinho da valorização da meritocracia, quando, na verdade, nosso maior problema é estrutural, social, coletivo. Somos, sim, um país para poucos, somos racistas, somos machistas, somos homofóbicos, não gostamos de certos estrangeiros (venezuelanos, paraguaios, bolivianos...). 

    Eu até entendo as pessoas que votaram no Collor, nas eleições de 1989. Ele era um cara bonitão, jovem, desconhecido pela maioria, apesar de ser de uma família há décadas ligada à política, falava bem, era o tal caçador de marajás ou, como o Brizola o chamava, o caçador de maracujás. Tudo isso aconteceu em 1989, ou seja, mal havíamos saído da cruel Ditadura Militar. No entanto, não consigo entender, por mais que eu tente, as pessoas que votaram no Bozo. Este é feio, velho, burro, não sabe conjugar uma frase digna de se dar atenção, além de ser acompanhado por todos aqueles filhos, um mais tacanho que o outro. Gente, o que foi que nós deixamos acontecer?

  • Nota de esclarecimento: O conto "Síndrome de Stephen" foi publicado pelo Notibras no dia 1º/9/2023. Por solicitação da redação do jornal, foram feitas alterações no texto, que a fim da história se passar no Distrito Federal, bem como foram suprimidas as considerações finais.
  • https://www.notibras.com/site/ideologia-mata-amor-e-afasta-os-concunhados/


    

quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Dona Irene e o artista argentino

 

    A minha esposa - a famosa Dona Irene - e eu estávamos perambulando pela Recoleta, famoso bairro de Buenos Aires. Ela e eu adoramos bater perna, principalmente quando estamos em uma linda cidade. E a capital argentina é, aos meus olhos, deslumbrante! 

    Lá pelas tantas, ela decide entrar numa galeria apenas para aumentar o número de passadas ou, talvez, achar algo para comprar. Passamos por uma vitrine de casacos de couro, onde ela deu aquela olhadela sem demonstrar muito interesse. Seguimos até o final da galeria, mas, quando estávamos retornando para voltarmos à calçada e continuarmos a nossa perambulação pela capital portenha, ela fincou os pés novamente em frente à vitrine. 

    Ela olhava, olhava, mas nada parecia agradá-la. De vez em quando, ela cismava em observar um determinado modelo, mas, logo em seguida, seus olhos se desviavam e sua boca repuxava para o lado, como se dissesse: "Não gostei!" Até que apareceu o Jayme, dono do estabelecimento. Ele foi muito atencioso conosco. Aliás, não sei por que muitos brasileiros não gostam dos argentinos. Na verdade, sempre fui muito bem recebido por lá. 

    Uma vez fui com a minha filha e, infelizmente, a única pessoa que não foi muito cordial conosco era justamente uma brasileira. Não que nós brasileiros sejamos assim! Não mesmo! Tirando aquela pequena parte que mora em Curitiba, nós somos, também, muito receptivos! Pequena parte é modo educado de se falar. Mas não quero entrar em atrito com aquela cidade, onde passei por maus bocados. Outra hora eu conto.

    Voltando aos tais casacos, o Jayme perguntou para a minha esposa se ela havia gostado de algum. Ela respondeu que ficou interessada em um deles, mas a cor não lhe agradava. Então, ele perguntou qual a cor que ela gostava, no que ela apontou para um outro casaco também na vitrine. O cara disse de pronto: "Amanhã vai ficar pronto!" Ela quis saber como aquilo seria possível, e ele respondeu que também era o dono da confecção e ela poderia passar no outro dia, que lá estaria o casaco do jeitinho que a minha esposa desejava. 

    Os dois se deram tão bem, que acabaram engatando uma conversa. Ela fala muito bem espanhol, eu entendo uma palavrinha aqui, outra ali. Ler é até relativamente fácil, mas quando as palavras são expulsas pelos lábios, eu me perco quase que por completo. Contudo, eu me recordo dela falando que era apaixonada por dois homens: por mim e pelo Ricardo Darín. Na verdade, ele era o protagonista da maioria dos filmes que assistíamos na época. 

    Saímos da loja, fomos dar mais uma volta e, aí, começamos a ver se havia algum filme do Darín passando. Não havia! Mas algo melhor aconteceu. Ele estava em cartaz com uma peça de teatro chamada "Escenas de la vida conyugal" ao lado da também maravilhosa Érica Rivas. 

    Não tivemos qualquer pontinha de dúvida e compramos os ingressos para aquela mesma noite. Íamos ver de perto o outro amor da minha esposa. Na hora eu nem me importei de não entender muito bem o idioma falado na maioria dos países americanos. Passamos o resto do dia perambulando por Buenos Aires e, no final da tarde, voltamos para o hotel, que ficava bem perto do teatro. 

    Estávamos ansiosos, com aquele frio na barriga. Tomamos banho, nos arrumamos e fomos, quase saltitantes e rindo, para a porta do teatro. Fomos praticamente os primeiros a entrar. Nossos assentos ficavam bem em frente ao palco, mas pouco elevado. Não me lembro exatamente quanto tempo ficamos lá aguardando o começo da peça, mas sei que todas as cadeiras logo ficaram ocupadas. 

    Quando a cortina se abriu, a minha esposa apertou forte a minha mão esquerda. Ela estava muito emocionada em ver de perto aquele ator tão fantástico. Aliás, ela e eu nos referimos ao Darín como a Fernanda Montenegro dos argentinos. 

    A peça foi maravilhosa, muito engraçada. A minha esposa, no início, ficou traduzindo as falas dos artistas, mas falei para ela curti a peça e não se preocupar comigo. Não sei o que aconteceu, mas também comecei a entender muitas coisas do que o Darín e a Érica falavam. Provavelmente, tenha sido pela ênfase com que eles pronunciavam cada palavra. A peça foi muito divertida mesmo! Ficamos satisfeitíssimos com esse pequeno contato com o Ricardo Darín ou, como a minha mulher e eu o chamamos, Bombita, por causa do filme "Relatos selvagens".

    Saímos do teatro, a Dona Irene não queria ir embora e ficamos ali por perto. Então, eu falei que provavelmente o nosso ator preferido deveria sair por uma porta ao lado do teatro. Havia uma pequena multidão ali conosco. Não tardou e lá surgiu o Bombita. 

    A minha mulher quase teve um treco de tanta emoção, mas se conteve. Ele conversou com algumas pessoas que se aproximaram dele. Ela e eu chegamos mais perto, mas mantivemos certa distância, pois não gostamos desse lance de atormentar os famosos. 

    Passei boa parte da minha vida morando em Copacabana e Ipanema, onde você sempre acaba esbarrando com um jogador de futebol ou artista, mas sempre me mantive distante. Mas confesso que com o Bombita tive certa coragem e fui arrastando as minhas pernas, ainda mais porque a Dona Irene me puxava pelo braço. 

    Depois de conversar com alguns fãs, o famoso astro portenho nos observou. A minha amada lhe perguntou se ela poderia se aproximar. Ele abriu um sorriso e disse que sim. A Dona Irene foi logo falando que nós havíamos vindo do Brasil apenas para vê-lo. 

    Os dois trocaram algumas palavras em espanhol, eu fiquei ali observando. Ele apertou a minha mão, e eu lhe disse que ele era o maior ator do mundo. Ele agradeceu timidamente e, percebendo que eu não falava castelhano, começou a se comunicar em um português muito nítido. O Bombita fala a nossa língua perfeitamente! Tirei algumas fotos da minha mulher com o Darín. Não quisemos mais tomar o tempo do carismático e atencioso ator e nos despedimos. Ele atendeu outros fãs, enquanto voltamos pro hotel nos beliscando para termos certeza de que não estávamos sonhando.

    Chegou o dia seguinte, batemos mais perna por essa metrópole que tanto amamos e, no horário combinado, fomos buscar o casaco de couro de cor vinho da minha esposa. Obviamente, ela perguntou para o Jayme adivinhar quem a gente havia conhecido na noite anterior. Mas antes que ele tentasse acertar, ela mostrou as suas fotos com o Bombita. "Você conseguiu encontrar o seu segundo amor!!!", ele disse. Depois nos despedimos do Jayme e voltamos pro nosso quarto. Essa foi uma das viagens mais legais que tivemos! E até hoje assistimos aos filmes do Ricardo Darín, que, para a gente, é a Fernanda Montenegro da Argentina. 


Dona Irene, Jayme e eu
  • Nota de esclarecimento: A crônica "Dona Irene e o artista argentino" foi publicada pelo Notibras no dia 9/6/2023.
  • https://www.notibras.com/site/dona-irene-quem-diria-conheceu-seu-segundo-amor/?

terça-feira, 28 de dezembro de 2021

Don Diego, um rei

 


    Já falei aqui que uma vez a minha esposa me perguntou qual havia sido o jogador que mais gostei, respondi que foi o inesquecível Mendonça, do Botafogo. Por mais que eu ainda estime o Mendonça, muito além do que qualquer outro, não há como não reconhecer que o Maradona foi o maior dos craques que eu vi. O Diego, para muitos, especialmente os argentinos, é o maior jogador de futebol da história. E não vou ser eu a colocar lenha na fogueira para dizer que o Pelé foi melhor. Pode ter sido, pois também é um dos grandes gênios dos gramados. No entanto, até mesmo o rei do futebol é contestado por aqui, pois não são poucos os que afirmam que o Garrincha foi muito melhor. 

    Se o Maradona merece ou não o título de rei do futebol, não posso afirmar. Mas sei que ele, assim como Napoleão, tomou a coroa e se coroou! Ali mesmo ele poderia ter repetido as palavras do Muhammad Ali, na época ainda Cassius Clay, logo após derrotar o praticamente imbatível Sonny Liston e conquistar seu primeiro título de campeão mundial dos pesos pesados: "Eu sou o maior!!!", "Eu sou o mais bonito!!!" Provavelmente, até aqueles que discordassem não teriam voz naqueles tempos em que o gênio argentino bailava pelos campos mundo afora. Don Diego era o maior!!! Don Diego era mesmo o mais bonito!!!

