Introdução
Você acredita em que as coisas não
acontecem por acaso? Não, não sou espírita ou algo parecido. Confesso que sou
até meio descrente dessas coisas. No entanto, há mais de quatro anos minha vida
tomou um rumo inesperado, bem diferente daquilo que eu havia planejado...
Meu nome é Carlos Cesario
(certamente você já deve ter ouvido falar de mim ou, até mesmo, visto minha
fotografia em algum jornal), 32 anos, casado, duas filhas, médico veterinário
e... foragido! Mas antes de você me condenar, deixe-me contar a minha história.
O sonho
Nascido e criado em Copacabana,
órfão de pai aos 15 anos, sempre fui uma criança meio tímida. E antes que algum
psicólogo de plantão tente encontrar algum desvio de comportamento decorrente
da minha infância, já vou lhe adiantar que fui tímido, aliás, reconheço que
ainda sofro desse mal (se é que se pode chamar timidez de mal), mas sempre fui
muito feliz, sem grandes traumas, mesmo durante minha adolescência, época já
conturbada por natureza, quando perdi meu pai, vítima de um ataque cardíaco aos
42 anos.
Minha mãe, professora primária,
talvez tenha sentido mais a falta de meu pai, que, afinal, era um bom marido,
sempre carinhoso, contador de piadas e muito gentil. Depois de alguns anos, ela
acabou se casando novamente. O eleito foi um senhor goiano, viúvo, que veio
para o Rio no início dos anos 70, logo após o Brasil ganhar o lendário
tricampeonato mundial de futebol no México. No começo tive ciúme do
relacionamento dos dois, mas acabei me acostumando e, com o tempo, até gostando
do seu Francisco. Passamos até a ir ao Maracanã ver o nosso time do coração – o
Botafogo – jogar.
* * * * *
Quando
chegou a época do vestibular, não tive dúvida: medicina veterinária na Rural
(Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro)! Não encontrei muita resistência
em casa, apesar da minha mãe sempre ter sonhado com o seu único filho dentista.
Então, fiz as provas, passei e, dentro de alguns meses, segui meu destino. Fui
estudar em Seropédica, que ainda era distrito de Itaguaí – RJ. E como era muito
distante do Rio, só retornava para casa nos finais de semana. Lá na Rural
consegui vaga no alojamento, onde fiquei de 1988 até 1993, quando me formei.
Bons tempos: muito estudo, muita festa, algumas namoradas, pouca grana.
* * * * *
Antes mesmo de me formar, já vinha
fazendo alguns estágios: nos finais de semana não saía da clínica do Dr. Paulo
Lima Rosa, em Ipanema. Lá na Rural, sempre que tinha tempo, corria para os
hospitais veterinários para tentar aprender alguma coisa. Também fiz estágio na
suinocultura, onde aprendi muito com o Airton e o Beto, dois irmãos que
tratavam dos porcos. Com toda essa prática, não foi difícil arrumar emprego.
Fazia plantões em algumas clínicas e, também, passei a fazer atendimento em
domicílio. Como não tinha grandes despesas, já que continuava morando com minha
mãe, em pouco mais de um ano já tinha comprado um carro, um Passat ano 79, e
juntado uma boa grana. Eu tinha conta numa agência do Banco do Brasil em
Copacabana mesmo. Foi lá que acabei conhecendo aquela que viria a ser minha
esposa.
Elaine era, ou melhor, ainda é uma
mulher linda! Morena, 50 quilos bem distribuídos em não mais que 1,56m de
altura, cabelos encaracolados, olhos de um castanho profundo, sorriso de marfim
com direito a lindas covinhas enfeitando sua face. Ela é, realmente, uma mulher
muito bonita! Assim que a vi caí de quatro! Não foi fácil conquistá-la, mas,
enfim, depois de muita luta, ela reparou em mim. E, então, tudo foi tão
rápido... Logo estávamos procurando apartamento. Casamos oito meses após o
nosso primeiro beijo!
Em janeiro de 1994 nasceu nossa
primeira filha, Patrícia. Morena como a mãe, grandes olhos escuros, linda
(corujice?), sem covinhas.
* * * * *
Bernardo, um colega da Rural, me propôs
sociedade numa clínica veterinária que ele estava montando em Botafogo, na rua
Bambina. Eu precisava arrumar R$ 8.000,00! Tinha R$ 3.400,00 em aplicações. Meu
padrasto me emprestou R$ 2.000,00. O restante a Elaine conseguiu através de um
empréstimo do Banco do Brasil. Fiquei todo endividado!
Em outubro de 1994 as portas da
Clínica Veterinária Santa Ignez foram abertas. A nossa clínica logo ficou
conhecida não só no bairro, mas em toda a Zona Sul, graças aos dotes
publicitários do meu sócio. E seis meses após termos iniciado nossas
atividades, eu já estava quitando minha última dívida. Falando dessa forma até
pode parecer fácil, que eu estava nadando em dinheiro. Não foi bem assim, pois
trabalhei de segunda a segunda, sem direito a um dia sequer de descanso. Aliás,
ser médico veterinário é estar de plantão 24 horas por dia, todos os dias, pois
sempre temos de contar com o inesperado.
Os próximos anos foram ainda
melhores, conseguimos ampliar a clínica, montamos um pet shop e, em 1997,
construímos um hotel para animais, com direito a adestramento opcional. Tudo
corria tão bem que Elaine e eu decidimos ter outro bebê. Em junho de 1997 a
menstruação não veio... Minha mulher carregava no ventre mais um fruto do nosso
amor. Nossa felicidade estava a mil!!!
Até aqui, tudo bem. Logo depois
minha vida começou a dar uma guinada de 180 graus...
O pesadelo
Num desses domingos chuvosos de
julho, quando a Cidade Maravilhosa ganha a aura paulistana, cheguei em casa por
volta das 14h. Elaine e Patrícia já estavam arrumadas, me esperando para
almoçarmos fora. Tomei um banho a jato, me vesti e logo estávamos a caminho da
pizzaria Bella Blú, na rua Siqueira Campos, em Copacabana. Pedimos uma pizza
grande, meia calabresa, meia frango com catupiri – Elaine adora -, dois sucos
de laranja e uma Coca-Cola para mim.
Patrícia estava animada com a
gravidez de Elaine. Vivia perguntando se poderia tomar conta do bebê, que se
chamaria Carla, caso fosse menina. Não havíamos entrado em consenso quanto ao
nome de um possível menino. E enquanto conversávamos, a pizza ia se evaporando
entre uma garfada e outra. E antes de pedirmos a conta, Patrícia quis tomar
sorvete de chocolate. Eu fui de soverte de morango, Elaine matou seu desejo de
comer pudim de leite.
No caminho de volta passei numa
banca e comprei jornal. Logo chegamos em casa, onde fomos “recebidos” por dois
homens de mais ou menos 20 anos: um branco e outro moreno, este armado com um
revólver. Um deles, não me lembro bem qual, foi logo nos intimidando:
_ Nada de pânico! Isto é um assalto!
Não façam besteira e nada acontecerá a vocês!
Perguntaram onde escondíamos os
dólares, as joias. Não temos o costume de guardar grandes somas de dinheiro em
casa, também nunca possuímos dólares ou joias, a não ser nossas alianças e um
cordão de ouro que dei a Elaine no nosso primeiro aniversário de casamento. E
em cada negativa, os bandidos iam ficando mais nervosos. Ameaçaram nos matar
caso não colaborássemos. Tentei dialogar, mas só o que consegui foi um tapa na
cara. Eles estavam transtornados. Os dois, então, trancaram minha filha e eu no
banheiro e levaram minha esposa para o nosso quarto. Comecei a pensar no pior!
Eu tinha de sair daquele banheiro.
Tentei forçar a porta, enquanto ouvia o choro desesperado de minha mulher,
prestes a ser violentada por aqueles perturbados. Olhei para Patrícia, que
também chorava, suplicando através daqueles dois grandes olhos assustados para
que eu fizesse alguma coisa, para salvar a sua mãe. Puxa, você nem imagina como
é desesperador a impotência diante daqueles olhos tão inocentes! Olhei o
basculante do banheiro, que dava para a lateral externa do prédio. Enrolei a
toalha de rosto na mão e soquei o vidro do basculante. Com dificuldade, não me
importando com mais coisa alguma, até me cortei nos cacos de vidro, consegui
sair do banheiro, ficando a mais de 10 metros de altura da calçada. Em pé no
parapeito de menos de 20 centímetros, tentando não olhar para baixo, escorado
na parede para não perder o equilíbrio, fui rumo à janela mais próxima, a da
sala. Seis metros me afastavam do meu objetivo. Algumas pessoas me olhavam lá
embaixo, enquanto eu prosseguia a passos de tartaruga tentando transpor os seis
metros mais longos de toda a minha vida. De vez em quando eu parava, respirava
um pouco, tentava colocar as ideias em ordem. Não sei quanto tempo levei nessa
jornada. Por vezes tentei voltar atrás, mas não conseguiria encarar os olhos da
minha filha outra vez. E a minha mulher continuava nas mãos daqueles dois
cretinos. Ao alcançar a janela da sala, constatei que estava apenas encostada,
a cortina totalmente fechada, entrei em meu apartamento, voltando a ouvir o
choro de Elaine, que implorava pelo amor de Deus para que eles parassem. Peguei
uma pequena estátua de um cachorro, que servia de enfeite na estante, e, com
toda a fúria que jamais suspeitei ter, avancei contra aqueles dois facínoras,
sem pensar que eles estavam armados, que poderiam nos matar. Consegui acertar o
sujeito branco, que estava consumando o ato, na cabeça. Este pareceu desmaiar,
rolou para o chão do quarto. O outro canalha atirou em minha direção, mas por
sorte ou sei lá o quê a bala não me acertou, indo de encontro à parede. Segurei
em sua mão, a que portava o revólver, e desferi-lhe um soco no meio da cara. O
revólver caiu de sua mão. A minha raiva era tamanha que o arremessei, não sei
com que força, pela janela do quarto. O seu corpo atravessou o vidro, indo
parar na calçada, que recebeu seu sangue e miolos. Voltei os olhos para o
ladrão que tinha recebido o golpe da estatueta. O marginal estava meio grogue,
tentou se levantar. A arma estava entre mim e ele, que tentou pegá-la. Pisei
com tanta força na sua mão. Depois chutei sua cabeça, que balançou como um
pêndulo. Peguei a arma e disparei não sei quantas vezes naquele odiento ser que
acabara de estuprar minha mulher. Depois fiquei sabendo que foram cinco tiros.
Minha mulher chorava e soluçava como
uma criança. Abracei-a com carinho e, também, comecei a chorar. Levantei-me e
fui ao banheiro, onde minha filha estava toda encolhida dentro do box. Tomei-a no colo e a levei para o seu
quarto. Voltei ao meu quarto para pegar minha mulher, a cobri com meu roupão e,
então, a escorei até o quarto de Patrícia. Liguei para a polícia. Algum tempo
depois, talvez 20 minutos, entraram dois policiais, Arruda e Gomes. Logo atrás
veio aquele que, graças aos seus esforços, se tornaria meu grande aliado: o
detetive Celso Machado.
Ficamos sabendo que os marginais
forçaram a porta da área de serviço para invadir nosso apartamento. Só não
soubemos como eles teriam entrado no edifício, pois domingo é o dia de folga do
seu José, único porteiro. Provavelmente devem ter aproveitado a oportunidade
quando um morador estava entrando ou saindo.
Depois de todos os procedimentos no
local do crime, o detetive Celso nos informou que teríamos de acompanhá-lo até
a delegacia. Minha mulher também teria de fazer exame de corpo de delito.
Chamei meu padrasto, que se encaminhou até o local para buscar Patrícia, que
ficaria no apartamento da minha mãe, ali mesmo em Copacabana.
Na delegacia fui aconselhado a
procurar um advogado, pois havia assassinado duas pessoas. Achei graça. Por que
eu, que tive a casa invadida, a mulher violentada por dois marginais, teria de
arrumar um advogado? Mas essa era a mais pura verdade!
Estado de choque
Depois do depoimento e do exame de
corpo de delito, Elaine e eu fomos para o apartamento da minha mãe com dona
Ruth e seu Álvaro, pais de minha mulher. Havia alguns repórteres na saída da
delegacia, que tentaram nos entrevistar, em vão, e bateram algumas fotos.
Passamos a noite com minha mãe. Os pais de Elaine também dormiram lá. Minha
mulher precisaria muito do apoio de todos, pois foi a que mais sofreu. E também
estava grávida de dois meses...
Segunda-feira!
Alguns jornais comentavam o ocorrido
na véspera. Ficamos sabendo, por exemplo, a idade de um dos marginais, o
moreno: 15 anos! Este era identificado como R.C.S., morador do morro Dona
Marta, em Botafogo, foragido da Febem e “avião” – aquele que leva a droga da
boca de fumo ao viciado. O outro ainda não havia sido identificado pela
polícia.
Elaine teve várias crises de choro
durante o dia. Tentei confortá-la, todos tentamos, mas quando achávamos que ela
estava melhorando, nova crise nervosa a possuía. Era desesperador ver minha
mulher, a pessoa mais importante da minha vida, sofrendo por causa da
bestialidade de dois cretinos. A minha vontade era de matá-los quantas vezes
mais fossem necessárias. A revolta me tomava por completo!
Patrícia, minha pequena Patrícia,
com apenas três anos de idade, tendo de passar por tudo aquilo. Eu a abraçava,
chorava com ela, que não entendia muito bem o que havíamos passado. Eu me
perguntava se ela ficaria com algum trauma. Puxa, mas como não ficar?
Minha mulher ficou de licença do
Banco do Brasil, Patrícia voltou à escola na quarta-feira seguinte ao ocorrido.
Retornei à clínica na quinta-feira. Precisava retomar meu trabalho, precisava
ocupar minha mente. Mas ligava de meia em meia hora para Elaine. Ela continuava
assustada, não queria sair de casa, parecia se culpar de algo que todos
sabíamos não ter culpa. Tentávamos consolá-la de todas as formas. Pensamos até
em fazer uma viagem para o sítio de uma tida dela, que morava em Itaipava –
Petrópolis – RJ. Mas minha Elaine nem dizia sim, nem dizia não.
Elaine e Patrícia começaram a
freqüentar o consultório de uma psicóloga, Dra. Marlene. Patrícia foi a 10
sessões e, aparentemente, havia superado o trauma. Elaine, no entanto, foi
paciente da Dra. Marlene por um longo período.
Cadeia
No sábado caiu mais uma bomba nas
nossas vidas: três viaturas da polícia pararam em frente à minha clínica. Não
sei quantos policiais me algemaram no exato momento em que eu operava o tumor
de mama de uma cadela da raça Boxer. Fui jogado como um saco de batata dentro
de um camburão e levado para a delegacia, onde me informaram que responderia
pelos dois assassinatos, sendo uma das vítimas Márcio Sampaio Pessoa de
Alcântara, 22 anos, universitário, filho do senador Camilo Pessoa de Alcântara;
o outro, Roberto Carlos dos Santos, 15 anos, estudante. Também estava sendo
acusado de tráfico de entorpecentes e formação de quadrilha, entre outros
crimes. Tentei falar com o detetive Celso, mas este fora afastado do caso. O
novo encarregado seria, a partir daquele momento, o detetive Plínio Silva. O
que havia sido um conselho, passou a ser gênero de primeira necessidade:
precisava urgentemente de um advogado!!!
A imprensa caiu em cima de mim! O
filho do senador era apontado como amante de minha mulher. O outro marginal
era, segundo as “investigações”, membro da minha quadrilha. Deixava, naquele
exato momento, de ser um cidadão de bem. Agora era conhecido como “Doutor”, um
perigoso traficante de drogas. Fiquei perplexo com toda essa história, ou
melhor, estória, já que não havia qualquer fundamento. Isso tudo parecia uma
piada de muito mau gosto, e que, a qualquer momento, alguém iria aparecer e
falar que tudo não passava de uma “pegadinha”, uma brincadeira. Comecei a viver
meu maior pesadelo até então e, pior, não estava dormindo, era tudo realidade.
* * * * *
Antes mesmo de eu ter a chance de
telefonar para alguém, minha mãe, seu Francisco e meu sogro chegaram à
delegacia, já que Bernardo os avisara assim que os policiais me prenderam na
clínica. Minha mãe estava muito nervosa, veio me ver e me abraçou. Isso me
confortou de uma maneira que não sei descrever, me senti como se estivesse
dentro de seu ventre.
_ O que estão fazendo com você, meu
filho?
_ Não se preocupe, mamãe, tudo vai
se esclarecer.
Na verdade, eu não tinha tanta certeza
disso, pois logo percebi que havia mexido em casa de marimbondo. Matar um filho
de senador da República não é algo que a gente faça e fique impune, mesmo que
ele invada a sua casa, ameace a sua família e estupre a sua mulher. Fiquei
realmente com medo, não só por mim, mas pela minha família. Eles estariam
correndo perigo de vida?