    Na realidade, nem sei como é que as pessoas ou os ditos especialistas fazem esses cálculos de quem foi o maior de todos os tempos. Como avaliar isso? Pelas conquistas? Se fôssemos apenas levar isso em conta, o Pelé seria mesmo o rei do futebol. No entanto, por mais genial que ele tenha sido, e realmente o foi, não há como negar que ele foi um privilegiado também em relação às verdadeiras lendas que o acompanharam: Pepe, Coutinho, Zito, Garrincha, Nilton Santos, Didi, Tostão, Rivelino, Carlos Alberto Torres (o Capita), Clodoaldo... A lista é imensa! Tente, você, buscar os craques, realmente craques, que jogaram com o Maradona. Tentei puxar pela lembrança e consegui apontar apenas um grande craque: Careca. Sim, o Careca ou, então, Antônio, como o próprio Maradona o chamava. Não se pode contestar as qualidades técnicas do Careca, que entrou para os anais futebolísticos como um dos grandes. No entanto, provavelmente ele foi o melhor jogador de futebol que dividiu as mesmas cores com o Dieguito. Há, portanto, um óbvio abismo entre os companheiros do craque argentino com o dito rei do futebol.

    Não estou aqui para puxar sardinha para um ou outro jogador. Todavia, creio que é um disparate não reconhecer a genialidade desse argentino contestador, que não abaixava a cabeça nem para os dirigentes, que sempre foi dionisíaco, aprontava mil e um dentro e fora das quatro linhas. Lembro que ele entrava em campo e fazia aquelas embaixadinhas incríveis na frente de milhares de torcedores, a bola jogada ao céu pelo ombro direito, depois pelo esquerdo. Eu sempre soube fazer embaixadinhas, digo até que tenho certa habilidade com a bola, bem acima da maioria. No entanto, eu faço embaixadinhas e alguns malabarismos no aconchego do meu jardim, longe de olhares curiosos. O Maradona dava uma amostra do que sabia logo de cara, assim que pisava no gramado. Assim, ele já avisava a todos presentes: "Eu sou o maior!!!" "Eu sou o mais bonito!!!" E ai daquele que ousasse duvidar.

Gil, o escrivão de polícia

 


    Não sei se essas coisas realmente aconteceram, pois foi um amigo de um amigo meu que me contou. Seja como for, creio que vale a pena escrever sobre isso. Sei que o nosso personagem desta história era escrivão de polícia. Não sei ao certo qual polícia especificamente, mas o seu nome era Gil. Segundo me contaram ou, então, que eu me lembro, o Gil vivia situações engraçadas ou, ao menos, curiosas.

    Uma delas era sobre a mãe de um rapaz que havia sido preso por roubo. Segundo a defesa, ele não agia de maneira consciente, pois era dependente químico. A mãe desse assaltante foi arrolada como testemunha durante o inquérito policial e, por isso, acabou sendo ouvida pelo Gil. Conversa vai, conversa vem, o Gil teria dito: "Ah, ele é usuário de drogas, né?" A mãe do rapaz prontamente o teria retrucado: "Não, ele não usa drogas. Ele só fuma maconha e cheira cocaína". Dizem, não posso afirmar, que o Gil teria dado um sorriso de canto de boca e pensado que mãe é mãe. 

    Outra situação, ainda conforme me contaram, teria ocorrido durante a conversa entre o Gil e uma vítima de Lei Maria da Penha, que queria desistir de prosseguir com as investigações, já que teria feito as pazes com o marido. Enquanto o Gil a escutava, um engraçadinho na sala ao lado teria ouvido as palavras da mulher e dito: "Jura mesmo? Nossa, isso nunca aconteceu!" A mulher, talvez não percebendo a ironia do outro policial, pareceu feliz por, talvez, dar uma nova chance ao amado. Para falar a verdade, esse caso nem acho engraçado, já que fico aflito em saber que várias mulheres são vítimas desses crimes. 

    Já esse outro momento é mais engraçado. Deixei-o por último para terminar esse texto com um gosto mais adocicado na boca. Pois bem, lá estava o Gil ouvindo um rapaz, não mais que vinte e poucos anos, que havia sido indiciado por roubo. Esse suspeito era conhecido como Lesminha. O Gil, curioso como ele só, não resistiu e lhe fez a seguinte pergunta: "Senhor Cristiano, vou chamá-lo de senhor Cristiano, pois é o nome do senhor. No entanto, o senhor poderia me falar por que as pessoas o chamam de Lesminha?" Dizem, não posso afirmar, que o Lesminha, ou melhor, o senhor Cristiano, que estava sentado em uma cadeira em frente ao Gil, deu uma esticada no corpo e todas as vértebras do seu corpo estalaram. Talvez seja um exagero do meu amigo que me contou essa história. Mas voltando à história, o senhor Cristiano, logo após dar aquela aprumada no corpo, teria respondido com uma cara meio envergonhada: "É que desde menino eu sempre fui o último nas corridas lá na rua".

     

Leivinha, o craque

 

    A minha esposa está aqui ao meu lado me falando que tenho que escrever sobre o Leivinha, antigo jogador do Palmeiras. Até falei pra ela que eu também tinha o Leivinha nos meus jogos de botão. Tive mesmo, foi presente do meu pai, que sempre foi apaixonado por futebol. E, como já falei por aqui, ele era Vasco. 

    Mas vamos voltar ao Leivinha, antigo ídolo do time da minha mulher. Aliás, ela tem um amigo muito próximo que conhece o Leivinha, ou seja, ela é quase amiga do Leivinha, mesmo que não o conheça pessoalmente. Na verdade, isso até a deixa ainda mais eufórica com o fato de ser palmeirense. "SABIA QUE EU quase CONHEÇO O LEIVINHA?", essa frase poderia ser dita por ela. Mas não tenho certeza de que ela chegaria a tanto.

    Outra coisa que sei do Leivinha é que ele começou a jogar futebol no Linense, time de um colega de trabalho. Pois é, acredite ou não, eu conheço um torcedor do Elefante! Ele se chama Paulo Francisco e, assim como a minha esposa, é desses torcedores bem apaixonados. Que legal esse lance do Leivinha ter iniciado a sua fantástica carreira no Linense! 

    Esse craque destro, que batia com as duas com fantástica destreza, fez sucesso por onde passou, especialmente no Palmeiras. Mas o cara não era só bom de pernas, mas de cabeça também. Não sei exatamente quantos gols ele fez usando a parte recoberta por seus longos cabelos loiros, mas foram muitos. Ah, isso foi mesmo! 

    Pois bem, o time de botão do Palmeiras do Ademir e do Leivinha enfrentaram muito o meu Botafogo. Eu jogava até sozinho quando não tinha ninguém. Obviamente, minhas mãos tentavam fazer com que os botões desses craques chutassem a bola para fora. Mas os dois, craques até mesmo no formato de botão, desafiavam meu desejo de só fazer o Glorioso vencer. 

    O Ademir cruzava para o Leivinha, que, certeiro como as flechas do Robin Hood, conseguia balançar o gol do Manga. Sem chance! O Palmeiras fazia 1 x 0 no meu Fogão. E, antes mesmo que eu me desse conta, lá estava esse tal Leivinha arrancando depois de um lançamento do Ademir, invadindo a área e chutando rasteirinho no canto. Um calafrio tomava meu corpo, minha vontade era de jogar aqueles dois botões pela janela. Que raiva!!! Que desespero!

     Quase final do segundo tempo, no placar o Verdão continuava em vantagem. Eu tinha que recorrer ao homem da mala para convencer o juiz a dar uma forcinha para o Botafogo. Na verdade, o Luiz Pereira havia tomado limpamente a bola do Amarildo, mas este se lançou ao chão tão plasticamente, que o juiz não teve dúvida. Marcou pênalti. O Mendonça (já falei certa vez que o meu camisa 8 era ele, apesar dos geniais Didi e Gerson), diminuiu. O Leão nem viu a cor da bola. Palmeiras 2 x 1 Botafogo.

    O tempo regulamentar havia terminado. No entanto, lá estava o juiz, que havia sido convencido pelo homem da mala a não deixar o meu Botafogo perder, perder pra ninguém. O homem de preto estava determinado a cumprir o acordo. E foi novamente o Luiz Pereira, com sua classe costumeira, a dar um carrinho limpo no Amarildo. Novo tombo. Mais um pênalti marcado, agora nos acréscimos. Lá foi o Mendonça e empatou a peleja. Ufa! Melhor o juiz terminar logo o jogo, antes que esse Leivinha apronte mais uma! E foi o que aconteceu. 

    A minha esposa está aqui falando para eu escrever mais sobre o Leivinha. Sei que ele merece, pois era mesmo um cracaço! No entanto, meu coração alvinegro está em frangalhos, pois não é fácil recordar as jogadas e os gols do Leivinha, ainda mais porque ele jogava no outro time. Então, vou parar por aqui mesmo, apesar dela estar ao meu lado me fitando com cara de desaprovação.

  • Nota de esclarecimento: A crônica "Leivinha, o craque" foi publicada por Notibras no dia 12/1/2024.
  • https://www.notibras.com/site/jogo-de-botao-a-parte-ele-era-bom-mesmo/

Encontro inusitado

 

    Creio que já falei aqui que trabalhei no Banco do Brasil. Caso você não saiba, foram quase 17 anos. No entanto, fiquei apenas três anos em agência, ali em Copacabana. Depois fui para outros setores do banco, onde essa história aconteceu. 