* * * * *
Meu
sogro contatou um velho conhecido, Dr. José Basílio da Silva Júnior, que, a
partir daquele momento, passou a ser meu advogado. Ele é um homem alto, mais de
1,80m, uns 90 quilos, cabelos grisalhos, olhos claros, voz grave, uns 70 anos.
Dr. Basílio foi bem honesto comigo,
não me escondeu que o meu caso seria uma batalha muito difícil, pois estaríamos
enfrentando pessoas realmente influentes. Teríamos de remontar toda a história,
parte a parte, não podendo deixar o mínimo detalhe de fora. Testemunhas seriam
pontos-chave. Testemunhas! Quem me viu naquele domingo? Alguns clientes, meu
sócio, os funcionários da clínica, o garçom do Bella Blú... Essas foram as pessoas
que me viram no dia do crime que, volto a dizer, não foi cometido por mim, mas
sim por aqueles dois salafrários. Teve também o cara da banca de jornal, mas
talvez nem se lembrasse de mim.
* * * * *
Segundo a perícia policial, não
houve arrombamento, e o laudo do médico legista não apontava estupro, mas sim
de uma relação consensual. Tudo não passou de mais um caso de marido traído,
que matou o amante da mulher e, para tentar incriminar a vítima, matou seu
comparsa de tráfico de drogas, o tal Roberto Carlos dos Santos. Mas que
perícia? Que laudo do IML? E o laudo feito no dia do crime, o que foi feito
dele? E o laudo do IML, onde foi parar? E quem era esse tal Joaquim Pedreira,
que assinou o novo laudo? Ele nem fazia parte da equipe presente no meu
apartamento naquele fatídico dia. De onde ele tirou essa conclusão? E o laudo
médico que comprovava o estupro sofrido pela minha mulher, que fim levou? No
lugar dele havia um outro laudo, assinado por um tal Ivan Valadares, que nunca
havia visto a minha mulher. E o detetive Celso Machado, que fim levou? Por que
o caso estava sendo conduzido pelo detetive Plínio Silva? E por que a polícia
demorou tanto tempo para identificar o filho do senador Camilo Pessoa de Alcântara?
Será que eles não sabiam mesmo... Ou, então, estavam tentando ganhar tempo até
inventarem uma história ou, repito, estória?
Meu advogado solicitou um habeas corpus, que foi negado. Eu
teria de esperar pelo julgamento na cadeia. Como tenho curso superior, fiquei
em uma cela individual. Pois é, meu consolo era saber que teria exatos 12
metros quadrados só para mim.
Minha mulher veio me ver à tardinha.
Conversamos por mais ou menos meia hora. Falei para ela manter a calma, que
sairíamos daquela confusão toda. Disse que comemoraríamos com uma viagem pelo
nordeste assim que as coisas ficassem esclarecidas. Ela chorou, nos abraçamos,
nos beijamos e fizemos juras de amor eterno.
Testemunhas
Quando completei três dias preso,
seu José, o porteiro do meu edifício, veio depor. Ele disse que nunca havia
visto o filho do senador Camilo Pessoa de Alcântara nem sabia de envolvimento
algum dele com Elaine. Disse que eu era um ótimo morador, nunca ouviu qualquer
briga entre minha esposa e mim, muito pelo contrário, éramos o casal mais
apaixonado de todo o prédio. Em todos os pontos do interrogatório, seu José me
foi extremamente favorável, já que não faltou com a verdade. E olha que o
delegado, Antônio Carlos Pires Resende, lembrou-se de que falso testemunho era
crime. Seu José depois veio me ver. Contou que o delegado lhe havia dito pelo
menos umas cinco vezes que falso testemunho dava cadeia, numa clara tentativa
de intimidação.
No mesmo dia, dona Solange, nossa
vizinha, também se apresentou para depor. Disse que só ouviu os tiros, não
ouviu discussão alguma, o que só veio reforçar a verdade. Contou que não era
nossa amiga, mas que também nunca teve qualquer motivo de discórdia conosco.
Não pode garantir que vivíamos bem, mas jamais testemunhara qualquer briga
entre Elaine e mim. Mais um testemunho a meu favor! Comecei a ter pensamentos
positivos, ninguém conseguiria distorcer a verdade, mesmo usando a força da
máquina político-econômica.
Vieram seu Ernesto e dona Felícia,
casal que morava no sétimo andar, o mesmo que o meu. Eles foram bem mais
generosos comigo. Falaram que eu era um excelente vizinho, muito prestativo –
certa vez atendi o poodle deles, já de madrugada, quando estava vomitando e
tendo diarreia, consequência de um pedaço de mortadela que ele comera. Também
disseram que Elaine e eu formávamos um lindo casal, sempre sorridente. Cada vez
eu ia ficando mais otimista.
Bernardo também foi chamado a depor,
depois veio me visitar. Ele me disse que o delegado chegou a coagi-lo a dar um
depoimento desfavorável a mim. “Você pode se complicar, meu rapaz”, o delegado
teria dito. Meu sócio, no entanto, não se deixou abater por essas ameaças, só
falando coisas altamente favoráveis a mim.
Uma testemunha se cala
Já fazia quase um mês que eu estava
confinado na minha “suíte” de 12 metros quadrados. Dr. Basílio, que vinha me
ver quase diariamente, trouxe uma notícia triste: seu José havia falecido!
Atropelado na av. Brasil na madrugada de sábado para domingo. Fiquei abalado,
pois tinha certa estima por aquele homem, sempre prestativo, sempre com um
sorriso no largo rosto de origem indígena. Era paraibano, estava no Rio há mais
de 15 anos, sendo oito trabalhando no meu edifício. Pensei quase que
instantaneamente na dona Mara, sua esposa. Como deveria estar aquela pobre
mulher, agora sem o homem que fora seu companheiro por tantos anos?
_ Perdemos uma das nossas melhores
testemunhas, talvez a melhor.
_ O que o senhor está falando? Seu
José acaba de morrer, e o senhor vem me falar em testemunha?
_ Carlos, sinto muito pelo seu José.
Já estive com a senhora Mara e lhe dei meus mais sinceros pêsames. Ela está
reagindo bem, dentro do possível, levando-se em conta que acabou de perder o
marido. Mas, Carlos, como seu advogado, não posso deixar de pensar em como a
perda do seu José poderá afetar a nossa defesa.
Dr. Basílio estava certo! Seu José
era um grande trunfo... Àquela noite, no entanto, meus pensamentos foram
dedicados à memória daquele homem simples, daquele paraibano incapaz de fazer
mal a uma mosca, contrariando todos os ditos populares sobre as pessoas daquele
estado nordestino, cuja capital é João Pessoa. Seu José não era de João Pessoa,
mas de Campina Grande!
Leitura
Bernardo também me visitava com
certa frequência. Trazia notícias da clínica. Disse que os clientes estavam ao
meu lado, isto é, em sua maioria, já que alguns até falavam que eu tinha cara
de traficante, marido traído etc. Também não os culpo, tamanha era a campanha
da imprensa contra mim. Por isso mesmo, passei a não ler os jornais. Comecei a
me dedicar à leitura de livros. Li vários: Estrela
Solitária,
de
Ruy Castro; Assim falava Zaratrusta, de Friedrich Wilhelm
Nistzsche; alguns clássicos de Machado de Assis como Esaú e Jacó,
Memórias Póstumas de Brás Cubas, Dom Casmurro – com certeza o mais famoso de todos – e Quincas Borba, que é o meu
favorito, com a insinuante Sofia.
Depoimento de Elaine
Minha mulher veio depor numa
terça-feira. O delegado tentou intimidá-la, da mesma forma que havia feito com
Bernardo e o falecido seu José, mas ela estava bem amparada pelo Dr. Basílio.
Não seria com minha esposa que a polícia arrancaria um depoimento desfavorável
a mim. Eles teriam que se esforçar mais para encontrar alguém que pudesse dar
um testemunho contra mim, se é que isso fosse possível.
O delegado perguntou há quanto tempo
ela estava saindo com o filho do senador. Ela foi taxativa: _ Doutor, nunca em
minha vida havia visto esse canalha! Sou uma mulher casada, amo meu marido e
nunca o traí. Esse tal filho do senador invadiu meu apartamento e me violentou.
O senhor bem sabe disso, mas continua com esse joguinho não sei por quê.
Depois de depor, minha mulher e meu
advogado vieram conversar comigo. Eles me contaram que havia um clima muito
desfavorável, mesmo não existindo sequer uma prova contundente contra mim.
_ Não posso garantir, Carlos, mas há
algo estranho no ar. Posso até sentir o cheiro de podre – disse Dr. Basílio.
O médico e o monstro
A imprensa tentava de todas as
formas me entrevistar, mas sempre havia uma barreira policial impedindo o
contato. Eu queria falar, tinha de me defender. Dr. Basílio não era contrário,
mas temia que a minha inexperiência perante a imprensa pudesse pôr tudo a perder.
Mas eu precisava falar, tinha de começar a combater todas as mentiras que
estavam sendo ditas a meu respeito. As matérias mais amenas me chamavam de Dr.
Jekyll, numa clara alusão ao clássico da literatura O Médico e o Monstro – Dr. Jekyll e Mr. Hyde, de Robert Louis
Stevenson. E eu ali, sem poder me defender disso tudo, trancafiado naquela cela
de exatos 12 metros quadrados.
Patrícia
Saudade de Patrícia! Nunca havia
ficado mais de dois dias sem vê-la. E, agora, essa situação me obrigava a ficar
longe da minha menina de olhos tão grandes. Minha esposa havia dito para nossa
filha que eu estava viajando. Quando isso tudo terminaria?, eu me perguntava a
cada minuto, se é que algum dia retornaria dessa longa viagem.
Sei de julho de 1997, quando minha
vida tomou um rumo bem diferente daquele que eu esperava. Sem querer parodiar o
poeta, tudo eram flores. Lamentações não me faltaram quando eu ficava sozinho
nos dias que passei trancafiado naqueles malditos 12 metros quadrados.
Libélula
Já corria o mês de setembro, quando
Elaine foi l evada às pressas para o hospital Casa São José, no Humaitá. Estava
com sério risco de perder nosso bebê. O médico que estava fazendo o pré-natal,
Dr. Marcius Batista, depois de examiná-la, recomendou repouso absoluto por duas
semanas. Elaine estava com deslocamento de placenta, com possibilidade de
aborto. Após esse período, Dr. Marcius faria nova ultra-sonografia e, se fosse o caso, a liberaria para pequenas
atividades.
* * * * *
Poucos dias após o susto do risco de
aborto, um tal Antônio Costa, vulgo Libélula, veio depor. Segundo ele, que
cumpria pena por tráfico de entorpecentes em Bangu I, eu era o chefe da boca de
fumo do Morro Dona Marta, em Botafogo. Libélula também disse que eu o estava
ameaçando de morte há vários meses e, por isso, resolveu abrir o bico.
Libélula, quem era esse tal de Libélula? Eu nunca o havia visto. Por que,
então, ele estava dando um falso testemunho contra mim? A troco de quê? De
qualquer forma, a polícia, os homens da política, não sabia quem, começavam a
ganhar terreno. Era a tal coisa podre que o Dr. Basílio havia pressentido que
começava a feder.
No dia seguinte, outro detento,
também de Bangu I, veio depor. Seu nome era José Carlos da Silva, vulgo Preto,
também condenado por tráfico de drogas. Seu depoimento não foi muito diferente
do seu colega de presídio. Aliás, até parecia que tinham ensaiado juntos. Se,
por acaso, houvesse a modalidade “Depoimento sincronizado” nas Olimpíadas, com
certeza os dois ganhariam a medalha de ouro. Preto só acrescentou que me ouvira
falar que mais dia, menos dia, eu mataria o amante de minha mulher. As pessoas
por trás de toda essa farsa marcavam outro ponto com mais esse falso testemunho.
* * * * *
Novo pedido de habeas corpus – já era o quarto em menos de dois meses. Nova
negativa! Se quisesse sair da minha “suíte”, teria de conseguir isso através da
minha absolvição no julgamento, que seria em abril ou maio de 1998. Mas do
jeito que as coisas estavam caminhando, comecei a ficar desacreditado.
* * * * *
Elaine, depois de duas semanas em
repouso absoluto (ela presa na cama; eu, na minha “suíte”, ironia do destino),
já que sua mãe montara guarda 24 horas por dia, foi à clínica do Dr. Marcius,
que fica em Ipanema, na rua Barão da Torre. Nosso bebê estava bem, mas o médico
não a liberou totalmente. Ela poderia fazer algumas coisas, mas nada de esforço
muito grande. E isso a deixava cada dia mais estressada.
_ Carlos, não aguento mais! Por que
você deixou que tudo isso acontecesse com a gente?
_ Meu amor, tudo vai acabar bem...
_ Acabar bem? Como você pode
garantir que essa droga vai acabar algum dia?
Elaine começava a chorar, me
abraçava em busca de conforto, de apoio. Ela estava muito sensível, o que já é
próprio de uma mulher grávida. E ainda tinha de passar por toda essa bagunça
que nossas vidas havia se transformado.
* * * * *
Dois dias depois dessa crise nervosa
de Elaine, houve uma tentativa de fuga na delegacia. Dois presos foram
baleados. Soube mais tarde que um deles morreu a caminho do hospital. O outro
chegou em estado grave, falecendo de madrugada. Os presos que participaram da
tentativa frustrada de fuga foram levados, um a um, para a sala no fundo da
delegacia, de onde se ouviam gritos de dor e desespero. Uma coisa é saber que
existe tortura através da imprensa. Outra, completamente diferente, é você
testemunhá-la.
* * * * *
As horas foram se
transformando em dias, os dias em semanas, as semanas em meses... Já estávamos
em dezembro! A imprensa continuava com a campanha contra mim. As últimas
notícias falavam que “a Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro é famosa
por suas festas regadas a drogas”. Palavras de certos veículos de comunicação,
que não se preocupavam em atacar uma instituição de ensino superior de renome
internacional só para tentar justificar o “assassinato de um respeitável membro
de nossa sociedade”.
Detentos
Véspera de Natal! Minha família, com
exceção de minha sogra – que ficara tomando conta da Patrícia –, e meu amigo
Bernardo vieram me ver. Trouxeram um verdadeiro banquete, que acabei dividindo
com os outros presos. A grande maioria deles sequer recebeu uma única visita em
todo o período que passei ali. Eles ficaram muito agradecidos. Depois de alguns
meses convivendo com aqueles homens, muitos bandidos de segunda categoria, ou
seja, protagonistas de pequenos furtos, acabei por me aproximar. Não posso
dizer que éramos amigos, mas devido ao convívio diário, 24 horas por dia,
acabamos por formar certos laços. Minha “suíte” ficava de frente à cela deles,
que era do mesmo tamanho. A diferença é que ali ficavam aglomerados no mínimo
oito detentos, desde o dia em que cheguei.
Sempre que alguém vinha me visitar,
pedia para que trouxesse um ou dois maços de cigarros para os “meus amigos do
quarto de frente”. Não era fumante, mas a maioria dos detentos o era, talvez
pela necessidade de passar o tempo de alguma forma. Um minuto dentro de uma
cela é uma eternidade! Alguns já estavam presos há mais de um ano. Canela era
um desses. Magro como um palito, muito agitado, não parava quieto, andava de um
lado para outro da cela. Aguardava julgamento por tentativa de assalto à mão
armada, mesmo tendo usado um revólver de brinquedo. Outro “das antigas” era o
Curió, mais preto que a própria escuridão, adorava cantar, principalmente as
músicas do Tim Maia. Dizia que havia conhecido o famoso cantor em uma festa. “O
Tim é sangue bão”, Curió comentava.
Já o Seleção, goiano de Anápolis, um sujeito mirradinho, sempre com a escalação
dos escretes brasileiros vitoriosos nas Copas do Mundo de 1958, 1962, 1970 e
1994 na ponta da língua. “Garrincha e Pelé não tem igual, mas o Baixinho
(Romário) joga fácil no meu time”, Seleção parecia até que estava narrando uma
partida, o momento do gol, quando falava. Ele e Curió eram batedores de carteira
(eu nem sabia que ainda havia esse tipo de ladrão), foram presos juntos na
Cinelândia, no centro do Rio. Como se pode notar, há muitos criminosos
desastrados na Cidade Maravilhosa.
* * * * *
_ Estrupador na área! – anunciavam os policias de plantão.
Não tinha mais de 30 anos, estatura
mediana, uns 80 quilos. Foi atirado na mesma cela dos “meus amigos”, onde
passou pelas mais bárbaras situações...
Minha mulher foi estuprada, eu matei
o desgraçado... E o mataria quantas e quantas vezes fossem necessárias! No
entanto, nunca entendi direito essa lógica dos criminosos, que toleram todo
tipo de crime, menos estupro. Estuprador, para eles, não tem perdão! Fiquei até
com pena do mulato, talvez por não estar envolvido emocionalmente. Certamente
foi por causa disso! Quando misturamos sentimento com razão, deixamos de lado a
imparcialidade. Mas como deixar de misturar quando a vítima é alguém que a
gente ama?
Uma voz
Em janeiro de 1998 recebi um
exemplar do jornal A Justiça, onde
constava o seguinte artigo:
“Esse
homem é inocente!
Há
meses estamos vendo, ouvindo e lendo a campanha mais sórdida contra um homem, o
médico veterinário Carlos Cesario. Mas do que o estão acusando? Qual o crime
que esse homem cometeu? Ele roubou? Ele estuprou? Não, nada disso! Nada disso,
eu repito! O Dr. Carlos Cesario apenas defendeu a sua família, defendeu a honra
de sua mulher, que estava sendo brutalmente violentada por um viciado, um
marginal, um filho de senador da República.
Estamos
cansados de ouvir que o filho do senador Camilo Pessoa de Alcântara era amante
da esposa do Dr. Carlos Cesario. Estamos cansados de ouvir que o Dr. Carlos
Cesario é um dos maiores traficantes de drogas do país. Já estamos cansados de
tantas mentiras. O Dr. Carlos Cesario é um respeitável membro de nossa
sociedade.
A
senhora Elaine, esposa do Dr. Carlos Cesario, nunca foi amante desse marginal,
desse filho de senador da República, desse tal Márcio Sampaio Pessoa de
Alcântara. Essa respeitável senhora NUNCA disse uma só palavra que sequer
insinuasse qualquer envolvimento com o filho do senador Camilo Pessoa de
Alcântara. A senhora Elaine ama seu marido, o Dr. Carlos Cesario.
E,
apenas para finalizar, não foi o Dr. Carlos Cesario que disparou contra o
marginal Márcio Sampaio Pessoa de Alcântara, o tal filho de senador da
República. Não, repito, não foi o Dr. Carlos Cesario! Então, quem deu aqueles
tiros? Caro leitor, fomos todos nós, cidadãos decentes, quem demos aqueles
tiros. Mas por quê? Simplesmente porque estamos cansados, fartos de sermos
violentados diariamente por toda essa corja de marginais, que invadem nossos
lares, roubam o fruto do nosso árduo trabalho, estupram nossas mulheres e
filhas. Esses marginais estão nas esquinas, à espreita, esperando a próxima
vítima passar. E, caro leitor, essa próxima vítima pode ser você!”
O autor desse
artigo foi o senhor Raimundo Pacheco, que escreve uma coluna (O Amigo da Verdade) no jornal A Justiça, com tiragem de 35.000
exemplares. Não o conhecia, nunca havia lido uma linha dele, mas, afinal, era
uma voz a meu favor. O senhor Raimundo é amigo do pai de Bernardo, jogam sinuca
juntos há mais de 20 anos.
Uma segunda voz
No dia seguinte à publicação do
artigo do senhor Raimundo Pacheco, meu advogado veio me contar que o jornalista
João Alves de Matos, do jornal televisivo Rio
24 Horas (ele também escreve no jornal A
Cidade), queria me entrevistar. A semente plantada pelo senhor Raimundo
Pacheco começava a germinar...
O Dr. Basílio e eu concordamos que
era a hora de falar. A entrevista foi marcada para o dia 25 de janeiro de 1998,
aniversário da minha filha Patrícia, que estava completando quatro anos.
João é um cara muito carismático,
desses que entram em qualquer ambiente e são logo notados, apesar de não ter
mais que 1,60 metro de altura e, no máximo 55 quilos. Eles nasceu em Formosa do
Rio Preto, interior da Bahia, quase Piauí, em 1963.
Depois das apresentações formais,
Dr. Basílio, João e eu nos sentamos ao redor da mesa que fora colocada
especialmente para a ocasião. Conversamos por mais ou menos uma hora antes da
câmara ser ligada, pois João queria saber qual caminho seguir durante a
entrevista. Ele ficou pasmo com a minha história. A matéria foi ao ar no mesmo
dia. Nas semanas seguintes também, mas em pequenas edições.
Não era a primeira vez que alguém me
defendia publicamente, mas, sem dúvida, era a mais convincente. A matéria era
de uma clareza profunda, discorria sobre o fato de não haver qualquer
testemunha confiável contra mim, pois, até então, somente dois condenados por
tráfico de drogas tinham deposto desfavoravelmente. Minha prisão era uma
arbitrariedade, com claras intenções políticas, já que o senador Camilo Pessoa
de Alcântara era um forte candidato à reeleição, além de apoiar vários
candidatos a cargos menores. Ter um filho viciado já era um prato cheio para os
adversários, mas se alguém descobrisse que também era estuprador, as chances do
senador à reeleição seriam menores do que as do Olaria ganhar o Campeonato
Brasileiro de futebol. Estávamos quase entrando em fevereiro, e as eleições
seriam em outubro. E com toda a pressão política contra mim, sabia que a
batalha judicial seria difícil, mesmo a promotoria não tendo uma única prova no
mínimo aceitável.
O senador Camilo Pessoa de Alcântara
conseguiu o direito de resposta contra a matéria do jornalista João Alves de
Matos. As pesquisas eleitorais acusavam uma queda de 7% para o senador. Ele
tinha de conseguir reverter esse quadro. Acusou o jornalista João de “leviano e
subversivo em busca de promoção pessoal às custas do assassinato brutal de um
jovem promissor”. Só se esqueceu de dizer em que Márcio Sampaio Pessoa de
Alcântara era promissor: a marginalidade!
Detetive Celso
Dr. Basílio veio me ver. Senti que
tinha algo importante para me contar.
_ Carlos, precisamos conversar!
_ O que houve, doutor? Algo com
minha família?
_ Não, não... Acabei de receber um
bilhete, que foi deixado na caixinha do correio da minha casa. É um bilhete do
detetive Celso Machado. Ele quer me encontrar na hora do almoço. Talvez tenha
muito a dizer.
_ Puxa, o detetive Celso? Onde será
o encontro?
_ Na estação do metrô Uruguaiana às
13h. Estarei lá. Só passei aqui para lhe informar, pois estava ansioso para
isso. Mais tarde passarei aqui para lhe contar tudo.
Eram 10h37! O Dr. Basílio não
demorou muito, estava realmente louco para saber o que o detetive Celso tinha a
dizer. Pela primeira vez vi meu advogado sem o seu característico ar de
aristocrata europeu. Ele estava parecendo um rapazola que havia ganhado o
primeiro beijo da namorada, tamanha a sua excitação.
* * * * *
Fiquei tão ou mais
ansioso que o Dr. Basílio. Sabia que o detetive Celso tinha algo para contar.
Mas como ele poderia nos ajudar? Se ele fora afastado do meu caso, com certeza
era contra toda essa farsa que estavam armando contra mim. Estaria ele correndo
risco de vida? Minha mente não parava de tentar adivinhar o que o detetive
diria ao meu advogado. Pensei tanto que mal toquei no meu almoço. À tarde recebi
a visita de Elaine, que me trouxe pizza de calabresa. Pizza de calabresa, foi
isso que comi naquele seis de julho de 1997, pensei. Foi naquele dia que acabei
conhecendo o detetive Celso Machado. E depois de tanto tempo sem notícias dele,
naquele dia comi pizza de calabresa outra vez...
Elaine me visitava umas três vezes
por semana, mas aquela visita era para me contar algo especial: o sexo do nosso
bebê! Era outra menina! Fiquei muito feliz, dei-lhe um beijo tão gostoso, que
até me esqueci dos meus vizinhos da cela da cela em frente. O nome seria Carla,
como já havíamos escolhido. O parto seria por volta do dia 20 de fevereiro,
dali a duas semanas. Lanchamos.
Não contei para Elaine sobre o
reaparecimento do detetive Celso. Preferi falar tudo depois, quando já soubesse
o conteúdo da conversa dele com o Dr. Basílio. Não queria deixar minha mulher
mais apreensiva ainda. Antes das 18h ela foi embora. Como estava barriguda a
minha Elaine! E continuava tão bela!
* * * * *
Quase 20h! Dr. Basílio chega à delegacia
com uma fisionomia digna de um garoto que acabou de vencer um torneio de jogo
de botão. E antes mesmo de me cumprimentar, joga uma piscadela de olho, num
claro sinal de que trazia boas novas.
O meu advogado contou que foi à
estação do metrô como combinado. Já que ele não conhecia o detetive Celso,
ficou atento a qualquer estranho que se aproximasse. Acabou se confundindo por
duas vezes, mas às 13h15 alguém o abordou. Era um homem alto, mais alto até que
o meu advogado, branco, olhos claros, muito forte. Esse homem disse que o
levaria até o detetive Celso. Entraram na estação, pegaram o metrô em direção à
estação Estácio, que é o ponto de transferência da linha 1 para a linha 2.
Pegaram o metrô na linha 2 e desceram na Pavuna, subúrbio do Rio. Tomaram uma
lotação (Kombi) para o Parque Colúmbia, um bairro dentro da Pavuna. Desceram
próximo a um campo de futebol, andaram uns 100 metros, dobraram numa rua sem
saída, entraram numa casa caindo aos pedaços.
_ Detetive Celso?
_ Sim, Dr. Basílio. É um imenso
prazer em conhecê-lo.
O detetive Celso Machado disse que
foi afastado do caso por decisão do delegado João Jorge Leite. Acabou sendo
transferido para Vaz Lobo, subúrbio do Rio. Na mesma época, os policiais Arruda
e Gomes também foram transferidos para Magé, município do estado do Rio de
Janeiro. Em agosto de 1997, pouco mais de um mês após a invasão dos dois
marginais ao meu apartamento, esses
policiais foram mortos durante uma operação policial. Na mesma semana, o
detetive Celso sofreu um atentado, escapando ileso “pelas mãos de Deus”,
segundo suas próprias palavras.
Depois do atentado fracassado, o
detetive recebeu alguns telefonemas anônimos ameaçando não só a sua vida, mas a
de seus familiares – ele tem mulher e um casal de filhos adolescentes. Com
medo, o detetive pegou a família, raspou até o último centavo de sua conta no
banco e, durante a madrugada, rumou para Guarapari, litoral do Espírito Santo,
onde possui alguns parentes. Deixou a família naquela cidade e, duas semanas
depois, retornou ao Rio.
_ Não adianta tentar me esconder. Se
eu tivesse muito dinheiro, fugiria do país, mas não tenho. Então, tenho de
enfrentar a situação, tenho um emprego, estou em final de carreira também.
Ainda tenho amigos na polícia, gente honesta, gente de bem, bons policiais.
Muita gente pensa que policial é tudo corrupto, mas não é bem assim – desabafou
o policial com o Dr. Basílio.
O detetive Celso corria perigo de
vida, como imaginei. Ele é um homem decidido, tão honesto que chega a ser
Caxias, desses policiais incorruptíveis que vemos em filmes americanos.
A mais surpreendente revelação do
detetive Celso, no entanto, foi em relação à morte do seu José, porteiro do meu
edifício. De acordo com o laudo do Instituto Médico Legal (IML) a causa mortis foi esmagamento torácico em
virtude de atropelamento. No entanto, segundo um colega do detetive Celso que
trabalha no IML, havia duas perfurações no crânio do seu José, causadas por
projéteis de arma de fogo. Em outras palavras, o porteiro fora assassinado, não
atropelado. Mas por que mataram o seu José? Na certa tentaram convencê-lo a
depor contra mim. Como não conseguiram, assassinaram-no e, então, forjaram o
atropelamento. Pobre seu José... Havia muita gente envolvida, não só da
polícia, que era apenas um braço de alguém muito mais forte... Talvez o
promotor estivesse envolvido. Possivelmente os jurados... E até mesmo o próprio
juiz responsável pelo meu julgamento, que se aproximava a galopes dignos de um
cavalo vencedor do Grande Prêmio do Brasil, conduzido pelo famoso jóquei
Juvenal (“Lá vem o Juvenal! Lá vem o Juvenal!”). Tanta gente envolvida, tantos
interesses em jogo, minha vida descendo pelo ralo. Quem mais estaria na lista
de pagamento do senador Camilo Pessoa de Alcântara? Quem não estaria, em quem
eu poderia confiar?
Carlinha
Onze de fevereiro de 1998! Elaine
acorda com as coxas molhadas: a bolsa estourou! Minha sogra, que há duas
semanas vinha dormindo no nosso apartamento, liga imediatamente para o Dr.
Marcius. Depois telefona para o meu sogro e minha mãe. Todos seguem para a Casa
de Saúde São José, no Humaitá. Às 12h25 nasce Carla, 2,75 quilos, 47
centímetros, cabelos escuros, pele clara. Houve complicações, Dr. Marcius optou
pelo parto cesárea. Todos falaram que Carlinha é a minha cara, talvez como
forma de me consolarem, afinal, estava confinado nos meus 12 metros quadrados.
Fico feliz pelo nascimento da minha
Carlinha, da minha garotinha caçula. Fico angustiado por não poder pegá-la no
colo, não poder abraçá-la. Entro numa depressão tão grande, nem toquei no
almoço e no lanche da tarde, que minha mão trouxe. Ela tirou algumas fotos da
minha garotinha. Não sei se ela é a minha cara, talvez pareça um pouco, não dá
para ver direito.
_ Meu filho, a Carlinha já nasceu
fazendo xixi e cocô!
Acho graça das “façanhas” da minha
filha. Quando eu iria vê-la? Quando eu iria pegá-la no colo, trocar fralda, dar
banho? Minha mãe sente minha depressão, quer me consolar. Tento disfarçar, mas
ela percebe que não estou no meu melhor. Puxa, mas como eu deveria estar? Minha
filha acabara de nascer e eu estava preso por motivos forjados. Ódio, angústia,
depressão, tudo misturado na minha cabeça. Meu estômago começou a doer,
resultado do meu jejum, do estresse. Acabei comendo uns biscoitos de água e sal
que minha mãe trouxera. Bebi um pouco de iogurte.
Aos inimigos, bala
Dr. Basílio veio me visitar.
_ Carlos, o julgamento foi marcado!
Dia 26 de maio, uma terça-feira. Há muito tempo não vejo um julgamento ser
marcado tão rapidamente.
_ E o que o senhor acha disso?
_ Bem, não vou mentir pra você...
Eles querem a sua cabeça. Estamos em ano de eleição, o senador Camilo Pessoa é
um homem muito influente. Caso você seja absolvido, ele terá muito a perder.
Vamos ter de usar bastante cautela. A promotoria não tem provas contundentes,
mas estamos mexendo em um vespeiro.
_ Mas e a justiça, onde fica a
justiça? A justiça não é cega?
_ Carlos, essa gente costuma usar o
seguinte lema: “aos amigos tudo, aos inimigos apenas o rigor da lei”. Só que no
seu caso eles não querem apenas o rigor da lei... Querem bala!
Esse comentário do Dr. Basílio me
causou um frio na espinha. Sabia que meu advogado não queria me impressionar,
não era o caso de se perdêssemos foi por ser muito difícil. Realmente o senador
Camilo Pessoa de Alcântara e os outros interessados estavam apostando muito
alto. E não seria um simples desconhecido que poria sua reeleição para
escanteio.
Poderíamos usar o testemunho do
detetive Celso? Ele sabia de toda a farsa que o senador Camilo Pessoa havia
armado contra mim. Mas o detetive teria provas? Na certa o matariam antes mesmo
dele abrir a boca, mesmo que lhe garantissem proteção policial Mas ele dissera
que havia gente honesta na polícia, gente que não se corrompia. Por outro lado,
também não faltam verdadeiros marginais com seus lustrosos distintivos.
E se eu fosse considerado culpado? O
que seria da minha família? O que seria de mim? A quantos anos seria condenado?
Dez anos? Vinte? Trinta? Condenado por um crime que não cometi? Seria isso
possível? Já ouvira falar que todo preso se diz inocente, injustiçado... Alguém
acreditaria que eu era realmente inocente?
Os dias foram passando, minha
angústia foi aumentando até o ponto de eu não ligar mais para o que pudesse
acontecer comigo. Já não ligava se eu fosse condenado, já não me importava com
a opinião das pessoas. Se eu fosse condenado, talvez fugiria. Mas como? Para
onde? Viveria fugindo? Preferi considerar a única possibilidade digna, a única
maneira justa dessa farsa toda acabar: eu ser considerado inocente, o senador
Camilo Pessoa de Alcântara e todos os seus cúmplices sendo desmascarados.
Justiça!!!
O julgamento
Dia 26 de maior de 1998! Às 10h23
teve início o meu julgamento. Testemunhas, jurados, plateia, o promotor, meu
advogado, o juiz, tudo como a gente vê nos filmes estava lá.
O promotor, Frederico Aires, foi tão
convincente, que até eu cheguei, por um instante, a acreditar em suas palavras.