    Nessa época, estava lotado no Andaraí, em uma unidade quase em frente ao antigo campo do América, que já havia se transformado no shopping Iguatemi. Como eu morava longe, pedi para ser lotado no DEREG, que era um enorme depósito de material na entrada da favela Kelson, também conhecida como comunidade Marcílio Dias, bem ali na Penha Circular. Foi justamente nessa lugar que conheci uma dos meus maiores amigos, Antonio Manoel. Ele é uma das pessoas mais carismáticas que conheço, a minha esposa também pensa o mesmo. Nós o amamos demais!!!

    Pois bem, vamos à história! Lá estava eu entrando no grande galpão. Cheguei bem cedo, fui direto para o departamento que eu deveria me apresentar. Lá encontrei um colega, o Braga, vulgo Piu-Piu, que eu homenageei no meu primeiro romance, publicado em 2004, chamado "Despido de ilusões".  

    O Braga, que até esse momento não me conhecia, me perguntou quem eu era e o que estava fazendo ali. Eu me apresentei e lhe disse que havia sido transferido. Ele logo falou: "O que você aprontou para ser mandado pra cá?" Estranhei a pergunta e falei que eu havia pedido para ir para ali. Ele deu uma sonora gargalhada e exclamou: "Ah, então, você é doido!" O Braga disse isso porque o DEREG era conhecido como um local para mandar os funcionários mais problemáticos. Na verdade, eu não sabia disso até então, mas foi aí que fui entender a pergunta do chefe do meu antigo setor: "Você tem certeza de quer ir mesmo pro DEREG?"

    Logo após essa breve conversa, o Braga me convidou para dar uma volta no enorme depósito. Era realmente imenso! O maior do Brasil, descobri depois. Após a breve apresentação ao meu novo local de trabalho, voltamos para a sala. Perguntei para o Braga onde ficava o banheiro. Ele me apontou o local.

     Empurrei a porta, pois estava com muita vontade de fazer xixi, mas quase caí para trás, pois havia um homem com short arriado em frente ao mictório se aliviando, tirando a água do joelho, como a minha esposa acabou de falar aqui, já que estou escrevendo este texto em voz alta para ver se ela o aprova ou não. 

    O tal mijão percebeu que eu havia entrado no recinto, virou o rosto e me esticou a mão: "Prazer, Antonio Manoel!" A situação era tão esdrúxula, que nem me recordo se apertei ou não a sua mão. A única coisa que ainda recordo é aquele traseiro mais branco que ovo de galinha de granja. Pois é, antes mesmo de conhecer o Antonio Manoel, conheci o seu bumbum.

  • Nota de esclarecimento: A crônica "Encontro inesperado" foi publicada pelo Notibras no dia 20/04/2023. Foi feita uma pequena modificação no texto para os leitores do jornal se sentirem mais familiarizados com a história.
  • https://www.notibras.com/site/totonho-do-bb-tinha-o-bumbum-como-casca-de-ovo/?fbclid=IwAR0wLsbUXLNIFljSSKAsrn_b5pQ7Y9gbAWGUDqedFzr2lmiUoQcG6EUTaYc


segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

Posteiro Brasileiro

 


    A história que vou lhe contar hoje é verídica, assim como todas as outras publicadas aqui. Ou melhor, praticamente todas, eu acho. Seja como for, a minha esposa e eu estávamos viajando de carro para levar a minha filha mais nova, que mora em uma linda cidade do Espírito Santo. Obviamente, durante essa viagem, parávamos de tempos em tempos em algum posto da estrada. Foi logo na primeira parada, não sei exatamente se para abastecer o automóvel ou o estômago, minha filha apontou para um cachorrinho bem magrelo, de cor preta e canela, deitado próximo à uma bomba de gasolina. Ela me perguntou qual era a raça. Para os que não sabem, sou veterinário e conheço uma penca de raças de cães, provavelmente muito mais do que a grande maioria das pessoas imaginam existir. Mas deixa isso pra lá, pois pode parecer que estou querendo me vangloriar de algo que, na verdade, não tem muita importância. Voltando à história, respondi que não sabia, mas que poderíamos criar uma raça, já que muitos cães daquele mesmo tipo existiam nos postos de gasolina. A minha filha disse de prontidão: "Posteiro brasileiro!"

    Aquilo fazia todo sentido, minha mulher também concordou. Só que a coisa não parou por aí, pois também criamos um padrão da raça para o posteiro brasileiro. Padrão da raça, para quem não sabe, é um monte de características ideais que um cachorro deve ter. Existem padrões de raça para outras espécies também, mas o nosso foco agora é o posteiro brasileiro. Não sei se foram os inúmeros biscoitos de polvilho que comemos durante a viagem, não sei se foi a adrenalina liberada depois de todas a risadas, mas nós três íamos numerando as coisas que um posteiro brasileiro legítimo deveria ter: deve ser bem magro, com as costelas aparecendo, a cor tem que ser preto e canela, o pelo tem que ser curto, deve ter pulga, deve ter sarna, tem que gostar de coxinha de galinha... A relação, por mais absurda que possa parecer, foi surgindo não sei como. Criamos posteiros brasileiros de vários tamanhos, depois criamos o padrão para a variedade posteiro brasileiro amarelo, já que a minha filha notou que nem todos os cães que víamos nos postos de gasolina eram de cor preta e canela. 

    Quando finalmente chegamos, reparamos que o Dudu, o cachorrinho da minha filha, também era um legítimo representante da raça posteiro brasileiro. Na verdade, não era exatamente isso. No entanto, como éramos os criadores dessa raça de cães, fizemos uma pequena alteração no padrão e, então, incluímos uma nova variedade, a de pelo longo. Essa foi uma das melhores viagens que me recordo. Ainda me lembro das gargalhadas desmedidas da minha filha, que muitas vezes é séria demais. 

    

domingo, 26 de dezembro de 2021

Tostão e o Verdão

     

   Vou confessar aqui uma coisa, que talvez choque alguns colegas de trabalho. Não sou torcedor do Cruzeiro, apesar de já ter mentido algumas vezes sobre isso. A história é até engraçada. Pois bem, é que tenho algumas coincidências com o maior ídolo da história da Raposa, o Tostão. 

    Nós dois temos o mesmo nome, fazemos aniversário no mesmo dia (o Tom Jobim também), somos canhotos, ele é médico, eu sou médico veterinário. Essas informações sobre o Tostão são pouco conhecidas pelos cruzeirenses, fato que descobri ao longo dos anos. Como eu sei disso? Ah, o meu pai, vascaíno inveterado, sempre gostou muito do Tostão, que também jogou no Vasco, mesmo que por pouquíssimo tempo, antes de se aposentar precocemente por causa de um deslocamento de retina.

    Provavelmente, a primeira vez que menti sobre ser cruzeirense tenha sido quando fui trabalhar em uma seção, onde o chefe ostentava um enorme escudo de plástico do Cruzeiro sobre a mesa. Não sou do tipo que já chega a um novo ambiente e faz amizade rapidamente. Pois é, sou tímido, pelo menos no início. 

    Então, depois de um tempo, o chefe me perguntou qual era o meu time. Respondi sem pensar: "Cruzeiro". Ele não acreditou, pois sou carioca e, naturalmente, deveria ser torcedor de algum time do Rio. Mas, aí, lhe perguntei qual era o maior ídolo da história do Cruzeiro. Ele, depois de pensar um pouco, respondeu que era o Tostão. 

    Eu fiz nova pergunta: "Qual é o nome dele?" O meu chefe pensou, pensou, mas não soube responder. Falei que era Eduardo. Todavia, o cara ainda não estava convencido de que eu era mesmo cruzeirense

    Fiz-lhe nova pergunta: "Qual é a profissão do Tostão?" Se ele não sabia nem o nome do Tostão, com certeza não saberia dizer o que ele fazia. Respondi sem pestanejar: "Ele é médico! E eu, como você sabe, sou médico veterinário". 

    Mas isso ainda não era suficiente para o meu chefe, que disse que eu estava mentindo, pois eu não era cruzeirense nem aqui nem na China. Era hora de eu dar a última cartada, que seria certeira como um pênalti batido pela Marta. 

    _ Quando o Tostão nasceu?

    _ Sei lá!

     Pedi para ele pesquisar na internet, já que havia um computador bem à sua frente. Ele olhou em um site e encontrou a data de nascimento do craque. 

    _ E por acaso você sabe?, meu chefe me questionou, crente que havia me desmascarado. 

    Puxa, como me senti bem naquele instante. Simplesmente tirei minha carteira de identidade do bolso e lhe mostrei. O cara, com cara de surpreso, finalmente havia sido convencido de que eu era mesmo Cruzeiro.

    Certamente, essa já seria uma excelente história para ser contada, caso não houvesse um outro desenlace, que, para mim, muito mais interessante. É que, algum tempo após, fui trabalhar em outra seção, quando essa situação inusitada me aconteceu. 

    A minha esposa, como muitos sabem, é torcedora do Palmeiras. Torcedora é modo de falar, pois ela é fanática pelo Verdão. Tanto é que, antes de chegar ao serviço, passei em uma farmácia, onde vi uma escova de dentes do Palmeiras. Obviamente que a comprei. Coloquei a tal escova no bolso da frente do meu casaco, o que a deixou à mostra.

    Cheguei à nova sala, onde me deparei com o novo chefe. O cara me recebeu com um sorrisão no rosto e até me deu um abraço de boas-vindas. 

    _ Ah, também sou Verdão! 

    Confesso que a ficha demorou alguns milésimos de segundo para captar essa frase, mas o fato dele me apontar para o bolso do meu casaco foi bem providencial. Já fui engatando um "Quando surge o alviverde imponente..." 

    Mas não sei muito mais que essa parte inicial, mesmo já tendo ouvido esse hino inúmeras vezes. A minha esposa vive cantando. E, por sorte, naquele momento o meu novo chefe me acolheu de maneira efusiva. Virei, ali mesmo, um palmeirense roxo, quase igual à minha mulher.