As testemunhas de acusação foram bem adestradas, chegaram a me cumprimentar
como se fôssemos velhos conhecidos. Já os que testemunharam a meu favor, talvez
impressionados pela convicção demonstrada pela promotoria, vacilaram em alguns
pontos. Meu advogado tentou de todas as formas provar minha inocência, usou
fatos concretos, mas estávamos disputando um jogo de cartas marcadas. O juiz,
Nicolau Santos Gouveia, após seis horas de julgamento, incluída a hora e meia
para o almoço, proferiu a decisão dos jurados: _ Culpado!!!
Fui condenado a 87 anos de prisão
pelas mortes do filho do senador Camilo Pessoa de Alcântara e do menor Roberto
Carlos dos Santos, além de participação no comando do tráfico de entorpecentes,
formação de quadrilha e outras acusações. Teria de cumprir pelo menos a sexta
parte da pena em regime fechado. Meu advogado protestou veemente contra a
decisão. Depois se virou para mim e disse:
_ Carlos, vou fazer o possível e o
impossível para provar a sua inocência. Sei que você inocente. Você vai ter de
ser forte, mais forte do que jamais foi em toda a sua vida. Sempre estarei ao
seu lado, não por ser seu advogado, mas por ser seu amigo.
Fiquei emocionado com as palavras do
Dr. Basílio. Advogados não são pessoas frias, que só pensam em dinheiro. Pelo
menos o meu advogado não é assim. Pelo contrário, sempre se portou como um
verdadeiro cavalheiro em todos os sentidos.
Não fui algemado, eu já estava com
“minhas pulseiras especiais”. Dois policiais me levaram para uma sala. Dali fui
encaminhado à penitenciária Desembargador Hélio Bueno Brandão, no Estácio.
Presídio
Minha cela era a 17. Dezessete é o
grupo do macaco no jogo do bicho. Macaco! Do mesmo tamanho da que havia passado
os últimos meses, com duas camas, um vaso sanitário, uma pia, uma pequena
estante com alguns livros e revistas, uma mesa com filtro de água, uma cadeira,
um rádio, uma pequena televisão. Não era uma cela exclusiva, agora tinha um
colega de “quarto”: Nery Tomaim, 45 anos, formado em economia, branco como uma
vela, calvo e de bigode cheio. Meu colega fora condenado por ter assassinado a
mulher, que estava de caso com um vizinho. Nery ainda guardava os recortes de
jornais com as matérias sobre o seu crime, cometido há três anos. Ele costumava
se referir à mulher como “a piranha” ou “a vagabunda”. Não tiveram filhos
juntos, mas Nery tinha um de outro relacionamento.
_ Meu amigo, você sabe o que é pegar
a própria mulher dando pra outro cara? O filho da puta conseguiu fugir antes de
eu apanhar meu revólver. A piranha não teve a mesma sorte, ficou parecendo uma
peneira. Jorrou sangue pra todo lado. A vagabunda tentou fugir, peladona, com
tudo de fora, implorando pra eu não matá-la, pedindo perdão... Aquela piranha
de uma figa acabou com a minha vida, mas não viveu pra contar a história... Fui
corno, mas estou vivo!
Nery ficava transtornado quando
relembrava esse ocorrido. Não sou eu que irei julgá-lo, não pretendo entrar no
mérito da questão. Certo ou errado, ele estava pagando pelo que fez.
* * * * *
Tínhamos duas horas de banho de sol,
podíamos jogar vôlei, futebol, dominó, pingue-pongue. A maioria dos
prisioneiros, no entanto, fazia caminhadas em dupla ou pequenos grupos. Muitos
estavam ali por crime do colarinho branco. As penas variavam de seis meses até
cinco, seis anos, dificilmente indo além disso. As maiores penas eram
justamente a do meu colega de cela – 25 anos – e a minha.
Acabei fazendo amizade com um
ex-funcionário do Banco Central do Brasil, Murilo Krauser, que estava preso por
causa de um desvio de mais de R$ 40.000.000,00. Pegou seis anos, estava preso
há seis meses. O que nos aproximou foi o interesse de Murilo por cães,
especialmente os da raça Bull Terrier,
da qual era criador.
_ Tenho dois machos e seis fêmeas,
todos premiados em exposição. Poderíamos fazer uma sociedade, Carlos.
_ Creio que isso vai ser meio
difícil...
Ninguém ficava falando dos seus
crimes. Os principais assuntos eram política e futebol. Estávamos em época de
Copa do Mundo e, em outubro, haveria eleições, inclusive para Presidente da
República. Os principais candidatos eram o então Presidente Fernando Henrique
Cardoso e Luís Inácio “Lula” da Silva. Minha mente, no entanto, estava voltada
para outras coisas: minha família, minha vida... Ainda tinha esperanças de um
novo julgamento. Talvez depois das eleições conseguisse, mas não era certo. Uma
absolvição sacramentaria o fim da carreira política do senador Camilo Pessoa de
Alcântara. Mesmo assim, continuava esperançoso.
As visitas agora não eram tão
frequentes, apenas uma vez por semana, conforme as normas do presídio. Se bem
que alguns detentos recebiam visitas quase diariamente. Havia também alguns
quartos especiais para visitas íntimas.
Minha mãe, seu Francisco, minha
sogra e meu sogro vinham me ver quase toda semana. Nunca mais havia visto
Patrícia, nunca havia visto Carlinha, a não ser através de fotografias. Elaine
e eu preferimos assim, pelo menos por enquanto. Minha mulher não faltava um dia
sequer de visita.
A primeira vez que tivemos nossos
momentos nas salas de visitas íntimas foi um pouco diferente. Já não fazíamos
amor há quase um ano, desde o dia anterior ao fato que mudou nossas vidas. O
local estranho, o longo período sem fazer amor, era como se estivéssemos tendo
nosso primeiro encontro. Certamente não foi a nossa melhor performance, mas,
afinal, estávamos juntos outra vez, mesmo que na prisão.
Nery era um dos mais assíduos
frequentadores das salas de visitas íntimas. Pelo menos três vezes por semana
vinha uma mulher diferente lhe fazer companhia. Às vezes duas mulheres e, em
uma ocasião, três mulheres de uma só vez. Eram prostitutas, algumas muito
bonitas, outras nem tanto.
_ Meu amigo, nunca mais quero saber
de romance. Não vale a penas. A gente acaba sendo traído. Mulher é tudo igual,
mais cedo ou mais tarde acaba dando pra outro. Por isso só quero saber de
prostitutas. A gente paga, elas fazem o serviço e pronto. Não precisamos dar
presente, não precisamos fazê-las gozar. É tudo mais verdadeiro, sem falar que
sai muito mais barato.
_ Mas e o sentimento, Nery? Onde
fica o sentimento, o amor?
_ Ah, meu caro Carlos, você ainda é
muito jovem. Ainda não viveu suficientemente pra saber das coisas. Escute este
seu amigo, pois sei do que estou falando. Mulher é tudo igual!
Apesar de discordar do meu colega de
cela, não entrava em grandes discussões. Preferia manter as boas relações, já
que estávamos dividindo a mesma “suíte”. E, no fundo, Nery era até divertido,
geralmente mantinha o bom humor, a não ser quanto falava da sua ex-mulher, a
tal “vagabunda”.
Copa da França
Aos trancos e barrancos a Seleção
Brasileira ia passando pelos seus adversários na Copa do Mundo de 1998, na
França. Nós, os prisioneiros, assistíamos às partidas no salão de jogos, onde
havia uma televisão de 29 polegadas. Alguns preferiam outras atividades como
leitura, caminhadas ou, então, ficavam em suas celas. A algazarra era total
quando o time brasileiro marcava um gol. Eu assistia aos jogos sem muito
interesse, mesmo adorando futebol desde os tempos do lateral esquerdo Marinho
Chagas, o Bruxa, no meu Glorioso Botafogo. Minha vida estava toda bagunçada,
não conseguia pensar em outra coisa além da minha possível absolvição num
remoto julgamento. Meu advogado estava tentando encontrar um novo elemento que
justificasse a reabertura do meu processo. Corriam por fora também o detetive
Celso Machado e o jornalista João Alves de Matos.
O jornalista João continuava
atacando o senador Camilo Pessoa de Alcântara. Não havia um dia sequer que não
saísse pelo menos uma pequena nota de ataque a esse político, que era acusado
de usar sua influência para incriminar uma vítima de seu filho. “Um notório
vagabundo que ganhou asas de anjo depois de ser exterminado por uma de suas
vítimas”, segundo João. Ele veio me visitar algumas vezes, me entrevistou duas
vezes na prisão. Estava totalmente ao meu lado, sabia da veracidade da minha
história. No entanto, tinha consciência de que minha batalha seria a de um Davi
contra um Golias. Com um detalhe: esse Davi, no caso eu, não estava com sua
famosa funda; e Golias estava armado com um rifle AR-15!
Usando seus contatos na polícia e no
IML, o detetive Celso tentava avançar alguns passos em sua investigação. Já
havia descoberto várias coisas, mas precisava encontrar provas concretas... E
de alguém com autoridade e coragem para depor a meu favor. Mas quem? Quem seria
capaz de expor a própria vida só para salvar a pele de um desconhecido?
* * * * *
A Copa do Mundo terminou, os
brasileiros não teriam o que comemorar. A nossa Seleção tomou um dos maiores
banhos da sua história no último jogo, com destaque especial para o craque
francês Zinedine Zidade: França 3x0 Brasil. Não fora dessa vez que nós seríamos
campeões do mundo outra vez. Muitos culparam o técnico Zagallo e o supervisor
Zico pela não convocação de Romário, herói da Copa anterior. Outros acusaram o jogador
Ronaldo de ter amarelado na final. Essa derrota do futebol brasileiro resultou
até numa CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito). Histórias, histórias,
histórias... Quanto a mim, continuava na prisão!
Minhas filhas
O mês de setembro já corria quando
pedi para minha mulher trazer nossas filhas. Fazia mais de um ano que não me
encontrava com Patrícia. Só conhecia Carlinha através de fotografias. No dia
19, mais um domingo de visitas, reencontrei Patrícia... E segurei pela primeira
vez no colo minha pequena Carla, que contava com apenas sete meses. É estranho
a gente não ter contato com uma filha até tanto tempo depois de ter nascido. Só
sei que foi muito bom poder pegar minha filha no colo, beijá-la, dar mamadeira
e trocar a fralda. Puxa, como é bom!
Patrícia havia crescido bastante
desde a última vez que a vi. Pronunciava as palavras com clareza, perdera
aquela fala ininteligível de criancinha. Seus cabelos estavam maiores, caídos em
cachos. Ela me abraçou, disse que sentia saudade, perguntou quando eu voltaria
para casa... Resposta difícil, tentei distraí-la com caretas. Ela soltou uma
gargalhada por causa das minhas palhaçadas. Minha mulher me abraçou e disse que
todo esse tormento logo acabaria, que estaríamos em casa quando menos se
esperasse. Palavras confortantes, palavras otimistas. Talvez otimistas demais.
Foi maravilhoso ver minhas duas
princesinhas! A visita durou cerca de duas horas, período muito curto para
tentar compensar tanto tempo longe. A hora da despedida foi dura demais. É
desesperador saber que não podemos ficar o tempo que quisermos com nossa
família. Voltei para minha “suíte”. Nery estava lendo uma revista, olhou para
mim e me perguntou como havia sido o encontro. Nem me lembro do que respondi,
talvez não tenha dito coisa alguma. Fiquei olhando para o nada, pensando em
como tudo havia começado. Uma fúria tomou conta de mim. Dei alguns berros e
socos na parede. Era como e minha mão fosse uma marreta, não sentia dor. Acho
que Nery nem se mexeu, talvez nem tenha dito uma única palavra, deve ter
continuado a sua leitura. Somente depois, quando me acalmei, senti os ossos
doendo. Minha mão parecia uma grande massa disforme, rubra. Pedi gelo a um dos
carcereiros. No dia seguinte fui levado à enfermaria, onde foi batida uma
radiografia. O quarto metacarpo esquerdo estava fraturado. Fiquei com gesso
adornando a minha mão por um mês, tempo mais do que suficiente para saber que
nunca devemos esmurrar paredes.
Eleições
Fernando Henrique Cardoso foi reeleito
Presidente da República. Camilo Pessoa de Alcântara conseguiu seu terceiro
mandato de senador. Meu inimigo número um comemorava sua vitória nas urnas:
_ Dedico mais este triunfo ao meu
filho Márcio, brutalmente assassinado por um traficante. A justiça dos homens
já puniu o assassino do meu filho, mas isso ainda é pouco para esse facínora
tão covarde. A justiça de Deus também o punirá, sem piedade, sem clemência!
Continuei sendo o alvo preferido do
senador Camilo Pessoa de Alcântara. Ele chegou a lamentar a inexistência da
pena de morte no Brasil. Tive de engolir tudo isso calado. Minha revolta era
tamanha, que a gastrite voltou a atacar.
Por que tudo isso estava acontecendo
comigo? Que mal eu havia cometido? Era co mo se todo mundo estivesse cego.
Parecia que todos estavam sofrendo de alienação, uma alienação generalizada,
como uma grande massa que vai sendo modelada de acordo com os interesses
alheios. Alheios? Não!!! Interesses do senador Camilo Pessoa de Alcântara!
Ceia na prisão
Natal de 1998! Pois é, eu estava
passando meu segundo Natal na cadeia, o primeiro na condição de condenado. Meus
familiares vieram me visitar e novamente trouxeram um verdadeiro banquete. Meu
amigo Bernardo também veio. Conversamos sobre os negócios. Ele havia contratado
dois médicos veterinários para suprir a minha falta. Os negócios estavam
crescendo. Apesar da minha condenação, a nossa clínica não teve a imagem
arruinada, pois meu sócio é um verdadeiro homem do marketing. Ele soube desvincular meu nome dos nossos negócios.
Elaine me presenteou com um bonito
relógio de bolso. Eu, que quase nunca andava de relógio, agora tinha um de
bolso. Quem ainda usa relógio de bolso? Em todo o caso, adorei, pois quando a
gente abre a tampa que protege o vidro do relógio, se vê uma fotografia da
minha mulher com minhas duas filhas. Também ganhei outros presentes: duas
camisas, um baralho, uma caneta com meu nome gravado e um livro: A Arte da Guerra, de Tzu Sun.
Dr. Basílio veio me visitar também.
Trouxe uma caixa de bombom. Conversamos por mais de uma hora sobre a reabertura
do meu caso. As pressões contra mim continuavam em proporções gigantescas, não
havia expectativa da data de um novo julgamento, se é que haveria outro. Não
era o melhor presente de Natal, mas é melhor ouvir a verdade do que ficar
imaginando algo que não existe. Meu advogado foi bastante claro comigo, disse
que o meu processo estava cheio de provas forjadas. No entanto, eu havia
cometido um crime imperdoável: matei o filho de um político importantíssimo!
Meu caso não era uma questão de fatos, mas de interesses.
* * * * *
Recebi algumas cartas e cartões
postais. Algumas pessoas, gente que eu nunca havia visto em toda a minha vida,
escreviam coisas boas, más ou até mesmo divertidas. Gente escrevendo que era
uma injustiça eu estar preso, pois não acreditavam nas histórias (ou estórias)
que os veículos de comunicação contavam sobre mim; outras cartas continham
frases me maldizendo; mulheres escreviam querendo se casar comigo... Isso me
surpreendeu, pois não tinha ideia de que condenados tinhas “fã clube”. Nery me
deu uma explicação até aceitável ou, no mínimo, engraçada:
_ Meu amigo, as mulheres adoram
presidiários porque sempre sabem onde o seu homem vai estar!
O bilhete
Na véspera do ano novo recebi a
visita do jornalista João Alves. Ele continuava a me tratar em suas matérias
como “a maior vítima da politicagem dos últimos 20 anos”. Veio me entrevistar
para o jornal A Cidade.
A entrevista durou cerca de uma
hora. Ele acreditava na minha inocência, mas não por causa dos meus lindos
olhos azuis. João há muito vinha acompanhando a vida do senador Camilo Pessoa
de Alcântara. Sabia das falcatruas do senador, sabia que Márcio Sampaio Pessoa
de Alcântara era viciado em drogas pesadas (cocaína e heroína), sabia de muitas
coisas. Só que precisava de provas mais contundentes, da mesma forma que o
detetive Celso, da mesma forma que meu advogado...
_ Carlos, não dá pra enfrentar um
senador sem provas concretas. Se com elas já é uma batalha dura, sem elas vira
suicídio!
Quando João apertou a minha mão para
se despedir, me passou um bilhete:
“C
Seja forte! A luta continua!
C.M.”
Parecia até mensagem de
guerrilheiro. O bilhete era do detetive Celso Machado, dizendo que continuava
nas investigações. Fiquei animado! Conservei o bilhete por alguns dias, depois
achei mais prudente destruí-lo. Queimei-o!
Feliz Ano Novo?
A queima de fogos
na praia de Copacabana não deixou de acontecer pela minha ausência. Adeus1998,
feliz 1999! Feliz? Minha vida havia se transformado num mar de lamúrias. Como
comemorar a chegada de mais um ano atrás das grades?
Tentava me concentrar em coisas
boas, coisas positivas. Depois achava que agindo assim era como se eu estivesse
me conformando com a situação. Então, me vinha a ideia de vingança. Desejava me
encontrar com o responsável pela minha desgraça, um encontro onde apenas
estaríamos eu e o cretino do senador Camilo Pessoa de Alcântara. Tinha vontade
de enchê-lo de socos e pontapés. Não iria me importar com a idade avançada dele
– uns 65-70 anos. Afinal, os canalhas também envelhecem, dizia para mim mesmo.
Tinha medo que senador morresse antes do nosso encontro. Queria acabar com a
raça daquele desgraçado filho da mãe!
Os três mosqueteiros
Em fevereiro de 1999, meu advogado
teve novo encontro com o detetive Celso. Só que agora havia um terceiro
integrante: o jornalista João Alves de Matos. Os três possuíam motivos de sobra
para desejarem minha inocência. Dr. Basílio, como meu advogado, estava
defendendo seu cliente; João há muito vinha tentando desmascarar o senador
Camilo Pessoa de Alcântara, que ele considerava um marginal de colarinho
branco; e o detetive Celso, talvez o maior interessado, defendia a própria
vida, que passou a correr risco a partir do momento que a polícia descobriu a
identidade do estuprador de minha mulher.
Desde o último encontro com meu advogado,
Celso havia conseguido algumas informações importantes: o juiz do meu caso,
Nicolau Santos Gouveia, mantinha relações no mínimo suspeitas com Sábato Maria,
banqueiro do jogo do bicho. Dos sete jurados, pelo menos cinco recebiam ajuda
financeira do partido do senador Camilo Pessoa de Alcântara. João mantinha um
dossiê das ações desonestas do senador como, por exemplo, a liberação de mais
de U$ 10.000.000,00, que ele havia conseguido do Governo Federal para a
construção de centros educacionais que nunca saíram do papel. Onde foi parar
todo esse dinheiro? Numa conta na Suíça? Dr. Basílio também estava fazendo um
belo trabalho de investigação. Segundo informações de seu amigo e promotor
público Tadeu Bittencourt Dantas, o promotor do meu caso, Frederico Aires,
havia passado 15 dias na Europa, ficando hospedado em hotéis caríssimos, assim
que saiu a minha condenação. E logo que voltou ao Brasil comprou dois carros
zero quilômetro: um Vectra e... uma BMW! Pagou tudo à vista! Teria o promotor
público tantos recursos assim? Ou teria recebido uma pequena ajuda de custos do
senador Camilo Pessoa de Alcântara?
_ Meus senhores, não conheço o Dr.
Frederico Aires profundamente, mas sei que ele é de família abastada. No
entanto, segundo meu amigo particular Tadeu Bittencourt Dantas, o Dr. Frederico
sempre foi um sujeito totalmente avesso a gastos soberbos. Em outras palavras,
o Dr. Frederico Aires é um notório mão-de-vaca!
Meu advogado estava certo quanto à
mudança de hábito de Frederico Aires. Mas como provar que o dinheiro gasto na
viagem e na compra dos dois carrões viera do senador Camilo Pessoa de Alcântara
ou, então, de alguém ligado a ele? Quebra de sigilo bancário? Difícil! A menos
que alguém tivesse acesso às contas desse promotor. Mas quem? Elaine era
bancária, funcionária do Banco do Brasil. Ela teria acesso a essas contas? E se
alguém descobrisse? Ela seria despedida? Com certeza que sim! E por justa
causa! Os três mosqueteiros acharam mais prudente não expor minha mulher a esse
risco. Encontrariam outra forma de ter acesso às contas do promotor Frederico
Aires.
Atentado a um jornalista
A chuva caía forte, parecendo querer
inundar toda a cidade do Rio de Janeiro. O trânsito estava lento, os motoristas
mal conseguiam visualizar o que estava à sua frente. Pedestres tentavam se
proteger embaixo das marquises dos prédios. Outros se aventuravam com seus
frágeis guarda-chuvas. Chuva de verão! Chuva de verão no final da tarde... No
final do expediente.
Depois de escrever sua coluna, o
homem se encaminhou à mesinha do café, que ficava ao lado da mesa do
editor-chefe do jornal. Enquanto pegava dois cafezinhos – tinha essa mania de
tomar dois cafés por vez –, trocou algumas palavras com o colega, que já estava
de saída.
_ E aí, Portella, vai tomar um chope
com a rapaziada?
_ Com esse dilúvio aí fora, é o
melhor a se fazer, João. Vou esperar a chuva passar ou o trânsito melhorar.
João telefonou para a sua casa. Sua
esposa atendeu, trocaram algumas palavras carinhosas. João lhe disse que
chegaria mais tarde, iria fazer hora até que as condições melhorassem, para
encarar o trânsito até o Méier – bairro da Zona Norte –, onde moravam. Mais
algumas palavras amorosas (estavam casados há dois meses) e se despediram.
Chamou dois colegas, o fotógrafo
Chicão e o redator Pacheco. Os três desceram os lances da escada que os
separavam da av. Rio Branco, centro do Rio. Andaram até a Cinelândia, tentando
se proteger ao máximo da forte chuva, e adentraram no Verdinho (situado na
esquina da Cinelândia, próximo à praça Mahatma Gandhi), onde pediram três
chopes e uma porção de batata frita.
O papo girou em torno de vários assuntos
(mulheres, a recém vida de casado de João, futebol...) até Pacheco levantar
outro assunto.
_ João, você acha mesmo que aquele
veterinário é inocente?
_ Eu não acho... Tenho certeza
absoluta! O que esse filho da puta do Camilo Pessoa está fazendo com o Carlos Cesario
é uma safadeza sem tamanho. Todo mundo sabe que o filho do senador sempre foi
um viciado, sempre aprontou mil e uma coisas... Mas, de repente, do nada, o
cara vira um santo.
_ Mas esse veterinário não matou o
filho do senador?
_ Matou. Mas quem não mataria o
desgraçado que estivesse estuprando sua mulher? Quem? Me responda, Pacheco,
quem? Até aqueles escrotos dos direitos humanos matariam o filho da puta!
_ É... Mas e esse negócio do tráfico
de drogas?
_ Tudo armação. Revirei toda a vida
do Carlos Cesario. O máximo que o cara fez foi extrapolar um pouco no álcool
quando estudava na Rural. Nada que um universitário, ou mesmo qualquer um de
nós, não faça de vez em quando. O cara é completamente limpo. Ele só teve o
azar de ter a mulher violentada por alguém que é filho de alguém importante.
_ Alguém que é filho de alguém
importante... É, o cara tá ferrado!
_ Por enquanto, meu amigo, por
enquanto...
A chuva foi passando, as pessoas nas
ruas já não eram tantas, a escuridão da noite já vinha dar a sua graça. Hora de
retornar ao lar, doce lar.
João se despediu de seus colegas e
rumou para o local onde havia deixado seu carro, um Fiat Uno cinza metálico. No
caminho parou numa banca de camelô e comprou uma barra de chocolate branco para
Vitória, sua mulher. Já no carro, colocou uma fita cassete do seu cantor
preferido (Raul Seixas) e seguiu caminho.
Já na av. Presidente Vargas, foi
fechado por dois carros! Atiraram em sua direção! Todos os vidros laterais do
seu Fiat Uno estilhaçaram! Os dois carros fugiram em disparada!
João, abaixado no fundo do carro,
palpava cada parte de seu corpo em busca certa de um ferimento. Estava tenso,
suando frio. Já havia recebido ameaças de morte, mas nunca passara por uma
situação parecida. “Agora era pra valer”, pensou! Apenas um pequeno corte na
mão esquerda, nada que uma pomada qualquer não resolvesse. Pegou seu celular e
ligou para a redação do jornal. Portella, o editor-chefe, ainda estava lá.
Contou-lhe o ocorrido. Logo uma viatura do jornal A Cidade estava no local do atentado. A polícia também chegou.
João telefonou para Vitória, disse
que chegaria um pouco mais tarde, preferiu não mencionar o ocorrido. Só depois,
já em casa, contou-lhe o atentado sofrido.
_ Meu amor, graças a Deus você está
bem! Graças a Deus nada aconteceu a você!
Não foi difícil imaginar quem era o
mentor do atentado sofrido por João. A polícia, no entanto, descartou a
tentativa de atentado contra a vida do jornalista. Preferiu a hipótese absurda
de discussão no trânsito seguida de disparos de armas de fogo por um dos
motoristas envolvidos.
Marasmo na prisão
Os dias foram se arrastando
lentamente... bem lentamente. O tédio era total, a esperança de uma possível
melhora na minha situação estava quase esgotada. Comecei a andar de um lado
para o outro na minha “suíte”, como aquelas feras enjauladas no zoológico.
Zoológico! De um lado para outro, de um lado para outro... de um lado para
outro. Peguei uma folha de papel e escrevi em letras garrafais: “Homo sapiens –
espécie altamente perigosa que vive espalhada por todo o planeta, caça por
prazer, polui rios e devasta florestas. Cuidado!!! Não se aproxime!” Prendi a
folha na grade da minha cela.
* * * * *
Estávamos em julho e para não dizer
que nada acontecia no presídio, vou contar o único fato que destoou da rotina.
Murilo Krauser, o tal ex-funcionário do Banco Central do Brasil, começou a
andar com um novo presidiário: Amauri Cunha, médico condenado a seis por
molestar sexualmente uma paciente. Ficaram tão próximos que pediram ao diretor
do presídio, Darci Campos, para dividirem a mesma cela.
Os amigos conversavam intensamente,
a qualquer hora do dia dava para escutar a falação dos dois, já que minha cela
ficava ao lado da deles. Todos os assuntos eram bem vindos naquela fonte inesgotável
de palavras: mulheres, política, religião, comida, viagens, cinema, teatro,
literatura, pintura. A comunhão era tamanha que os outros prisioneiros mal
chegavam para conversar com Murilo e Amauri, pois ninguém queria atrapalhar.
Passávamos pelos dois durante a nossa recreação e apenas os cumprimentávamos,
quando muito. Nas poucas vezes que tive a oportunidade de trocar algumas
palavras com Murilo, este me contou que nunca havia encontrado alguém tão
inteligente quanto Amauri.
_ Carlos, se o Amauri fosse mulher,
seria meu par ideal. É pena ele ser homem... e seu ser heterossexual.
Todos os assuntos, todos os
assuntos... Com exceção de um: futebol! Amauri era vascaíno; Murilo, tricolor!
Parecia que os dois estavam evitando falar de futebol, talvez por medo de
descobrirem que não torciam para o mesmo time. Não sei se o motivo era esse...
Mas o que importa agora? O fato é que um dia aconteceu.
Um grupo de prisioneiros estava
discutindo futebol, quando Amauri e Murilo passaram. Então, alguém perguntou ao
Amauri por qual time ele torcia. Dizem até que ele ficou sem fala, olhou para
Murilo procurando ajuda, mas nenhuma palavra saiu da boca do amigo.
_ Vas... co.
A voz saiu quase muda, mas foi o
suficiente para puxar uma discussão sobre futebol entre Murilo e Amauri. O tom
começou amigável, até se tornar digno de
briga em feira. Os dois nunca mais trocaram uma única palavra. Amauri foi para
outra cela no mesmo dia. E na primeira oportunidade que estive com Murilo, este
me confidenciou:
_ Carlos, meu amigo, nunca vi alguém
mais burro que aquele Amauri. O cara é uma verdadeira besta! Ô, sujeitinho
burro!
Aposentadoria de um policial
Quarenta a nove anos! Essa era a
idade do detetive Celso em outubro de 1999, quando se aposentou depois de 30
anos na Polícia Civil do Rio de Janeiro. Descanso mais que merecido para um
homem que durante todo esse tempo lutou contra a criminalidade. Hora de vestir
um roupão e calçar um par de chinelo. Não para o detetive Celso, que estava
envolvido até o último fio de cabelo na busca da solução do meu caso.
Celso vendeu o imóvel que tinha na
rua Conde de Bonfim, na Tijuca (bairro da Zona Norte do Rio). Com o dinheiro,
comprou um apartamento em Guarapari, onde sua família estava morando desde o
atentado que sofrera. Ele continuou no Rio, mas sem endereço fixo. Sempre
estava se mudando para proteger a própria vida.
Dois dias depois de se aposentar, o
detetive Celso se encontrou com Dr. Basílio e o jornalista João.
_ Meus amigos, agora terei mais
tempo para me dedicar ao caso do Carlos Cesario. Não vou me mudar pra
Guarapari, onde estão os meus. Não posso expô-los a tal risco. Além do mais,
não conseguiria viver longe do Rio.
_ Mas e a sua esposa... os filhos?
_ João, meu casamento está em crise
há algum tempo. Sinto falta das crianças, mas meu casamento acabou.
_ Sinto muito.
_ Não... Estou bem. Não estou
brigado com a mãe dos meus filhos. Eu e a Solange ainda somos amigos, mas não
nos amamos mais. É só isso.
O detetive Celso vinha empurrando o
casamento com a barriga há algum tempo. No entanto, era muito ligado aos filhos
(Nelson e Márcia Regina). A ausência deles o machucava de tal maneira, que seus
olhos marejavam toda vez que eles o mencionava.
* * * * *
Os três mosqueteiros avançavam nas
investigações. Dr. Basílio ficou sabendo que o juiz Nicolau Santos Gouveia
havia viajado para os Estados Unidos. Na mesma época, o senador Camilo Pessoa
também viajou para lá. O detetive Celso soube por um colega da Polícia Federal,
Daniel Marchi, que investigava a vida do bicheiro Sábato Maria, que este viajou
para Nova Iorque no mesmo dia que o juiz Nicolau. Coincidência? Desculpe, mas
não sou muito chegado a coincidências... e há muito deixei de escrever
cartinhas para o Papai Noel.
Um fio de esperança
Nos últimos dias de outubro de 1999
recebi uma notícia do Dr. Basílio que encheu meu coração de esperança.
_ Carlos, hoje conversei com o juiz
Álvaro de Oliveira Pinto. Ele me garantiu que vai analisar o seu caso com
carinho e, se verificar alguma irregularidade, pedirá a reabertura do processo.
_ Pulei de alegria! Finalmente as
coisas começavam a andar!
_ E quando ele ficou de dar uma
resposta?
_ Bem, o Dr. Álvaro é um homem
extremamente ocupado... Mas acredito que em no máximo duas semanas ele já terá
um parecer.
_ E o senhor acha o quê?
_ Estou confiante, Carlos. Penso que
o parecer nos será favorável. Mas não vamos contar com a vitória antes do
tempo.
_ Claro... O senhor tem razão. Já
estou cansado de esperar por alguma coisa, qualquer coisa, que me ponha pra
fora daqui.
_ Não vou dizer que sei como você se
sente, pois nunca passei por algo parecido. Apenas imagino, apenas imagino...
Mas, Carlos, você tem de ser forte! Pense na sua esposa, nas suas filhas...
Você tem de cuidar delas... Não vá fazer besteira!
_ É duro pagar por uma coisa que a
gente não fez, doutor.
_ Força, Carlos! Força!!!
* * * * *
Um novo julgamento! Dessa vez tudo
seria diferente, pensei. Se o juiz Álvaro de Oliveira Pinto achasse que meu
caso devesse ser aberto, tudo seria diferente. Eu, Carlos Cesario, seria
declarado inocente de todas as acusações! O senador Camilo Pessoa de Alcântara
seria desmascarado! Justiça!!!
O meu humor mudou a cada instante
por exatos 17 dias. Esse foi o tempo que o juiz Álvaro levou para dar o seu
parecer a respeito do meu processo. Dr. Basílio veio me contar.
_ Carlos, o Dr. Álvaro analisou o
seu caso e eu parecer favorável. Favorável em parte.
_ Favorável em parte? Mas o que
significa favorável em parte?
_ Bem, ele vai pedir a reabertura do
seu processo na questão do tráfico de entorpecentes. Quanto à questão do filho
do senador Camilo Pessoa de Alcântara... Bem, ele disse que não podia fazer
coisa alguma.
_ Nada? Aquele filho da puta estupra
a minha mulher, e esse juiz vem com essa história de não pode fazer coisa
alguma?!
_ Carlos, vamos nos concentrar no
que nós conseguimos. Depois nos concentrar no que nós conseguimos. Depois vamos
tentar nova reabertura do caso do filho do senador. Além do mais, o detetive
Celso e o jornalista João estão fazendo o possível para nos ajudar. Vamos
tentar manter a calma.
Por mais que o meu advogado tentasse
me convencer de que tínhamos dado um passo importante, eu não me conformava com
a decisão do juiz Álvaro de Oliveira Pinto. Seja como for, esse juiz pediu a
reabertura do meu processo na questão do tráfico de drogas na semana seguinte.