    Tempo vai, tempo vem, o inevitável acabou acontecendo. Isso mesmo, o meu antigo chefe, que continuou trabalhando em uma sala próxima, foi resolver algumas coisas na minha nova seção. Naquele momento, os dois estavam ali: o meu antigo chefe e o novo, separados de mim por uma fina parede de compensado. 

    Os dois acabaram falando sobre futebol, o que os levou a mencionarem sobre o meu time do coração. O antigo chefe disse que eu era Cruzeiro, o que foi prontamente rebatido pelo novo, que afirmou categoricamente que eu era Verdão. Na verdade, eu nem ouvi esse pequeno embate, pois estava entretido com o serviço. Quem me contou isso depois foi o Gilmar, então colega na mesma seção e, hoje, um amigo muito querido.

    Seja como for, de repente, lá estavam os respectivos apaixonados por Cruzeiro e Palmeiras bem em frente à minha mesa. Os dois, quase em uníssono, me pressionaram.

    _ Afinal, você é Cruzeiro ou Palmeiras?

     Gente, nem sei como respondi isso, mas foi assim: 

    _ Sou Palestra Itália!

     O meu novo chefe, ciente de que o Cruzeiro também era Palestra Itália, me falou: 

    _ Se saiu bem, hein!

  • Nota de esclarecimento: A crônica "Tostão e o Verdão" foi publicada pelo Notibras no dia 01/06/2023.
  • https://www.notibras.com/site/escova-de-dentes-complica-vida-de-funcionario/

    

sábado, 25 de dezembro de 2021

Um caminho sem volta

    


    Houve um tempo em que não existiam exatamente camisas de um time específico. A coisa era mais ou menos assim: se você torcesse, por exemplo, para o Botafogo, teria que comprar uma camisa com listras pretas e brancas, escolher o escudo e o número, que vinham separados. Depois, caso você não soubesse costurar, pedia para a sua mãe ou sua avó para fazê-lo. Isso acontecia com praticamente todos os garotos da minha rua.

    No meu caso, adorava quando a minha camisa 8 ficava pronta. As listras pretas bem pretas, as brancas bem brancas, tudo bem nítido. Naturalmente, após algumas lavadas, a camisa ia perdendo as cores, a listras pretas já não eram tão pretas, ficavam acinzentadas, as brancas pareciam encardidas, o escudo e o número começavam a despencar. Na verdade, eu nem percebia, até que eu ganhasse outra nova. O contraste era imenso, mas era difícil deixar de usar a antiga, pois já havia muita história vivida. Minha mãe ficava reclamando: "Joga isso fora! Usa a nova!"

    Com o passar dos anos, algo me deixou incomodado, mesmo não sendo torcedor do Flamengo. É que a camisa do time da Gávea passou a ostentar um enorme anúncio da Lubrax. Pois é, o Flamengo já não era o Flamengo, mas passou a ser o Lubrax, como chamávamos na rua por pura gozação. E se um colega flamenguista viesse me contar vantagem, eu simplesmente me defendia dizendo que o time dele não existia mais, que agora era o Lubrax. Não que eu concordasse exatamente com isso. Aliás, isso era extremamente estranho pra mim, mesmo não sendo flamenguista. Mas não tinha como não associar o Flamengo ao produto da Petrobras. Ficou esquisito demais! No entanto, isso era apenas o começo de algo ainda pior.

    Não foi apenas o time do Zico que entrou nessa onda. Os outros também começaram a colocar anúncios nos uniformes. A coisa foi indo aos poucos, outros clubes passaram a aderir a essa tendência. No entanto, o caso mais emblemático que me recordo é o do Palmeiras com a Parmalat nos anos 1990, que finalmente tirou o time da seca de títulos. Durante aqueles anos, o alviverde paulista vencia praticamente tudo. Parecia a fórmula perfeita, apesar das brincadeiras das pessoas, que passaram a chamar o time do Parque Antártica de Parmalat. Pois é, a Parmalat era o melhor time do Brasil naqueles anos. Até que houve um escândalo financeiro envolvendo a tal empresa, que parou de bancar o Palmeiras. O resultado foi que o alviverde acabou sendo rebaixado em 2002 para a segunda divisão.

    Outra mudança no futebol foi a tão propagandeada disputa por pontos corridos. Muitos falavam que era a disputa mais justa, pois privilegiava a melhor equipe. Turno e returno, todos os participantes se enfrentando em jogos de ida e volta. Mas isso é algo que eu tenho dúvida, já que esse tipo de campeonato, na minha opinião, deixa o futebol muito mais previsível, uma vez que ele favorece os times mais ricos, que podem bancar um elenco de estrelas durante toda uma temporada. Não há grandes surpresas. Ou seja, viramos uma Espanha. Posso afirmar, com uma margem bem segura, que no próximo ano vai dar Barcelona ou Real Madrid por lá, mesmo nunca tendo acompanhado os campeonatos espanhóis. E isso está acontecendo por aqui também, haja vista os melhores (eu prefiro falar os mais ricos) levarem praticamente tudo. Obviamente, que essa situação teve início lá atrás, quando meus amigos começaram a chamar o Flamengo de Lubrax.

    Talvez você esteja discordando de mim, assim como a minha esposa, que está aqui ao meu lado balançando a cabeça negativamente. Ela discorda e gosta de deixar isso bem claro. É difícil, concordo, de ir contra esse sistema de comercialização exacerbada do esporte quando o seu time está por cima da carne seca. Ela é Palmeiras, o atual campeão da Libertadores. Provavelmente, no próximo ano, ganhará títulos importantes também ou, ao menos, estará entre os primeiros colocados. Não há dúvida de que o alviverde paulista é um dos clubes mais ricos do Brasil hoje em dia. E a minha mulher, torcedora dessas muito chatas, possui várias camisas oficiais do Palmeiras, todas pagas a peso de ouro. E ai de eu insinuar para ela comprar aquela ali no camelô, que me parece igualzinha. "Não é oficial!!!", ela esbravejará.

    Vivi uma situação parecida com um colega, que é desses santistas chatos, assim como a minha mulher que torce de maneira homérica pelo Palmeiras. Ele estava vestindo uma camisa retrô do Pelé, algo que vários times têm feito nos últimos anos. Esse meu amigo me falou que iria para a Alemanha brevemente, e que já havia comprado ingressos para algumas partidas de times de lá. Ele me falou que queria usar uma camisa de uma das equipes alemãs, quando eu disse que era mais legal ir com a que ele estava vestindo. Mas aí ele falou que poderia também usar outras do Santos, que ele também tem, todas oficiais. Então, eu lhe fiz uma pergunta: "Qual camisa do Santos que você pode ter que é mais importante que essa que você está vestindo? Além disso, você vai se destacar na multidão, pois essa sua camisa é conhecida até mesmo por aqueles que ainda não nasceram". Ele acabou indo pra Alemanha, vestiu a tal camisa e até fez amizade com um alemão, que reconheceu a 10 histórica de longe, se aproximou e disse que havia jogado contra o Pelé na década de 1960, quando o Santos fazia aquelas excursões internacionais. Isto é, o meu amigo jamais iria conhecer alguém que havia jogado contra o Pelé, caso estivesse vestindo outra blusa.

    Essa intensa comercialização, que parece não ter fim, fez com que vários times têm sido vendidos. Eu confesso que há muitos anos eu vi em algum lugar que o Elton John era o dono do seu clube de coração na Inglaterra. No entanto, nesses dias a minha mulher, que vive futebol a todo instante, veio me contar que o Cruzeiro foi vendido pro Ronaldo, aquele mesmo que um dia foi jogador da Raposa. Ela até brincou que há anos o Cruzeiro havia vendido o Ronaldo, que, depois, acabou comprando o clube. Agora o Cruzeiro é do Ronaldo! Não é exatamente do Ronaldo, mas ele é o maior investidor do Cruzeiro, agora uma empresa. Pior, depois ela me contou que algo parecido também aconteceu com o Botafogo, que também passou a ser uma SAF (Sociedade Anônima do Futebol). "É um caminho sem volta", ela me disse. Ainda assim, fico com aquela pulguinha atrás da orelha. Afinal, empresas falem e fecham as portas. Não sei se isso realmente irá acontecer. 

    Talvez eu seja saudosista, um romântico, sei lá. Mas gosto de me lembrar da linda camisa do Botafogo, que a minha mãe costurava com carinho o número 8 e o escudo mais lindo do mundo. Não consigo me acostumar com tantos anúncios nos uniformes atuais. A blusa do meu time passou a ter várias cores, uma verdadeira poluição visual. Detalhe: acho muito legal de vez em quando algum clube lançar uma blusa de outra cor para apoiar uma campanha em prol das minorias. Isso é muito legal mesmo! Todavia, não entendo a obsessão de muitas pessoas, inclusive da minha mulher, em comprar a nova camisa oficial do time de coração. E isso é todo ano! Como se a antiga não fosse suficiente. E haja propaganda, cada vez mais propaganda e menos time.



sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

O Rei

 

    Nestes tempos em que o Atlético Mineiro voltou a ser protagonista, nada mais justo do que recordar o maior craque da sua história. Aliás, recordar é modo de se falar, pois o país e o mundo, especialmente os atleticanos, jamais se esqueceram daquele camisa 9 que desconcertava qualquer zagueiro. 

    Reinaldo, ou simplesmente Rei, como a torcida berrava para quem quisesse ou não ouvir, já não tinha meniscos, já não tinha joelhos, talvez já nem tivesse mais pernas, que foram brutalmente agredidas por tantos e tantos pernas de pau. No entanto, ele não precisava de pernas, pois a sua inteligência parecia dominar a bola, que, serva total, atendia aos desejos do Rei, que reinava absoluto dentro na grande área como ninguém jamais o fez. 

    Não conheço outro centroavante tão habilidoso, tão genial, tão bom de bola como o Rei. Alguém poderia apontar um ou outro em virtude do físico mais robusto, das arrancadas que deixavam os adversários comendo poeira, do sucesso em clubes pela Europa. Mas nenhum deles, nenhum deles mesmo, teve a genialidade do Rei. 