Um quarto mosqueteiro
A história de Daniel Marchi talvez
seja muito diferente da de outros tiras. Fã de filmes policiais, sua figura me
faz lembrar a de um detetive muito famoso para os que curtiram o seriado de
televisão Columbus nos anos 70.
Columbus fazia o típico policial meio
burro, técnica que deixava os criminosos despreocupados com a sua presença.
Pensavam os bandidos: “Columbus é tão estúpido que não consegue enxergar um
elefante pintado de vermelho com bolinhas azuis a um metro de distância”. Ledo
engano, pois ele era mais esperto que uma raposa velha! Na Polícia Federal
desde 1990, quando ainda contava com 20 anos, Daniel logo se destacou entre os
calouros, ganhando a confiança, admiração e o respeito dos policiais mais
tarimbados.
Durante a Eco-92 (evento que reuniu
líderes de diversas nações na cidade do Rio de Janeiro), conheceu o detetive
Celso, do qual se tornou grande amigo. Juntos, apesar de serem corporações
diferentes (Celso era da Polícia Civil do Rio de Janeiro; Daniel, da Polícia
Federal), desvendaram alguns crimes e efetuaram prisões importantes como, por
exemplo, a do terrorista internacional Jan Pablo Martínez, procurado pela
Interpol (Organização Internacional de Polícia Criminal) desde a década de 70.
Martínez estava passando uma temporada em Arraial do Cabo (município do estado
do Rio de Janeiro famoso por suas belas praias). Graças à ação conjunta de
Celso e Daniel, o terrorista agora está passando uma longa temporada atrás das
grades.
Daniel soube do meu caso através de
Celso. A partir daí, passou a perseguir qualquer pita que pudesse levar à minha
liberdade. Segundo suas investigações, muitos interesses estavam em jogo com a
minha condenação. Interesses muito maiores do que Dr. Basílio e eu havíamos
cogitado.
Apesar de até então não ter feito
parte das reuniões dos três mosqueteiros, Daniel, com certeza, já era
considerado uma espécie de Dartangnan. Estava a par de tudo que ocorria nos
encontros de Celso, João e Dr. Basílio. E a cada dia estava mais envolvido com
o meu caso, sem mesmo nunca termos nos encontrado até aquele momento. Só mais
tarde isso viria a acontecer.
Mais que um fio de esperança
O calor estava insuportável naquele
dia de abril de 2000. Dr. Basílio veio me dizer que o juiz Álvaro havia
conseguido a reabertura do meu processo. O novo julgamento deveria ser marcado
para o segundo semestre.
_ Carlos, em se tratando de justiça,
temos de levantar as mãos pro céu, pois tudo está indo numa velocidade
admirável.
_ Dr. Basílio, não quero parecer
irônico, mas não acho que essa velocidade seja satisfatória. O tempo aqui
demora muito a passar. Um dia aqui dentro leva uma eternidade.
_ Entendo... Mas como lhe disse,
Carlos... Você tem de ser forte, não pode se deixar abater. Nunca lhe disse que
as coisas seriam fáceis.
_ Eu sei disso, doutor, mas...
_ E as coisas poderiam estar muito
piores. E se você não tivesse curso superior? Imagine você tendo de dividir uma
cela com 20, 30 detentos... E olha que você já foi condenado, ou seja, pela lei
você deveria estar em uma penitenciária comum. A sorte é que estou conseguindo
mantê-lo aqui com a alegação de que você correria perigo de vida em outro
local, já que seu caso ganhou notoriedade nacional.
_ Já pensei nisso, doutor...
_ Vamos ter paciência. Tudo vai ser
resolvido. Temos amigos que estão nos ajudando. Inclusive, estamos contando com
a colaboração de um jovem da Polícia Federal. É um rapaz brilhante, amigo do
detetive Celso.
_ E no que ele pode ajudar?
_ Bem, os policiais gostam de manter
em sigilo suas investigações... Penso que o amigo do detetive Celso esteja
atrás de fatos mais contundentes pra, então, expô-los.
_ E enquanto isso fico apodrecendo
nesta cela.
_ Calma, meu rapaz! Tenha calma!
Tudo ao seu tempo, tudo ao seu tempo.
_ Sei...
Já ouvi alguns jogadores de futebol
dizendo que ficam mais tensos quando, por algum motivo, não estão dentro de
campo para ajudar o time. Era mais ou menos assim que me sentia na prisão. Dá a
impressão de que as coisas só funcionam com a gente em ação. E o tempo demora
uma eternidade para passar! Eu precisava fazer algo!
Um senador americano em solo brasileiro
Harvey Grooters desembarcou no
Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro, o Galeão, em julho de 2000. Foi
recebido com honras de chefe de Estado. Afinal, não é todo dia que um país
recebe a visita de um senador dos Estados Unidos da América.
O senador americano havia sido
convidado pelo senador Camilo Pessoa de Alcântara a fim de ministrar uma
palestra sobre direitos humanos, que seria realizada no hotel Copacabana
Palace. Grooters não domina a nossa língua, mas fala fluentemente o espanhol.
Entretanto, a palestra teria tradução simultânea.
Novo julgamento
Minha mulher veio me trazer o
jornal. Estampada na primeira página estava uma foto minha ladeada com uma do
senador Camilo Pessoa de Alcântara. “Este país não é sério! Como alguém pode
permitir que esse delinquente que assassinou a sangue frio meu filho Márcio vá
a novo julgamento? Querem dar uma nova chance a um traficante de drogas. Drogas
que matam milhões de jovens em todo o mundo! Absurdo! Infame!”, eram as
palavras do senador estampadas na chamada da matéria. O novo julgamento havia
sido marcado para o dia 5 de outubro de 2000, uma quinta-feira. Meu advogado
chegou um pouco antes de Elaine se despedir de mim.
_ Carlos, não há prova que
justifique a sua condenação. No entanto, devo lembrá-lo de que estamos
enfrentando gente poderosa.
_ Sei disso tudo, doutor. Mas e as
nossas chances? São boas?
_ Bem, existe uma grande pressão
política para a confirmação do veredicto. Também tem a pressão popular... Diria
que as nossas chances são bem razoáveis se o tribunal se ativer apenas aos
fatos do processo.
_ O senhor está me falando que
todos, juiz, promotor... Todos sabem que sou inocente, mas estão com medo de me
absolver?
_ A situação é mais ou menos essa.
Ninguém quer se comprometer num caso tão delicado. Inclusive soube pelo meu
colega Tadeu Bittencourt Dantas que dois promotores e um juiz se negaram a
trabalhar no seu julgamento.
_ Em outras palavras: tá todo mundo tirando
o seu da reta!
_ É por aí.
* * * * *
O julgamento foi totalmente
diferente do primeiro. Ou quase...
Meu advogado esteve brilhante. Não
deixou, por um minuto sequer, a peteca cair. O advogado de acusação, por sua
vez, parecia mais perdido que cego em tiroteio. Felipe Augusto Gurgel, há dois
anos como promotor público, não dizia coisa com coisa. Tentava se prender às
matérias jornalísticas que trataram do meu caso. Dr. Basílio, perfeito em sua
ironia, perguntou se ele também havia tido tempo de ler os autos do processo,
pois, pelo que estava parecendo, ficara muito tempo lendo jornal. Talvez até
soubesse de cor e salteado alguma tirinha de quadrinhos interessante para
contar para os presentes. Claramente nervoso, Gurgel gaguejava a cada ataque do
Dr. Basílio. A plateia presente chegou a esboçar uma gargalhada, mas logo foi
contida pelo severo martelo do juiz Décio Magalhães.
_ Silêncio no tribunal!!! Se houver
mais alguma manifestação, o julgamento será fechado ao público!
O silêncio foi instantâneo. Dava até
para ouvir o zumbido de uma mosca que teimava em assistir àquele circo.
Não havia prova alguma contra mim. O
que a defesa tinha era a palavra de um traficante de drogas condenado a 18 anos
de prisão: Antonio Costa, vulgo Libélula. Ele havia testemunhado contra mim no
julgamento anterior. A outra testemunha do primeiro julgamento não participou.
E o motivo era justificável: José Carlos da Silva, vulgo Preto, fora
assassinado em Bangu I dois meses antes.
O julgamento foi muito mais longo
que o primeiro. Levou mais de 15 horas, entre intervalos para almoço, lanche
etc e tal. Ao final, o juiz Décio Magalhães bateu seu martelo e disse:
_ Em vista dos autos, o réu Carlos
Cesario foi considerado culpado. A sentença, no entanto, foi reduzida para 13 anos
e 11 meses. Tendo o réu já cumprido parte da pena, cumprirá o restante em
regime fechado...
Minha condenação anterior havia sido
de 30 anos pelos assassinatos do senador Camilo Pessoa de Alcântara e do menor
Roberto Carlos dos Santos, 15 anos pelo tráfico de drogas, além de vários
outros crimes, o que dava uma soma de 87 anos de prisão. Agora, no entanto, eu
teria a pena reduzida em um ano e um mês. Era uma piada! Aliás, mais uma piada
que o sistema sob o comando do senador Camilo Pessoa de Alcântara estava
pregando em mim. Minha revolta foi tamanha que chamei o juiz e o promotor de
covardes, capachos do senador Camilo Pessoa de Alcântara. Minha indignação não
era tanto pelo mísero tempo que reduziram de minha pena. Que diferença faz ser
condenado a 87 anos ou 85 anos e 11 meses? Que fossem 500 ou 1000 anos! Não
haveria diferença alguma. Estava revoltado com a falta de hombridade de um
bando de capachos do poder político e econômico. Capachos que não pensaram no
mal que estavam fazendo a um homem inocente, mesmo não tendo uma única prova
que fosse para condená-lo. Capachos!!! Mil vezes capachos!!!
De volta à realidade
Cheguei ao presídio menos de uma
hora após o juiz ter proferido a sentença. Meu colega de cela estava me
aguardando, queria saber como havia sido meu julgamento. Contei-lhe tudo.
Voltar à minha cela não foi o pior.
Eu já sabia que iria voltar, pois, mesmo se fosse considerado inocente da
acusação de tráfico de drogas, ainda havia a questão das condenações pelos
assassinatos daqueles dois canalhas. O pior de tudo foi ter a certeza de que
não seria através de um novo julgamento que todo esse pesadelo acabaria. Não,
não seria com essa justiça que eu conseguiria voltar a ser um homem livre. Tive
nojo de todo o sistema judiciário, de todos cretinos engravatados que jogam com
a vida do povo. Pela primeira vez na vida eu me sentia realmente do povo. Eu,
Carlos Cesario, que sempre me considerei um privilegiado por nunca ter passado
fome neste país, nunca ter tido grandes problemas financeiros, ter tido a
oportunidade de estudar em boas escolas, ter chegado a me formar numa
universidade pública, agora me sentia realmente do povo. Sim, eu finalmente
percebi que também fazia parte do povo. Povo! Era apenas uma peça manipulável
e, pior, descartável de um jogo sujo de interesses.
* * * * *
No dia seguinte à minha nova
condenação, recebi a visita do Dr. Basílio.
_ Como você está, Carlos?
_ ...
Eu estava com raiva, muita raiva.
Não era raiva do meu advogado, que havia realizado um excelente trabalho. Só
que eu continuava preso, condenado pela segunda vez por um crime que não havia
cometido. Traficante de drogas! Era nisso que a sociedade acreditava.
Acreditava mesmo? Lixo, era isso que eu era para essa mesma sociedade. E lixo
tem de ser jogado na lixeira. O presídio é a grande lixeira da sociedade!
Lixo!!!
_ Acabou!
_ O que acabou, Carlos?
_ Tudo! Nada mais importa! Não dá pra
jogar sem roubar. Estamos num jogo de cartas marcadas.
_ Não estou entendendo...
_ ... Agora não é mais com o senhor.
Tenho de tomar as rédeas da situação!
_ O que você está pensando em fazer,
Carlos?
_ Doutor, eu só tenho a lhe
agradecer pelo que o senhor tem feito por mim. Só que agora a situação é outra.
Sei que não terei a chance de ter a minha vida de volta. Por mais que o senhor
tente, sempre bateremos com a cara no muro... no muro da injustiça, da
corrupção.
_ Carlos, não pense em fazer besteira!
_ Besteira? Que besteira? Eles me
tiraram tudo o que eu tinha... Minhas filhas mal me conhecem, mas vejo minha
mulher. Que vida eu tenho tido nesses últimos três anos?
_ Meu filho, peço apenas um pouco
mais de tempo pra...
_ Tempo? Mais quanto tempo? Três
anos? Trinta anos? É, tempo é o que não me falta! Tenho 80 anos pra cumprir!
Oitenta anos por defender a minha família de dois filhos das putas! Oitenta
anos!
Doutor Basílio apenas me olhava
enquanto eu descarregava toda a minha raiva. A impotência em seu olhar só
aumentava a minha dor, pois era o mesmo olhar que minha pequena Patrícia tinha
quando estávamos presos no banheiro do meu apartamento, enquanto aqueles dois
canalhas estupravam minha mulher. E eu sabia que nem o melhor advogado do mundo
conseguiria me tirar daquela situação.
Minha mulher
Elaine veio me visitar...
_ Meu amor, o Dr. Basílio está
preocupado com você. O que está havendo?
_ Elaine, já estou preso há mais de
três anos. Se houver outro julgamento, o que acho difícil, será daqui a muito
tempo. Talvez dois, três anos... Não sei... Talvez nunca haja outro julgamento.
Não aguento mais ficar preso! Se eu ficar aqui mais tempo vou enlouquecer!
_ Carlos, temos de pensar nas nossas
filhas...
_ Não penso em outra coisa! Mas o
que adianta eu ficar aqui preso, vendo-as a cada sete dias por uma hora? E
quando elas descobrirem que o pai delas é um presidiário, um condenado? O que
elas irão dizer?
_ Elas vão acreditar em você! Elas
são nosso tesouro! Você tem de ser forte, meu amor!
_ Elaine... eu vou fugir!
_ Fugir? Fugir pra onde? Você está
arrumando motivo pra ser morto?
_ Você pode falar o que quiser. Não
vou mudar de opinião. Se me matarem, pelo menos estarei buscando minha
liberdade!
_ Isso é loucura!
_ Loucura? Loucura é eu ficar aqui
sentado esperando que a justiça se encarregue do meu destino. Loucura é eu
ainda querer acreditar que existe justiça neste país. Loucura é eu perder os
melhores anos da minha vida atrás das grades.
_ Carlos, eu te amo!
_ Eu também te amo, meu amor! Nunca
duvidei disso... Mas não dá mais pra viver neste inferno.
_ E pra onde você pensa em ir, caso
consiga escapar?
_ Ainda não pensei nisso. Talvez pro
Paraguai. Não sei, não entendo de fugas. Mas qualquer lugar é melhor do que
aqui.
_ E Patrícia, e Carlinha... e nós?
_ Eu darei um jeito.
_ Que jeito?
_ Não sei... Primeiro tenho de
escapar deste inferno! Depois... Depois vejo um jeito de ver vocês. Não sei,
Elaine... Não sei! Preciso pensar primeiro num plano de fuga!
_ Meu amor, tenho tanto medo!
_ Eu também...
Elaine me abraçou e chorou. Chorou
como há muito não chorava. Depois se despediu. Durante esses últimos três anos
ela tinha sido extremamente forte. Nunca pensei que minha mulher fosse tão
forte assim. Quem a vê não imagina que por trás dessa mulher de aparência
frágil se esconde uma verdadeira fortaleza.
Plano de fuga
Minha mente estava totalmente
voltada para a fuga. Mas como escapara de um presídio? Era uma situação
totalmente nova para mim. Já havia visto a alguns filmes onde os detentos
escapavam... No entanto, filme é uma coisa, a realidade é completamente
diferente.
Meu plano teria de incluir não só
transpor os muros do presídio. Deveria conter um roteiro de fuga. Não poderia
deixar de pensar num plano B e, também, num C. Talvez até mesmo num D. Isso
para o caso do plano A falhar. Caso eu fosse pego, minha pena poderia aumentar?
Mas e daí? Qual a diferença de ser condenado a 80, 90, 100, 1000 anos? Com
certeza a vigilância também passaria a ser muito mais rigorosa. Não me
importava com isso. Será que iriam me colocar na solitária? Seria torturado? Já
havia presenciado tortura durante o meu período na delegacia. Todas essas
coisas inundavam minha mente.
Quais os obstáculos que eu deveria
transpor? Havia grades... As grades da minha cela, depois as grades do
galpão... Como transpor isso? Além disso teria a guarda. Os guardas sempre
andavam armados. Eu seria um alvo fácil para eles. Depois teria o muro de mais
de seis metros de altura... além dos rolos de arame farpado encima dele. Nos
filmes tudo parece tão mais fácil!
Um túnel!!! Por que não construir um
túnel??? Não, eu estava só nessa empreitada. Ninguém se arriscaria a fugir
comigo. A pena mais longa depois da minha era a do meu colega de cela, Nery.