    Um torcedor mais afoito poderia citar um grande artilheiro, famoso por dribles num espaço de um metro quadrado. Pois eu lhe digo que isso é um latifúndio quando se pensa no Rei, que não precisava nada além do que a circunferência da bola para surpreender a todos, inclusive os apaixonados sentados na arquibancada, com mais uma jogada incrível. 

    A cada gol marcado, lá estava o Rei parado, braço erguido, em plena Ditadura Militar. Pois é, para ele, que também tinha que encarar o pessoal da farda, fazer aquelas diabruras em campo era até fácil. É óbvio que ele também teve pela frente juízes pouco confiáveis, que apitavam para o time do governo. Mas nada disso importa, pois as imagens estão aí para serem vistas e revistas. 

    Ele saiu bonito na fita. Ficou feio mesmo para quem tentou burlar as regras em campo e fora dele. Não há dúvida de que o Reinaldo é o maior centroavante da Terra. Se bem que, para muitos, ele veio de outro planeta, pois o Rei tinha poderes de fazer a bola levitar, de cair repentinamente ao seu comando, de colar como um ímã no seu pé, toda aos seus pés. A redonda sabia, claro que sabia, que ele era o Rei. E viva longa ao Rei!

  • Nota de esclarecimento: A crônica "O Rei" foi publicada pelo Notibras no dia 30/09/2023.
  • https://www.notibras.com/site/pernas-de-pau-batiam-mas-rei-nunca-parava/

Parada inusitada


    Não estavam propriamente se dirigindo para aquela cidade, mas resolveram fazer uma visita breve para conhecê-la. Gostavam de fazer isso, mesmo que por alguns instantes. O sol escaldante aguçou o desejo de tomar sorvete. Procuraram e logo encontraram um local ali perto da principal lagoa do centro, uma das sete da famosa cidade próxima à Belo Horizonte. 
    
    Ela, menos afoita, olhava a loja com certo ar de curiosidade. Ele, no entanto, já foi direto para o balcão, onde havia um vidro separando-o daqueles inúmeros potes enormes de sorvete: morango, chocolate, creme, avelã, uva... Ih, a lista ia longe!

    _ Quero esse, esse, aquele, aquele outro e também os dois do canto. 

    _ Não pode! - a atendente o interrompeu.

    _ Por que não pode? - ele a questionou.

    _ Porque é muito caro! - ela retrucou.

    Ele sorriu,

    _ Mas eu tenho dinheiro!

    _ Mas mesmo assim não pode, pois dá muito trabalho - ela insistiu.

    Ele voltou a sorrir.

    _ São só duas bolas - a atendente se manteve firme.

    Ele, com o sorriso ainda presente no seu rosto, se conformou:

    _ Então, eu quero esse e aquele.

    A atendente pegou a casquinha e o pegador e colocou os dois escolhidos. Em seguida, ela ficou estática observando o homem, como se o esperasse completar o pedido. Ele não entendeu direito aquela situação e, antes que pudesse falar algo, a atendente o questionou:

    _ E aí, já escolheu o outro sabor?

    _ Ué, mas não são apenas duas bolas?

    _ São duas bolas, mas são três sabores! - a atendente finalizou.

    Acreditem! Isso realmente aconteceu!

  • Nota de esclarecimento: O conto "Parada inusitada" foi publicado por Notibras no dia 3/3/2024.
  • https://www.notibras.com/site/pedido-facil-complica-desejo-de-uma-casquinha/



O Divino

     

    Ele já havia nascido Divino, pois, nesse caso, era sobrenome herdado do pai, um certo Domingos. Por isso mesmo, cresceu com a responsabilidade de ser craque, algo praticamente fadado ao fracasso, haja vista tantos outros casos antes e depois. Talvez nem pensasse nisso, mesmo porque, parece, o pai o havia orientado desde cedo: "Mantenha os pés firmes no chão!" 

    Não se sabe ao certo se essa frase foi mesmo dita, talvez seja apenas coisa de algum torcedor fanático querendo dar um ar de magia à história do Ademir. Não aquele homônimo que jogou no Vasco. O Ademir desta história é outro, ou melhor, provavelmente o único que vem à mente dos apaixonados torcedores do Palmeiras, entre os quais se encontra a minha esposa, que nem mesmo o viu jogar. Mas ela, esperta como é, já correu praticamente todos os vídeos na internet à procura desse craque de bola: Ademir da Guia, o Divino!

    A elegância e o toque fino de bola, foram do pai que herdou. No entanto, não queria ficar olhando o jogo lá de trás. "Meu lugar é lá no meio campo, já chegando na área do adversário", talvez tenha dito para o pai.

   Como é gostoso imaginar o que tenha passado na cabeça desse gênio gentil. Entretanto, posso afirmar com precisão que até mesmo eu, que fui um menino desde cedo cercado por botões, e nem sendo torcedor do Verdão, pelo menos até então, tive um do Ademir. Sim, um botão verde, a foto do Divino ao centro. Infelizmente, o tempo acabou me levando tal relíquia, mas a memória, ainda que falha, não me deixa esquecer de algumas jogadas divinas desse mestre da arte de jogar futebol. 

    E se o pai era incapaz de dar um pontapé, o Ademir recebeu vários, inúmeros, infinitos. Todos, porém, foram ineficazes de fazê-lo truculento, já que a elegância sempre o acompanhou. Você já viu uma entrevista do Ademir? Pois assista! Aquela voz macia, doce até, o levará a vislumbrar o futebol encantador desse Guia do Palmeiras por anos a fio. 

    Minha esposa sabe muito bem disso! Tanto é que ela afirma com todas as letras que o Ademir é o maior jogador da história. Não há Garrincha, Pelé ou Maradona que consigam suplantar as façanhas do craque palmeirense. Faço até uma confissão para você: ela me intimou a ser torcedor do Palmeiras. E ai de mim, se eu me recusasse. Mas, falando a verdade, nem foi tão difícil assim, já que as fartas recordações da minha infância, quando o Ademir era absoluto, conseguiram dar um tom de clorofila ao meu coração.

A minha esposa, a Dona Irene, está com moral até com o Ademir




O leitor

    
    Lia tudo! Sempre leu, antes mesmo de ser alfabetizado, quando ainda desconhecia a ordem certa das letras nas palavras. Era desse tipo que gostava de ler até nas entrelinhas, mesmo que elas fossem apenas espaços vazios para a maioria. Mesmo aquelas letras minúsculas nos rótulos de cosméticos eram minuciosamente exploradas. 
    
    Ele se entretinha com tudo que possuía letras, palavras, frases pequenas e enormes. Não que ligasse para o tamanho delas, haja vista conseguia vislumbrar beleza em qualquer bula de remédio. Sua mãe não se conformava, parecia até falta de educação. Quantas e quantas vezes havia sido repreendido por ela: "Largue esse livro, menino! Não vê que temos visita?"

    As crianças na rua corriam de um lado para outro, enquanto a sua mente viajava o mundo nas páginas, muitas vezes amareladas, dos livros da estante da avó. Não que ele também não brincasse com a galerinha, pois o suor chegava a pingar da sua testa, caía nos olhos e ardia. Ele esfregava as vistas com o dorso da mão, balançava a cabeça e, então, algo parecia guiá-lo para a leitura, mesmo que na imaginação. Nessa idade já trocava algumas figurinhas com o Machado de Assis, com o Lima Barreto, arriscava até umas investidas na Clarice Lispector.

    A adolescência foi entrando, os interesses aumentaram, começou a namorar. Quando ia ao cinema com a namorada, ele não queria sair após o final da película. Ah, os letreiros eram o máximo para ele. A namorada tentava arrastá-lo pelo braço, mas ele, firme, resistia. "Quem é que se importa com os créditos de um filme?", insistia a namorada. Ah, para ele era a parte principal, seus olhos corriam a tela na frustrada tentativa de captar todas as palavras. 
    
    Tanto é que, já caminhando pela calçada, ele tentava adivinhar o que era aquilo que ele deixou de ler. "George de quê? Produzido por quem?" Nem prestava atenção no som que cismava em continuar saindo da boca da namorada. Ele apenas olhava aqueles lábios vermelhos se abrindo e se fechando, pois, pensava, talvez as respostas para os seus questionamentos pudessem sair dali a qualquer momento. Mas nada! 

    Quando já estava na sua cama, muitas vezes a madrugada lhe fazia companhia. Todavia, a sua mãe, sempre a sua mãe, lembrava-o que a hora de ir para a escola havia chegado. "Que sono!!!" Seus pés, quase pregados, arrastavam-no até o banheiro, já que os olhos pareciam que ainda estavam fincados no cinema na frustrada tentativa de captar todas as letrinhas, por mais miúdas que fossem, cismavam em correr pela telona.

    Chegou a vida adulta! E como chegou rápido esse tempo de tantos compromissos inadiáveis! Não tinha carro, ia a pé pro trabalho. Lia todas as placas, todas as ruas, mal entrava no trabalho, uma montanha de papéis lhe eram atiradas na mesa pela chefe: "Leia tudo e me faça um relatório!". Ela era carrancuda, ele se divertia com a montanha de palavras espalhadas à sua frente. Todos os outros empregados olhavam com pena para aquele infeliz. Nem desconfiavam que aquilo era seu oásis.

    Acabou se casando. Não foi com aquela namorada que cismava em puxá-lo pelo braço. Não que ligasse para isso. Os filhos vieram com o tempo, seus cabelos foram perdendo a cor, sua barriga não cresceu como a da maioria dos maridos, pois ele se alimentava principalmente de palavras, frases, orações subordinadas, verbos transitivos e intransitivos, vocativos. Até que um dia, sentado na cadeira de balanço da varanda, suas mãos fraquejaram e soltaram o volume, que despencou sem qualquer cerimônia no piso gelado. A cabeça pendeu para o lado, seus óculos escorregaram até a ponta do nariz. 