Ele poderia ficar em liberdade condicional dentro de três anos, já que teria
cumprido um sexto da pena. Não, eu realmente estava só! Ninguém poderia saber
do meu plano. Ninguém! O túnel foi descartado! Levaria 80 anos até terminar um
túnel que me colocasse além dos muros do presídio.
Precisava simplificar as coisas...
Pular etapas... Se a fuga se desse durante as duas horas de recreação, não
teria de me preocupar com as grades. Duas etapas a menos para transpor. Mas
também não teria a vantagem da escuridão da noite. As fugas das prisões nos
filmes sempre ocorrem à noite! Filmes, vida real... Decidi que fugiria durante
o horário da recreação. Mas como fugir à luz do dia? Tanta gente olhando,
vigiando... Não era a mesma coisa que sair de uma festa à francesa.
Éramos 287 detentos, 18 guardas
divididos em três turnos, o chefe da guarda e seu suplente, além do diretor do
presídio. Trezentos e oito pessoas! Durante o período de recreação, havia seis
guardas, o chefe da guarda ou o seu suplente e o diretor do presídio, que quase
nunca saía da sua sala. Duzentas e noventa e cinco pessoas! Duzentas e noventa
e quatro, já que não estaria contando comigo. Eu teria de me preocupar apenas
com os guardas e o chefe. Sete pessoas! Sim, sete pessoas andavam armadas
durante as duas horas de recreação. Sete é número de mentiroso! Sete! Sete é o
número da camisa mais famosa do meu time do coração, o Botafogo. É a camisa de Garrincha,
o anjo das pernas tortas, o demônio da Copa de 62! Sete! Sete são as cores do
arco-íris! Sete! Sete são os pecados capitais! Sete! Deus fez o mundo em sete
dias... Ou melhor, em seis... No sétimo Ele descansou.
E se eu subornasse alguém? Mas quem?
Como eu saberia se a pessoa seria confiável? Em todo caso, passei a conversar
mais com os guardas. Perguntava sobre a vida deles, onde moravam, se eram
casados... Fiquei atento a qualquer gesto ou palavra dos guardas. Algum deles
poderia me dar um sinal de que estaria disposto a querer me ajudar em troca de
uma gratificação. Quanto seria necessário para subornar um carcereiro? Mil
reais? Dois mil? Cinco mil? Bastaria subornar um guarda? E se eu fosse direto
ao chefe da guarda? Foi o que comecei a fazer no início de 2000. No entanto,
logo percebi que seria muito difícil corrompê-lo. Então, passei a sondar o seu
suplente, Djalma Coelho.
* * * * *
Natural de Campina Grande – PB,
mesma cidade do finado seu José, ex-porteiro do meu edifício, Djalma é um moreno
de uns 40 anos, quase 1,80m de altura, uns 100 quilos. Ele mora no morro Chapéu
Mangueira, no Leme, bairro da Zona Sul carioca, casado pela segunda vez e tem
quatro filhos, todos pequenos. A esposa não trabalha fora, pois tem de ficar
tomando conta da sogra, mãe de Djalma, que vive presa a uma cama por causa de
problemas de saúde. Ela perdeu uma das vistas e mal consegue enxergar com a
outra, além de ter tido uma das pernas amputada, tudo consequência da diabete.
O salário de Djalma mal dá para o sustento da família. Por isso, ele sempre fez
uns bicos para sobreviver. Eu havia achado a pessoa ideal para tentar subornar.
Subornar é uma palavra muito forte. Prefiro usar ajuda de custo em troca do meu
passaporte para a liberdade.
Não foi difícil me aproximar de
Djalma. Ele é um sujeito bastante comunicativo, apesar da aparência de poucos
amigos. Gosta muito de músicas de dor de cotovelo, sendo o cantor Bartô Galeno
seu artista preferido. Comprei-lhe até um disco desse cantor, um long play – LP – que contém um grande
sucesso que é mais ou menos assim: “No toca-fita do meu carro uma canção me faz
lembrar você, acendo logo um cigarro e procuro te esquecer...”. Não me lembro
do resto, mesmo porque nunca fui muito ligado à música. Minha mulher, por outro
lado, adora, principalmente as músicas do cantor Zé Geraldo. Sua canção
favorita é Senhorita (“Minha meiga
senhorita, eu nunca pude lhe dizer, você jamais me perguntou de onde eu venho e
pra onde eu vou...”).
_ A sua mãe piorou, Djalma?
_ Ah, o doutor disse que ela tem que
tomar uns remédios... Mas tá tudo caro! Pobre num pode ficar doente.
_ E quanto custa esses remédios?
_ Ah, é muito caro, Carlos. Não vai
dar pra comprar...
_ Quanto é, homem?
_ Cento e oitenta reais...
_ Não se preocupe, meu amigo. Amanhã
você terá esse dinheiro.
Telefonei para Elaine e lhe pedi que
me trouxesse R$ 200,00. E assim fui conquistando a amizade do Djalma. Só lhe
pedi que essas coisas ficassem entre nós.
_ Carlos, mas aqui tem mais
dinheiro...
_ Fique com tudo. A gente nunca sabe
quando vai precisar...
_ Muito obrigado, Carlos. Que Deus
abençoe voe e toda a sua família.
Os dias foram passando... Djalma e
eu estreitamos relações. Sempre perguntava pela sua mãe.
_ E a dona Severina, Djalma?
_ Ah, Carlos, graças a Deus e a
você, ela está melhorando muito. Ela pediu pra lhe agradecer.
_ Não precisa... Fiz isso pela nossa
amizade.
Mais um ponto a meu favor! Djalma já
não passava um dia sequer sem que viesse a mim para trocarmos algumas palavras.
Mas nunca ficávamos muito tempo juntos, mesmo porque alguém poderia notar.
Foi no início de dezembro que fiz a
proposta a Djalma. Minha fuga por uma boa quantia em dinheiro. A princípio
ofereci R$ 3.000,00. Ele ficou bastante irritado.
_ Carlos, pensei que fôssemos
amigos!
_ Mas somos, Djalma. Só que não
aguento mais ter de pagar por algo que não fiz. Puxa, não é justo!
_ Por favor, não me procure mais pra
falar sobre esse assunto. Só não vou contar ao diretor em consideração ao que
você fez por minha mãe.
Virou as costas e saiu furioso.
Fiquei completamente desolado. Como conseguiria escapar sem a ajuda de alguém?
Comecei a pensar em outro plano. Mas que plano? Não sou bandido, sou médico
veterinário. O que sei é cuidar de animais, não sei fugir de prisões!
* * * * *
Dois dias depois da proposta que fiz
a Djalma, ele veio falar comigo.
_ Carlos, pensei muito sobre o que
você me disse. Sabe, não sou desonesto, nunca roubei...
_ ... – apenas concordei com um
sinal de cabeça.
_ Olha, ganho muito pouco como
agente penitenciário. Quase não dá pro sustento da minha família. Ainda tem a
minha mãe... Como você sabe, ela é uma senhora doente... Quanto é mesmo que
você disse que me daria... caso eu o ajudasse?
_ Três mil reais.
_ Três mil reais? Não sei se vale a
pena...
_ Posso arrumar R$ 5.000,00!
_ Cinco mil? É... Já tá começando a
valer mais a pena...
_ Quanto você quer, Djalma?
_ Não sei, o senhor pode arrumar
quanto?
Eu sabia que ele estava me testando,
queria ter uma ideia de até quanto eu poderia arrumar. Mas ele estava com a
faca e o queijo nas mãos.
_ Djalma, talvez consiga arrumar R$
6.000,00.
_ Arrume R$ 10.000,00 e poderemos
conversar!
Dez mil reais! Pois foi essa a
quantia que o carcereiro me pediu para pactuar com minha fuga. Não tinha
certeza de que conseguiria arrumar tanto dinheiro. Até mesmo R$ 5.000,00 seria
muito dinheiro.
* * * * *
Na primeira
oportunidade que tive de falar pessoalmente com Elaine, contei-lhe todos os
detalhes da minha conversa com Djalma.
_ Mas, Carlos, esse homem está te explorando!
E quem garante que ele não vai traí-lo e ainda ficar com o dinheiro? Além do
mais é muito arriscado!
_ Elaine, já conversamos sobre isso.
Não quero passar o resto da minha vida aqui dentro. Se puder me arrumar o
dinheiro, tudo bem. Mas não me venha mais com essa história de que estou me
precipitando...
_ Meu amor, estou com medo! E se
alguma coisa acontecer a você?
_ Também tenho medo, Elaine. Mas não
dá pra ficar aqui esperando que algum dia alguém veja a injustiça que fizeram
comigo. Quanto vai ser isso? Quando eu estiver com 80 anos?
_ Eu te amo tanto, meu amor...
_ Também te amo. É muito duro ter de
pagar por algo que não se fez, ter de ficar longe da família, das meninas, de
você... Tudo é muito difícil. Você entende o que estou falando?
_ Sim... Não sei se temos todo esse
dinheiro... Posso pedir um empréstimo no banco... Posso falar com meus pais...
Com a sua mãe...
_ Mas não conte a eles sobre a minha
fuga. Tenho certeza de que todos serão contra.
_ Está bem, meu amor. Me dê alguns
dias pra ver se arrumo o dinheiro.
_ Se você não conseguir todo o
dinheiro, peça ao Bernardo.
_ Está bem...
Ela estava tão linda, nos abraçamos
e fizemos amor... Amor tão gostoso como há muito não fazíamos. Depois ela se
despediu com um longo beijo.
* * * * *
Dois
dias depois minha mulher me telefonou.
_
Meu amor, tenho dez mil razões pra sempre te amar!
Ela
havia conseguido o dinheiro!!! Pulei de alegria!!!
_
Também te amo, meu amor! Também te amo!!!
Um
guarda olhou para mim espantado por causa de tamanha felicidade estampada no
meu rosto.
_
O que foi? Ganhou na loteria?
_
Melhor, muito melhor! Minha mulher me ama! Me ama muito!!!
Ele
ficou sem entender. Melhor para mim.
* * * * *
Assim que avistei Djalma, lhe disse
que havia conseguido o dinheiro.
_ Dez mil?
_ Dez mil! E podem ser todinhos
seus... se me ajudar a escapulir desta gaiola. Sou como um passarinho, não
gosto de ficar preso.
Djalma me contou que o meio mais
fácil (ou melhor, menos difícil) para fugir seria através da enfermaria. Eu
teria de arrumar um jeito de ir para lá. Mas como? Fingir que estava passando
mal? Bem, isso talvez não fosse muito difícil. Da enfermaria para a liberdade
eu teria de passar por duas portas e pelo portão principal. Duas portas, a do
quarto onde eu estaria e a da entrada da enfermaria. Na enfermaria sempre
ficava um guarda na porta de entrada quando havia algum prisioneiro sendo
atendido. No portão principal também teria mais um guarda. E havia o guarda na
torre, que ficava na ala esquerda do presídio. Os outros três guardas não me
atrapalhariam, pois ficavam em outros setores do presídio. Djalma colocaria
sonífero no café dos três guardas (o da enfermaria, o da torre e o do portão
principal). A fuga teria de ser à noite. O Natal seria uma ótima data!
_ Se o sonífero não funcionar... –
Djalma me entregou uma faca.
_ Não sou assassino!
_ Mas já matou... E não foi apenas
uma vez!
Em todo caso, fiquei torcendo para
que o sonífero fizesse efeito.
Djalma disse que só me ajudaria a
sair do presídio. Assim que eu estivesse na rua, era por minha conta. E se eu
fosse pego, ele não poderia fazer coisa alguma. Não tive outra escolha a não
ser concordar. E o dinheiro seria cortado! Aprendi isso lendo Papillon, um ótimo livro que conta a
saga de Henri Charriere. Todas as notas foram partidas ao meio. Metade ficou
com Djalma; a outra, com Elaine. Se Djalma me traísse, de nada valeriam as
metades das notas que ficariam em seu poder.
Eu não tinha um plano B nem um C...
muito menos um plano D. Teria de apostar todas as minhas fichas no plano A.
Depois de sair do presídio, me dirigiria para Japeri ou qualquer local distante
do centro nervoso da cidade.
Natal! Nunca havia desejado tanto
que um Natal chegasse logo. Nem no meu tempo de criança, louco de desejo por um
presente do Bom Velhinho.
Os dias seguintes
Os dias seguintes foram os mais
tensos até então. Não conseguia deixar de pensar na minha fuga um minuto
sequer. Fugir! Fugir! Fugir! Era só nisso que eu pensava.
O que havia mudado durante o período
em que estivera preso? Carlinha nem havia nascido quando fui detido e, agora,
já estava com quase três anos, a mesma idade que Patrícia tinha naquela época.
No mês seguinte, minha filha mais velha estaria completando sete anos. Sete!
Sim, o mesmo sete que certa ocasião tanto teimara em martelar a minha mente.
Elaine estava com 23 na época da minha prisão, agora tinha 26. Eu, 25 anos, já
que nasci no dia 9 de outubro de 1971. Estava agora com 29. Minha mãe ainda não
completara 50, mas sua aparência era a de pelo
menos 10 anos a mais. Pobre dona Stella, não suportava ver seu único
filho atrás das grades, injustiçado. Nem as netas tão queridas conseguiram
aplacar o mal que os interesses do senador Camilo Pessoa de Alcântara estavam
fazendo ao seu filho tão amado. De todas as pessoas, minha mãe foi a que mais
sentiu a desgraça que me acontecera. Ela, que sempre foi uma mulher de alto
astral, sorridente, otimista, caíra numa depressão que parecia não ter fim. Até
seu Francisco, o homem que conseguira devolver-lhe a alegria no coração após a
morte de meu pai, não estava tendo o mesmo sucesso. Ah, mamãe, quanto
sofrimento!
Fernando Henrique Cardoso continuava
Presidente, César Maia era eleito novamente prefeito do Rio depois de um
mandato de Luiz Paulo Conde. O Campeonato Brasileiro de Futebol não havia
acabado, e muitos atribuíram o fato ao juiz Oscar Roberto Godói e ao então
deputado federal e dirigente de futebol Eurico Miranda. A final entre os times
do Vasco da Gama e do São Caetano (Que time era esse? Nunca tinha ouvido
falar!) não havia acabado, já que o alambrado do estádio São Januário caíra em
virtude da superlotação. Final do Campeonato Brasileiro em São Januário? É...
Comecei a pensar que eu estava ocupando o lugar não só do senador Camilo Pessoa
de Alcântara, mas de muita gente que deveria estar presa.
Natal de 2000
Estava no bondinho do Pão de Açúcar. Estava só...
Aliás, havia um mendigo deitado num dos cantos do bondinho. Ele estava enrolado
em um monte de jornais velhos. Cheguei mais perto para ver seu rosto, que
estava virado para a parede de vidro. Ele soltava pequenos grunhidos, grunhidos
que me irritavam cada vez mais. Vi uma fotografia estampada num dos jornais.
Era uma foto antiga, talvez não contasse com 10 anos ainda. Uma fotografia
triste! Nunca Havia visto aquela fotografia, pelo menos não me lembrava dela.
Havia um fundo cinza na foto. Tentei ler o que estava escrito ao lado da foto,
as letras apareciam, sumiam, voltavam a aparecer... Surgiram nítidas à minha
frente, mas logo desapareciam antes mesmo de eu conseguir lê-las, como numa
brincadeira de criança. Os grunhidos
irritantes continuavam, agora em intervalos cada vez menores. Peguei o jornal
que continha a minha foto e, para minha surpresa, as palavras haviam sumido de
vez. A fotografia também foi perdendo a nitidez até o ponto de desaparecer por
completo. Os grunhidos ficaram mais altos até estourarem numa enorme gargalhada
digna de Vincent Price. O mendigo virou-se para mim... Era meu pai!
Acordei com a adrenalina tomando conta
de todo o meu corpo. Véspera de Natal! Seria o meu último dia naquela enorme
gaiola de homens! Meu plano teria de dar certo, já que havia estudado cada
detalhe como há muito não estudara, desde os tempos na Rural, quando tive de
decorar cada forame dos ossos em Anatomia Animal I, os nomes científicos dos
inúmeros seres em Parasitologia I e II... Não! Tudo sairia do jeito que havia
planejado! Tudo! Minha confiança era tamanha que fiquei cego para os possíveis
problemas que por ventura pudessem aparecer. Ninguém poderia me impedir de
passar o Natal em liberdade. Livre!
* * * * *
Durante o dia recebi a visita de
meus familiares. Elaine estava muito nervosa, pois sabia que aquela noite seria
o momento da minha fuga.
_ Carlos, estou com tanto medo! E se
alguma coisa acontecer a você? O que será da gente?
_ Meu amor, já conversamos sobre
isso. Vamos comemorar! Vamos comemorar! Tudo vai dar certo!
Minha mãe estava particularmente
abatida.
_ Tenho tanta saudade dos Natais que
passamos com seu pai. Você ficava sempre ansioso, não conseguia esperar dar
meia-noite para abrir os presentes.