    O enterro foi breve, não havia muita gente, a chuva era fina. Todos foram embora antes mesmo do coveiro começar a jogar a terra sobre o caixão. O silêncio tomou conta do cemitério São João Batista, até mesmo os passarinhos pararam de cantar. Lá embaixo, seu corpo rijo e gelado parecia se incomodar com algo. Tentou se mexer, mas sem sucesso. "Cadê meus óculos?", A angústia o tomava por inteiro. Ele não conseguia decifrar as palavras na sua lápide.
  • Nota de esclarecimento: O conto "O leitor" foi publicado pelo Notibras no dia 29/07/2023. Por uma solicitação da redação, foi feita pequena alteração no texto para que a história pudesse se passar no Distrito Federal.
  • https://www.notibras.com/site/garoto-prodigio-na-morte-nao-le-na-lapide-aqui-jaz/

    

O mistério da rua sem saída

 Introdução

 

            Duas meninas, gêmeas, sete anos, uma Ana Maria, outra Mariana.  Ana Maria tinha grandes olhos de um castanho meio mel; Mariana também.  Ana Maria com seus cabelos encaracolados, caídos um pouco abaixo dos ombros; Mariana também.  Ana Maria adorava sorvete de flocos; Mariana, de morango.

            As duas irmãs moravam em uma pequena rua, uma rua sem saída, num bairro bem distante, numa cidade bem grande, num país chamado Brasil.  Havia outras crianças na rua da Ana Maria, que também era a rua da Mariana, mas que também era a rua de outras pessoas. 

Juliana também morava nessa rua, era amiguinha das gêmeas, tinha cabelos lisos, loiros, caídos bem abaixo dos ombros.  Todos a chamavam de Jujuba.  Também havia a Gabriela, morena dos cabelos tão grandes que alcançavam o bumbum.  Nossa, a Gabriela era tão mandona, gostava de chefiar tudo.  Mandar era com ela mesma.  Iago era um dos poucos meninos da rua, magro como um palito, negro, dois olhos de jabuticaba bem madura.         

A criançada se divertia com as brincadeiras que seus pais e até avós já haviam brincado.  Queimada, que essa nova geração cismava em chamar de queimado, pique-esconde, bandeirinha, o mestre mandou.  Muitas e muitas brincadeiras.  Puxa, como se divertia essa meninada!

 

* * * * *

 

            Não só havia crianças nessa rua, mas árvores frondosas, principalmente amendoeiras.  Quando chovia, e a criançada não queria acabar a brincadeira, todos se protegiam embaixo das árvores.  E quando o sol estava muito forte, a galerinha também ficava sob as copas tão protetoras das mesmas árvores.

            Alguns gatos circulavam pela rua, uns tinham dono, outros eram da rua mesmo.  Um desses errantes era um lindo gato branco, a cauda mais peluda do que o resto do corpo, um pouquinho gordo, mas nada que o impedisse de escalar muros e até mesmo as belas árvores.  E mesmo sendo um bichano das ruas, tinha nome e até sobrenome, colocado pelo pessoal da vizinhança.  Pois bem, o dito cujo se chamava Virgulino Ferreira da Silva.  Mas por que cargas d’água iriam dar um nome desses a um gato, você poderia perguntar.  É mais simples do que parece: esse bichano recebeu esse nome como uma referência ao cangaceiro Lampião, que se chamava Virgulino Ferreira da Silva e só tinha um olho.  Pois é, o gato Virgulino também só possuía um olho.  Ninguém sabe na verdade como ele perdeu o outro ou, se sabe, já se esqueceu.

            Quem sempre andava com o Virgulino era um gato de cor cinza azulado, olhos verdes e que sempre se metia em confusão.  Já havia escapado da morte diversas vezes e, por esse motivo, ganhara o sugestivo nome de “Elvis não morreu”.  Virgulino e Elvis eram amigos inseparáveis, sempre se metendo em encrencas juntos, sempre saindo delas juntos.  Eram como unha e carne.

            Não poderia deixar de existir nessa história uma gatinha, que por sinal se chamava Sonja ou, para os íntimos, Sonjinha.  Uma bela bichana de cor cinza, tigrada, olhos verdes como os do Elvis, mas bem mais dóceis e confiáveis.  Ao contrário de Virgulino e seu amigo inseparável, Sonja possuía dono, ou melhor, dona, ou melhor ainda, duas donas: Ana Maria e Mariana ou, se você preferir, Mariana e Ana Maria, as tais gêmeas de que falei logo no início desta história. 

Sonja não era a única na casa das duas irmãs, dividia o caixote de madeira com seu filho único, o Dunguinha, um gatinho loiro e de olhos verdes.  Ele ainda não havia completado três meses, mas já era o xodó da casa, da rua, enfim, de todos que o conheciam.  Era uma coisa de Dunguinha para cá, Dunguinha para lá, todos queriam pegar o filhotinho no colo.

            Não só de crianças, árvores e bichanos esta história é feita.  Também havia os pais e mães da criançada.  Ah, claro, também não podemos nos esquecer dos outros animais como, por exemplo, a Cuca, uma cachorrinha muito simpática, que morava na mesma casa da Sonja.  Ela também pertencia às gêmeas Ana Maria e Mariana e, apesar do dito popular, se dava muito bem com os bichanos da casa e até mesmo com os da rua. 

 

Capítulo I

Atirei o pau no gato

 

            A criançada estava brincando na rua, numa sexta-feira já perto das dezenove horas, que é a mesma coisa que sete horas da noite.  Só que era horário de verão, e o dia continuava claro.

            Era um corre-corre para cá, um corre-corre para lá.  A patota já havia brincado de pique-bandeira, que alguns chamam de bandeirinha.  Também se divertiram muito jogando garrafão.  Ei, não pense você que jogar garrafão é sair atirando garrafas nos coleguinhas.  Garrafão é o nome de uma brincadeira onde a gente desenha uma grande garrafa no chão.  Aí, quem está dentro do garrafão só pode andar com um pé, a não ser que seja você que está tentando pegar seus amiguinhos.  Quem está de fora pode usar os dois pés.  Bem, mas como eu ia dizendo, a galerinha já havia gastado muita energia em inúmeras brincadeiras divertidas.  Então, a Gabriela, a tal menina mandona, chamou todos para brincar de show de calouros.  Cada um tinha de cantar uma música, mas podia cantar em dupla, trio ou, até mesmo, todos juntos.

            _ Eu posso ser a primeira? – Jujuba perguntou.

            _ Tá bem.  Depois vai ser a Mariana – Gabriela disse.

            _ Mas eu posso cantar com a minha irmã? – quis saber a Mariana.

            _ Claro que pode, Mariana – concordou a Gabriela.

            _ E eu não vou cantar? – o Iago perguntou quase chorando.

            _ Claro que vai, Iago – todos responderam ao mesmo tempo.

            Jujuba cantou “O trem maluco” e foi aplaudida por todos.  Depois foi a vez das gêmeas cantarem “Cai, cai balão”.  Outras crianças cantaram “Marcha soldado”, “Casa engraçada” e outras canções.  Quando chegou a vez do Iago, ele não quis cantar sozinho e pediu para que todos cantassem juntos “Atirei o pau no gato”.  Não pense você que eles maltratam os animais, mas apenas preferem a versão original àquela que diz “Não atirei o pau no gato”.  

            Quando terminaram de cantar “Atirei o pau no gato”, alguém, acho até que foi a Ana Maria, perguntou se uma das crianças tinha visto o Virgulino.  Ninguém, mas ninguém mesmo soube responder.  Pensando bem, a última vez que haviam visto o tal gatinho branco foi pela tarde do dia anterior.  E acho que foi o Iago, isso mesmo, foi o Iago quando voltava da escola, que o viu pela última vez. 

            Gabriela imediatamente organizou duas turmas de busca.  A primeira era formada por Jujuba, as gêmeas, Taís e Leila.  A outra turma ficou sendo a Gabriela, Amanda, Iago e o Leo, que na verdade se chama Leonardo e é irmão da Leila. 

            A galera da primeira turma tinha de procurar embaixo dos carros; a outra procurou em cima das árvores.  Procuraram, procuraram, procuraram...  Puxa, mas como procuraram!  E nada de acharem o Virgulino.  Ainda estavam procurando quando a mãe da Leila e do Leo os chamaram.

            _ Leila!  Leo!  Já tá tarde!  Vamos entrando!

            Logo em seguida foi a vez da avó do Iago mandá-lo entrar.  E as mães, pais e outras pessoas da família foram chamando a criançada para entrar.  E todos foram se despedindo dos coleguinhas e entraram para as suas respectivas casas.

 

 

Capítulo II

Pique-esconde

 

            No dia seguinte, uma sexta-feira, lá estava a garotada da rua sem saída, a rua da Ana Maria e da Mariana, a mesma rua que também era de outras crianças, de árvores frondosas e de vários bichinhos.

            _ Gente, hoje é sexta-feira, amanhã não temos aula, pois será sábado.  Então, podemos brincar até um pouco mais tarde – disse Gabriela, que você já sabe que era mandona.

            _ É mesmo!  Que legal! – foi dizendo Iago.

            _ Mas estudar também é muito legal – falou a Mariana.

            _ É isso aí, Mariana! – concordou a Jujuba.

            _ Podemos brincar de pique-esconde – sugeriu a Ana Maria.

            _ Bacana! – disse a Taís.

            _ Maneiro! – concordou a Leila.

            Como a maioria queria brincar de pique-esconde, a proposta da Ana Maria foi aceita.  Logo estavam todos formando um círculo e gritando “zerinho ou um”.  O último a sair contaria até 50 para que os outros se escondessem.  E o último a sair foi justamente o Leo.

            _ Um, dois, três, quatro, cinco... – enquanto o irmão da Leila contava com o rosto virado para o pique, todos se escondiam.  

            A Ana Maria e a Jujuba se esconderam atrás de uma moita de capim limão, a Mariana foi para trás de um carro, o Iago e a Taís subiram em uma árvore, a Leila e a Gabriela ficaram atrás de uma  outra árvore.  As outras crianças também se esconderam, cada uma tentando escolher o esconderijo mais perfeito.

            Pois é, a galerinha ficou nessa brincadeira por mais de uma hora.  Depois do Leo, foi a vez da Jujuba contar até 50 para que todos se escondessem.  Mariana e Taís a sucederam.  E depois ainda vieram a Gabriela, a Leila e, por último, o Iago.  Só a Ana Maria não teve de contar até 50.  É, dessa vez, a danadinha teve sorte!

            A brincadeira só acabou mesmo porque alguém se lembrou de procurar o Virgulino, que havia sumido e ninguém conseguiu achá-lo.  Se não estou enganado, acho que foi a Mariana que se lembrou.  Seja como for, a mandona da Gabriela dividiu os grupos como no dia anterior e todos foram procurar o Virgulino.  

            Era um tal de gritar “Virgulino” pra cá, “Virgulino” pra lá, mas nada do bichano aparecer.  De tanto berrarem, as crianças já estavam ficando roucas.  Gritaram até que a Taís percebeu que não era só o Virgulino que havia sumido.  Ela notou que o amigo inseparável do gatinho desaparecido também não estava por ali.  

            _ Galera, vocês notaram que o Elvis também sumiu? – perguntou a Taís.

            Ninguém havia visto o amigo do Virgulino.  Então, a Gabriela chamou todo mundo e fez uma grande roda.

            _ Pessoal, a Taís notou que o Elvis também sumiu.  Ontem ele estava aqui, mas hoje desapareceu.  O que será que houve com os dois?  Será que foram embora da nossa rua? – falou a mandona.

            Mas antes que alguém pudesse responder, o pai das gêmeas mandou que elas entrassem.  Logo em seguida foi a vez da mãe da Leila e do Leo chamá-los.  E assim a criançada foi entrando para as suas respectivas casas, sempre obedecendo aos chamados dos pais, das mães, das avós...   

   

Capítulo III

Cobra-cega

 

            O sábado amanheceu ensolarado e logo a garotada estava na rua.  A brincadeira já ia começar.  A maioria escolheu brincar de cobra-cega, que alguns conhecem por cabra-cega.  Só estavam faltando as gêmeas, que ainda não tinham saído de casa.  Então, a Gabriela, que era mandona mesmo, falou pro Iago ir chamá-las.  

            _ Puxa, sempre sobra pra mim! – resmungou o garoto de olhos de jabuticaba.

            Antes mesmo que o Iago tocasse a campainha da casa da Ana Maria e da Mariana, elas apareceram e falaram ao mesmo tempo:

            _ Iago, você viu a Sonjinha e o Dunguinha?

            _ Não.  Por quê?  Não vão me dizer que eles sumiram também?

            _ Isso mesmo – respondeu Ana Maria antes da sua irmã.

            Os três correram para contar a novidade para a galerinha.  Então, a Gabriela dividiu a turma em dois grupos para procurar os dois gatinhos.  Aliás, os quatro, pois o Virgulino e o Elvis continuavam desaparecidos.   Procuraram, procuraram, procuraram e nada de encontrar os felinos.  Onde eles poderiam estar?  

            Depois de mais de uma hora procurando os gatinhos, a Ana Maria veio conversar com a Gabriela.

            _ Gabi, estive pensando numa coisa.

    _ No quê, Aninha? – quis saber a Gabriela.

            _ Olha, já procuramos os nossos amigos gatinhos em vários lugares, mas até agora nem sinal deles.  Então, tive uma ideia!

            _ Que ideia, Aninha? – quis outra vez saber a Gabriela, que além de mandona era muito curiosa.

            _ Precisamos da ajuda de mais alguém! – disse a Ana Maria fazendo um certo mistério.

            _ E de quem? – mais uma vez a mandona e curiosa da Gabriela quis saber.

            _ Ora bolas, da Cuca! – finalmente disse a Ana Maria.

            _ Da Cuca?  Mas por que da Cuca? – a Gabriela não entendeu.

            _ Olha, a Cuca é uma cachorrinha e tem um ótimo faro.  Ela conhece o cheiro de todos os gatinhos que sumiram.  Então, ela vai achá-los!  Tenho certeza de que ela irá encontrá-los! – falou a Ana Maria.

            _ Boa ideia! – disse o Diogo, que estava por perto e acabou ouvindo a conversa das duas.

            _ É, pode dar certo – concordou a Gabriela.

    Depois de chamar toda a criançada da rua, a Gabriela falou para o Iago ir buscar a Cuca, que era a cachorrinha da Ana Maria.

            _ Iago, vai lá na casa da Ana Maria e traga a Cuca aqui.

            _ Ah, tudo eu, tudo eu! – resmungou o Iago, mas mesmo assim obedeceu à mandona da rua.

            Em menos de cinco minutos, o Iago estava de volta com a Cuca, que veio abanando o rabinho para a garotada.  Ela gosta tanto das crianças que acabou por derrubar a Ana Maria e começou a lamber o seu rosto.  A Mariana foi tirá-la de cima da irmã, mas a Cuca deu um pulo e a jogou no chão e também lambeu o seu rosto.

            _ Para, Cuca!  Você está me fazendo cócegas – protestou a Mariana.

            _ Au, au, au! – a Cuca latia chamando todos para brincar.

            _ Quieta, Cuca! – ordenou a Gabriela.

            Até a Cuca sabia que a Gabriela era mandona e, por isso mesmo, saiu de cima da Mariana e se sentou ao seu lado.  A Mariana limpou seu rosto das lambidas da cachorrinha danada.

            _ Aninha, fala pra Cuca procurar os gatinhos – disse a Gabriela.

            A Ana Maria se ajoelhou em frente à Cuca, pegou a cabeça da cachorrinha com as suas duas mãozinhas e olhou bem dentro dos olhos dela.

            _ Cuca, quero que você ache a Sonjinha, o Dunguinha, o Virgulino e o Elvis, que sumiram.  Ninguém sabe onde eles estão.  Você pode encontrá-los pra mim? – falou a Ana Maria.

            _ Au, au, au! – respondeu a Cuca.

            A cachorrinha, então, colocou o focinho no chão e saiu em busca de uma pista.  Ela vinha e voltava, vinha e voltava com o focinho quase arrastando no chão e a cauda levantada.  Até que ela foi seguindo para o final da rua, onde parou em frente à casa de um tal Ubaldo Canastra, que havia se mudado há poucas semanas para o bairro. 

A Cuca ficou de pé com as patinhas da frente apoiadas no muro da casa.  Ela estava inquieta, o rabinho agitado, mas não latia para não chamar a atenção do dono da casa.  A Cuca era danadinha, mas também não era boba.

            A criançada correu até onde a Cuca estava.  Jujuba foi a primeira a falar.

            _ Galera, os gatinhos estão aí dentro!  Vamos entrar e pegá-los!

            _ Não podemos fazer isso, Jujuba.  Quem mora aí é aquele homem estranho, o tal Ubaldo Canastra – disse a Taís.

            _ A Taís tem razão.  Precisamos bolar um plano para salvar nossos amiguinhos – disse a Amanda.

            Então, a Gabriela, que você já sabe que era mandona e curiosa, convocou toda a galerinha para uma reunião secreta.  Só que quando todos já estavam na tal reunião secreta, a mãe da Gabriela a chamou para almoçar.  Não demorou muito e todas a mães, pais, avós, avôs, tias e tios da criançada apareceram na rua para avisar que o almoço já estava na mesa.   

 

 

             

Capítulo IV

O plano

 

            Após o almoço, a gurizada foi saindo de casa.  Primeiro foram as gêmeas Ana Maria e Mariana, depois a Jujuba, a Taís, a Gabriela, o Diogo, a Amanda, enfim, todos, menos um, o Iago.  Bem, o Iago demorou porque ele é meio guloso.  Também, naquele dia tinha feijoada e o Iago adora comer o feijão da sua avó.  Aliás, o Iago come de tudo, dizem que até sopa de pedra!  

            Depois de esperar pelo amiguinho guloso, a criançada finalmente viu surgir o Iago, que vinha coçando a barriga de satisfação.

            _ Ah, que feijoada deliciosa! – disse o glutão.

            _ Puxa, até que enfim você apareceu, Iago – protestou a Gabi.

            _ É mesmo, Iago.  A gente só estava esperando você pra começar a reunião – disse a Jujuba.

            Então, a reunião teve início com as palavras da Gabriela.

            _ Amiguinhos e amiguinhas, debaixo desta linda castanheira digo que a reunião comece.  A pauta é o salvamento dos nossos amiguinhos gatinhos – disse a mandona.

            A Mariana levantou a mão para falar.  A Gabriela olhou para ela e falou para todos prestarem atenção nas palavras da colega.

            _ Meus amiguinhos, minha irmã e eu tivemos uma ideia para salvar os gatinhos.  Olha, um de nós vai ficar vigiando a casa do Ubaldo Canastra.  Quando ele sair, a gente pula o muro e entra na casa dele.  Aí, a gente pega os nossos amiguinhos e fugimos – disse a Mariana.

            _ Boa! – concordou a Jujuba.

            _ Mas e se ele aparecer de repente? – quis saber o Diogo.

            _ Bem, é só deixar alguém vigiando a rua.  Quando o Ubaldo Canastra aparecer, quem ficar de vigia avisa os que entrarem na casa – explicou a Mariana.

            _ Legal! – disse a Jujuba.

            _ É, acho que o plano das gêmeas vai funcionar – concordou a Taís.

            Então, a Gabriela perguntou se todos estavam de acordo com o plano, e ninguém foi contra.  A mandona continuou a falar.

            _ Iago, você vai ficar vigiando a casa do Ubaldo Canastra.  Assim que ele sair, você avisa a gente.

            _ Puxa, tudo eu, tudo eu – resmungou o Iago.

            _ E quem vai entrar na casa? – perguntou a Amanda.

            _ Eu, a Aninha, a Mariana, a Jujuba e a Taís – respondeu a Gabriela.

            E assim ficou acertado o plano de resgate dos quatro gatinhos.  Mas como o dia foi passando e nada do Ubaldo Canastra sair de casa, a garotada resolveu brincar de queimado.  E o tempo foi passando, passando, até que as mamães, os papais, as avós, os avôs, as titias e os titios foram chamando a criançada para entrar.  Brincadeira só no outro dia!

 

Capítulo V

O resgate

 

            Domingo!  O primeiro a sair à rua foi o Diogo.  Ele estava brincando de rodar pião.  Logo chegou a Jujuba, que brincou um pouco também.  Depois apareceram a Taís e a Gabriela quase ao mesmo tempo.  A criançada foi chegando aos poucos, mas ainda faltava um.  E você pode adivinhar quem era esse retardatário?  Pois é, era o guloso do Iago, que não se contentava com um pão.  Ele come pelo menos três!  E olha que ele é magrinho que nem palito!  

            E brinca daqui, brinca dali... A meninada estava com todo gás esse dia.  E o Iago, mesmo brincando, não desgrudava os olhos de jabuticaba madura da casa lá no final da rua, onde morava o tal Ubaldo Canastra.

            Ih, agora me lembrei que não disse como era esse tal Ubaldo Canastra.  Pois bem, ele é um homem de mais de 1,80 metro de altura, pelo menos uns cem quilos ou mais, mãos enormes com dedos grossos, as unhas são tão grandes e cheias de sujeira, é calvo e o pouco dos cabelos que lhe restam são quase pretos.  Tem um enorme nariz de batata e sua pele é branca encardida de terra.  Seus olhos são maiores do que os de uma coruja e sua boca mais fedorenta que um penico.  Pois é assim mesmo esse Ubaldo Canastra!

            De repente o Iago começou a pular e apontar para o final da rua.  Mas ele não conseguia dizer coisa com coisa.  Teve criança até que achou que o guloso da rua tinha pirado.  Também teve uma menina, acho até que foi a Jujuba, que achou que o Iago estivesse com dor de barriga.  

            _ O que foi, Iago? – perguntou a Gabriela.

            _ E...e... ele saiu! – gaguejou o guloso.

            _ Ele quem, Iago? – quis saber a Jujuba.

            _ O... o... Ubal...  Ubaldo Canastra! – finalmente falou o Iago.

            _ Vamos turma!  Temos de agir o mais rápido possível – disse a Gabriela.

            Enquanto a criançada corria para frente da casa do Ubaldo Canastra, a Ana Maria e a Mariana correram para o lado oposto.  A Gabriela não entendeu e as chamou.

            _ Ei, Ana Maria!  Ei, Mariana!  Aonde vocês estão indo? – falou a Gabriela.

            _ Vão indo na frente.  A gente só vai pegar umas coisas lá em casa.  Logo estaremos com vocês – respondeu a Mariana.

            Então, a criançada ficou em frente à casa do Ubaldo Canastra.  Em menos de cinco minutos apareceram as gêmeas carregando um balde e cinco ratoeiras.

            _ Pra que vocês trouxeram essas coisas? – quis saber a Gabriela.

            _ Depois a gente fala.  Agora precisamos agir o mais rápido possível – disse a Ana Maria, já pulando o muro da casa do Ubaldo Canastra.

            Então, a Mariana passou o balde e as ratoeiras para a sua irmã.  Depois também pulou o muro.  Vieram atrás dela a Gabriela, a Jujuba e a Taís.  As outras crianças ficaram ajudando o Iago a ver se o Ubaldo estava voltando.

            A porta da frente estava fechada.  Então, as gêmeas tiveram a ideia de olharem se a porta dos fundos estava aberta.  As cinco meninas deram a volta na casa.  A porta de trás também estava trancada.  Mas havia uma janela aberta, só que era um pouco alta para as meninas.

            _ Puxa, e agora? – falou uma desanimada Jujuba.

            _ Já sei!  Já sei! – disse a Taís.

            _ O que você já sabe, Taís? – perguntou a Gabriela.

            _ Olha, a gente vai fazer uma pirâmide humana!  Eu já vi isso no circo – respondeu a Taís.

            _ Pirâmide humana?  Mas o que é isso? – quis saber a Jujuba.

            _ Pirâmide humana é o seguinte: a gente vai subindo uma em cima da outra até ficar bem alta.  Entendeu? – respondeu mais uma vez a Taís.

            _ E isso vai dar certo? – perguntou a Gabriela.

            _ Só saberemos tentando – disse a Ana Maria.

            Como a Gabriela era a mais velha e mais forte, ela ficou sendo a base da pirâmide.  Então, ela encostou o corpo na parede da casa e falou para a Jujuba subir nos seus ombros.  Ajudada pelas outras meninas, a Jujuba conseguiu ficar em cima da Gabriela.  Depois foi a vez da Ana Maria subir nos ombros da Juliana.  Ela foi ajudada pela Taís e pela Mariana.  Com bastante esforço ela conseguiu.

            _ Vai logo, Ana Maria, pula logo a janela, pois não estou aguentando todo esse peso – disse a Gabriela.

            A Ana Maria não perdeu tempo e entrou na casa através da janela.  Ela estava no quarto do Ubaldo Canastra.  Estava tudo escuro, apesar de ainda ser dia.  É que as cortinas estavam todas fechadas.  Tratou logo de descer a escada da casa de dois andares e foi abrir a porta de trás para a sua irmã e as suas amigas entrarem.  Por sorte a chave estava na porta.

            Assim que as meninas colocaram os pés na casa, ouviram um barulho...

            _ Miaaauuuuuu!

    _      É a Sonjinha!!! – explodiu de alegria a Mariana.

            _ Acho que o som veio dali – disse a Taís.  

            As meninas foram andando sempre de mãos dadas pela sinistra casa.  Os miados continuaram, agora mais fortes, agora de todos os quatro gatinhos.  Finalmente descobriram onde o malvado Ubaldo Canastra os havia escondido: presos numa gaiola dentro do banheiro.

            Assim que os gatinhos viram as corajosas meninas, eles começaram a miar, principalmente a Sonjinha e o Dunguinha.  As garotas soltaram os gatinhos.  A Gabriela pegou o Elvis no colo, a Jujuba ficou com o Virgulino, a Taís carregou a Sonjinha e o Dunguinha.  

            _ Meninas, vocês vão indo na frente.  A gente tem de preparar uma surpresa pra esse malvado Ubaldo Canastra – disse a Ana Maria.

            _ O que vocês vão fazer? – quis saber a Gabriela.

            _ Depois você vai saber – disse a Mariana.

            As amigas das gêmeas, então, saíram da casa carregando todos os gatinhos.  Lá fora estavam as outras crianças esperando ansiosas pelas cinco meninas.  Mas só apareceram três.

            _ Onde estão as gêmeas? – perguntaram todos quase ao mesmo tempo.

            _ Elas já estão vindo.  Foram preparar uma surpresa pro Ubaldo Canastra – explicou a Gabriela.

            O tempo foi passando, passando...  Dez minutos!  Quinze minutos!  Vinte minutos!  

            _ O Ubaldo Canastra está voltando, galera! – anunciou o Iago.

            _ Temos de avisar as gêmeas! – disse a Jujuba.

            Mas não foi preciso chamá-las, pois antes mesmo do malvado raptor de gatinhos aparecer na rua, as duas irmãs saíram triunfantes da casa.  Aí, todos correram para debaixo da amendoeira que ficava em frente à casa da jujuba.

            _ O que vocês fizeram lá dentro? – perguntou o Iago.

            _ A gente colocou água no balde.  Depois o pusemos em cima da porta do quarto do Ubaldo. E espalhamos as ratoeiras pelo chão – respondeu a Ana Maria. 

            _ Ué, mas pra que vocês fizeram isso? – perguntou a Amanda.

            Mas antes que uma das gêmeas respondesse, a criançada ouviu vários gritos vindos da casa do final da rua.  Logo após surgiu o malvado Ubaldo Canastra todo molhado e com cinco ratoeiras penduradas pelo corpo: uma em cada mão, uma em cada orelha e uma pendurada no nariz de batata.  A criançada caiu na gargalhada.  E essa foi a última vez que todos naquela rua viram aquele homem malvado que, segundo as pessoas, pegava gatinhos para fazer churrasquinho e tamborim.  

            As duas irmãs continuam morando na mesma rua, uma rua sem saída, num bairro bem distante, numa cidade bem grande, num país chamado Brasil.  Talvez seja até uma rua bem parecida com a sua.

                                                                                            

Fim

  • Nota de esclarecimento: O conto "O mistério da rua sem saída" saiu no formato de folhetim pelo Notibras entre os dias 18/06/2023 e 23/06/2023. Foi feita pequena alteração no texto, a pedido da redação do jornal, para que a história se passasse no Distrito Federal. Todavia, quando foi escrita, foi inspirada na rua Costa do Marfim, localizada na cidade do Rio de Janeiro. Todas as crianças retratadas nesse conto são reais, inclusive a grande parte dos animais.
  • 1) https://www.notibras.com/site/quadra-famosa-das-gemeas-amigos-gato-cao/
  • 2) https://www.notibras.com/site/meninada-atira-pau-no-gato-e-virgulino-some/
  • 3) https://www.notibras.com/site/antes-da-cobra-cega-somem-mais-dois-gatos/
  • 4) https://www.notibras.com/site/suspeito-fica-em-casa-e-plano-de-resgate-e-adiado/
  • 5) https://www.notibras.com/site/ratoeiras-ficam-presas-em-ubaldo-e-gatos-livres/