_ Também tenho saudade, mamãe. Logo
estarei em casa com a senhora comemorando os muitos Natais que ainda teremos
pela frente.
_ Eu rezo todos os dias para isso,
meu Carluccio! Eu rezo todos os dias...
Às 17h minha família foi embora.
Como era véspera de Natal, o horário de visita fora estendido por mais uma
hora. A última a se despedir foi minha mulher. Ela me abraçou tão forte, me
fitou de forma tão doce e, ao mesmo tempo, confiante.
_ Meu amor, você vai conseguir! E
estaremos te esperando! Sempre!
* * * * *
Assim que minha família foi embora,
Djalma veio me contar que estava tudo preparado. Eu teria de simular um
mal-estar às 22h30. Ele colocaria sonífero nas garrafas de café destinadas aos
três guardas que deveriam dormir: o que ficava na porta da enfermaria, o da
torre e o do portão principal.
No horário marcado, chamei o guarda
que estava fazendo a vigília no galpão. Em menos de cinco minutos ele atendeu o
meu chamado.
_ O que foi? O que você quer?
_ Não estou passando bem. Acho que
comi demais... Talvez a maionese...
_ Hum...
Desconfiado, por instante o guarda
hesitou.
_ Vou ver o que posso fazer.
Quase meia hora depois entra na
minha cela o enfermeiro de plantão. Ele me examinou e disse que bastavam alguns
comprimidos para que eu melhorasse. Tentei argumentar, mas ele foi
intransigente. Eu tinha de ir para a enfermaria e aquele idiota preferiu me
deixar ali mesmo na cela. Fiquei desesperado! Comecei a passar mal de verdade,
mas o incompetente do enfermeiro insistiu nos malditos comprimidos sem, ao
menos, aferir minha pressão arterial.
Comecei a me lembrar das garrafas de
café com sonífero que Djalma havia providenciado. Se os três guardas dormissem,
com certeza descobririam o meu plano de fuga. A vigilância sobre mim seria
redobrada a partir de então. Acabei nem dormindo direito àquela noite. Não
seria dessa vez que minha fuga se concretizaria. Diabos!!!
* * * * *
No dia seguinte, durante o horário
de recreação, Djalma veio falar comigo.
_ Fiquei esperando você. O que
houve?
_ O cretino do enfermeiro não quis
me levar pra enfermaria. Mas e o sonífero?
_ Não se preocupe, estava esperando
você entrar na enfermaria pra levar o café dos guardas. Só tive de jogar todo o
café fora... e o sonífero foi junto. Tenho que comprar mais.
Entendi o recado de Djalma. Acabei
dando R$ 250,00 (um absurdo) para o meu cúmplice providenciar mais sonífero.
A fuga
Eu teria de bolar algo mais
convincente para que me levassem para a enfermaria. Teria de ser algo que não
deixasse a menor dúvida de que realmente eu estava passando mal. Mas o quê?
Pensei, pensei, pensei...
Na primeira oportunidade que tive,
pedi ao Djalma para me arrumar algumas coisas: sal de cozinha, sangue de
mentira (que se compra em lojas de fantasias de terror) e Sonrisal.
_ Pra que você quer essas coisas?
_ Pra conseguir meu passaporte pra
enfermaria!
Eu iria misturar o sal com água e,
então, beberia. Isso faria com que eu vomitasse. O ideal é usar água morna, mas
seria difícil arrumá-la. Então, seria com a água que tinha no filtro de cela
mesmo. Depois que eu vomitasse, colocaria o Sonrisal e o sangue de fantasia na
boca, o que daria a impressão de que eu estava vomitando sangue. Grande ideia,
pensei! Com certeza seria levado para enfermaria na mesma hora!
O dia escolhido para a fuga foi 31
de dezembro de 2000. Último dia do ano, último dia do século, último dia do
milênio. Pretendia ganhar as ruas durante essa passagem histórica! Liberdade!
Liberdade! Liberdade! Era tudo no que pensava. Liberdade já virara uma
obsessão!
* * * * *
Na véspera da passagem para o Ano
Novo, minha família voltou a me visitar. O diretor, mais uma vez, estendeu o
horário de visita até as 17h.
_ Desta vez vai dar certo!
_ Tenha cuidado, meu amor. Estarei
rezando pra que tudo dê certo.
Elaine parecia mais confiante no meu
plano. Ela havia arrumado um sítio de uma tia, irmã de sua mãe, em Itaipava,
onde eu poderia me esconder por um tempo. Nós já havíamos ido nesse sítio
quando ainda namorávamos.
Minha mulher queria me levar até o
sítio, mas a proibi. Não queria envolvê-la nisso. Eu daria um jeito de chegar
lá.
_ Mas como você vai chegar em
Itaipava?
_ Vou de ônibus! Vai ter tanta gente
na rodoviária que serei apenas mais um na multidão.
_ Não! É muito arriscado. Vou
levá-lo de carro. Depois volto pro Rio e ninguém vai suspeitar de que o ajudei.
_ Elaine, não seja boba! Não quero
que você se meta nessa história. Se a pegarem comigo nunca irei me perdoar.
Alguém tem de tomar conta das nossas meninas. E tem de ficar em liberdade pra
fazer isso!
_ Mas se você for de carro será
muito mais seguro. Além do mais, em pouco tempo você estaria no sítio da minha
tia.
_ Não!!!
_ ...
_ Já sei! Você quer mesmo me ajudar?
Então, estacione o carro na rua Riachuelo, logo depois do túnel Martins de Sá.
_ Está bem. Mas e a chave do carro?
_ Coloque-a atrás da roda dianteira
do lado do motorista.
Tudo combinado! Se eu conseguisse
chegar até o carro, antes mesmo do amanhecer estaria no sítio da tia de Elaine.
Depois alguém traria o carro de volta. A sorte estava lançada!
* * * * *
Djalma passou diante da minha cela e me fez o sinal
combinado (uma piscadela de olho) de que tudo estava pronto. Agora era a minha
vez de agir. Esperei até as 22h30 e, então, preparei minha água com um bom
punhado de sal, tomando o cuidado para o meu colega de cela não perceber. Nery
estava assistindo a um filme na televisão.
_ Carlos, você pode me dar um pouco d’água também?
Peguei o copo d’água para o meu colega de cela. Bebi
minha água salobra em goles longos. Fiz o possível para não cuspi-la, o gosto
era horrível. Até virei as costas para que Nery não percebesse minhas caretas
que, na certa, devo ter feito. Não demorou para eu começar a passar mal.
_ Você está amarelo, amigo.
Nery teve tempo apenas de desviar o corpo para que o
conteúdo do meu estômago não caísse em cima dele. Vomitei todo o jantar: peru
assado, salada de maionese, arroz à grega, farofa de torresmo e duas rabanadas.
_ Guarda! Guarda! Guarda! – gritava Nery, enquanto eu
colocava o Sonrisal sob a língua e, logo após, o sangue falso na boca. Assim
que o carcereiro apareceu, me viu cuspindo toda aquela gosma vermelha e
espumante. Ele saiu em disparada e, cinco minutos depois, voltou com o
enfermeiro de plantão, o mesmo que me receitara alguns comprimidos na véspera
de Natal. Sua cara estava mais branca que marquinha de biquíni. A cela foi
aberta e, com a ajuda do guarda, o imbecil do enfermeiro me levou para a
enfermaria, onde entrei às 22h55, segundo o relógio colocado numa das paredes.
_ Tenho de voltar ao meu posto, além de chamar alguém pra
ficar aqui na enfermaria, Jonas – disse o carcereiro.
_ Só me ajude a colocar o prisioneiro aqui na cama –
pediu o enfermeiro.
Fui colocado na cama de um dos quartos. O guarda que fora
chamado por Nery, então, voltou ao seu posto.
O enfermeiro andava de um lado para outro sem saber muito
o que fazer. Tentou ligar para o médico responsável pelo presídio, mas não
conseguiu. Mexeu no armário de remédios, derrubou alguns vidros. Acabou me
colocando para tomar soro fisiológico e outras medicações na veia.
_ O que você comeu?
_ Ah... Acho que exagerei no garfo.
_ Comeu coisa pesada?
_ Maionese... Acho que foi a maionese. Não, acho que foi
a farofa de torresmo... Pensando bem, deve ter sido a rabanada...
Fui tentando ganhar tempo. Segundo Djalma, o sonífero
demorava mais ou menos meia hora para fazer efeito. Ele não soube me dizer a
base usada ou o nome do sonífero (“_Mas é tiro e queda, Carlos! Não falha! O
sujeito dorme que nem um anjinho por umas boas quatro, cinco horas!”). Não
tinha escolha, a não ser confiar no meu cúmplice.
O soro pingava lentamente... Cada gota que caía ia
anunciando a chegada da hora de agir. Teria de me livrar do enfermeiro também.
Não seria difícil, pensei, já que o sujeito não é grande. Pelo contrário, seu
corpo pequeno e mirrado me fez lembrar do Canela, detento que conheci quando
estive preso na delegacia. Os guardas, os guardas... Talvez fosse prudente
pegar o jaleco do enfermeiro... Minha mente começou a ter mil ideias, algumas
que poderiam levar minha fuga ao fracasso. Tentei apagar todas as ideias da
minha mente. Iria me concentrar no Plano A, meu único plano! Depois de passar
pelo enfermeiro, iria colocar o seu jaleco e, então olharia o guarda postado à
porta da entrada da enfermaria. Se esse estivesse dormindo, observaria o guarda
da torre. Caso este também estivesse sonhando com os anjos como Djalma me
contara, caminharia em direção ao portão principal. Com certeza o guarda de lá
também estaria dormindo, pensei. Mas e se o sonífero não funcionasse? Quase
entrei em desespero. Calma! Era disso que eu precisava. Sempre mantive sangue
frio até durante as cirurgias mais difíceis, mesmo nos primeiros tempos de
Rural. Bernardo até brincava dizendo que meu nome deveria ser Carlos Ice-Cesario por causa da minha frieza.
Os fogos de artifício anunciaram a chegada de 2001! Mais
uma hora e, então, prosseguiria a operação fuga. Foram os 60 minutos mais
longos de toda a minha vida. Os minutos que antecedem a partida! Os minutos que
precedem uma prova difícil na faculdade! Todos os meus sentidos estavam se
aflorando. Conseguia ouvir o tique-taque do relógio que avistara quando entrei
na enfermaria. Tique-taque, tique-taque, tique-taque... Maldito barulho do
relógio! Os pingos do soro fisiológico que iam entrando na minha veia e
hidratando meu corpo já estavam dando adeus. Os cheiros do ambiente eram todos percebidos
pelas minhas narinas: éter, álcool, clorofórmio, o desodorante vencido do
enfermeiro...
O enfermeiro retirou o soro fisiológico. Disse que iria
deitar um pouco no sofá que ficava na recepção da enfermaria.
_ Tente dormi um pouco. Mais tarde eu virei vê-lo.
_ Tá bem... Obrigado por tudo – respondi.
Ele fez um sinal com a cabeça e saiu. Dei um tempo, uns
20, 30 minutos e, então, me levantei, me aproximei da porta do quarto, abri uma
pequena brecha e pude ver o enfermeiro roncando como um porco. Até parecia que
ele havia tomado o café com sonífero. Olhei pela janela e vi a sentinela na
cadeira ao lado da porta da enfermaria. Sua cabeça e seu corpo pendiam para
frente como uma vara de pescar quando fisgamos um peixe do tamanho daqueles das
histórias (ou estórias?) de pescador. Deixei de lado a ideia de pegar o jaleco
do enfermeiro. A cor branca poderia me denunciar, mesmo porque sou mais alto e
bem mais forte que o enfermeiro (tenho 1,76m de altura e peso uns 80 quilos).
Além do mais, o sonífero parecia estar cumprindo o seu papel. Abri a porta da
enfermaria e fui me esgueirando na parede até uma das pontas, de onde pudesse
avistar o guarda da torre. Nada! Não consegui avistá-lo! Estaria dormindo? Esperei
mais alguns instantes, mas nada acontecia. Resolvi contar com a sorte: o guarda
da torre deveria estar dormindo, tinha de estar! Então, caminhei em direção ao
portão principal, sempre encostado no muro ou atrás de alguma coisa que pudesse
me camuflar. De vez em quando voltava os olhos para a torre, mas nada avistava.
A sensação era a de que mais cedo ou mais tarde levaria um tiro pelas costas.
Estava a menos de cinco metros do portão principal quando avistei o terceiro
guarda. Sim, o terceiro e último dos guardas, aquele que me separava da
liberdade. Para minha surpresa e frustração, ele não estava dormindo. Parecia
até bem acordado. E agora, o que eu faria? Voltar atrás? Não, eu já estava tão
próximo da liberdade! Não seria justamente agora que desistiria. Eu tinha de
continuar! Tentei bolar algo. Enquanto isso, o guarda pegava um pouco de café
na garrafa térmica e sorvia o líquido preto aos poucos. Será que Djalma se
esquecera daquele guarda? Será que ele trocou as garrafas térmicas? O
enfermeiro havia dormido tão rápido. Na certa Djalma havia feito confusão com
as garrafas. Ou, então, ele teria me traído! Mas por quê? Não, ele não seria
tão burro assim, já que deixaria de receber os R$ 10.000,00 – a outra parte das
notas estava com Elaine. Ou seria?
Devo ter ficado mais de meia hora observando o maldito
guarda. Minutos preciosíssimos da minha fuga. Teria de agir, e teria de ser
naquele momento. Não podia esperar mais! Fui me esgueirando até ficar a menos
de dois metros do meu algoz. Ele, sentado numa cadeira dentro da cabine envidraçada
na parte da frente; eu, encostado na parede lateral. Eu teria de abatê-lo sem
fazer muito barulho. Peguei a faca que Djalma havia me dado e fui me
aproximando do carcereiro. De repente, ouço um barulho de cadeira se
arrastando! Um frio percorrer minha espinha, me preparei para a luta corpo a
corpo com a sentinela. Nada! Absolutamente nada! Nenhum sinal do guarda!
Estiquei um pouco o pescoço e pude vê-lo dormindo como um bebê no chão da
cabine. A ansiedade correu todos os meus poros. Era hora de dar mais um passo
rumo à minha liberdade. O passo definitivo! Havia um molho de chaves sobre a
mesa dentro da cabine. Peguei-o! Qual seria a chave? Qual? Saí da cabine e fui
testar as chaves no portão. Havia dois grandes cadeados no portão, além da
fechadura. Consegui abrir o primeiro cadeado... O segundo foi logo aberto
também. Faltava abrir a fechadura! A chave... Onde estava a maldita chave? A
única que faltava para eu voltar a respirar liberdade! Achei!!! Abri o portão,
que fez um rangido característico dos portões de ferro empenados. Ganhei as
ruas...
* * * * *
Depois de mais de três anos estava livre. Livre! Fechei o
portão e saí correndo até a esquina da rua Frei Caneca. Rumei para o túnel
Marins de Sá ora a passos acelerados, ora correndo. Atravessei o túnel e logo
avistei o Gol prata da minha querida Elaine. Peguei a chave que minha mulher
havia colocado atrás da roda dianteira do lado do motorista. Abri a porta do
carro, liguei o motor. Minha tensão era tamanha que deixei o carro morrer.
Novamente virei a chave, o motor voltou a pegar. Fui em direção à av. Brasil.
O trânsito não estava ruim, logo peguei a Washington Luís
e rumei para Itaipava, em Petrópolis. Liguei o rádio, onde tocava My Way com Frank Sinatra. Segui meu
caminho.
Tia
Rita
Cheguei a Itaipava às 4h. Apesar de ter vindo apenas uma
vez e há tanto tempo, não foi difícil encontrar o sítio de dona Rita. As luzes
da propriedade estavam quase todas apagadas, com exceção de uma lâmpada da
varanda da casa principal e de outra colocada no alto da caixa d’água. Estacionei
o carro na porteira, desliguei o motor, mas mantive os faróis acesos. Um
cachorro enorme começou a latir. Fiquei esperando alguém aparecer.
_ Quem está aí?
_ Dona Rita, sou eu, Carlos, o marido da Elaine.
A tia de minha mulher veio abrir a porteira para que eu
entrasse.
_ Meu filho, você conseguiu! A Elaine me avisou que
talvez você viesse, mas não disse quando. Que bom que você conseguiu!
Dona Rita me abraçou e me beijou nas faces.
_ Ponha o carro pra dentro. Passa, Tinho! Você se lembra
do Tinho?
_ Esse é o Tinho? Puxa, como cresceu!
_ Pois é, o danado quase não vingou... Defecou até
sangue. Mas se salvou graças aos chás que o seu Tião fez. Menino, você
precisava ver como ele estava mal!
Tinho era o cachorro de dona Rita; seu Tião, o caseiro.
Assim que pus os pés dentro da casa de dona Rita...
_ Meu filho, você deve estar com fome. Vou fazer um
lanche. Enquanto isso, tome um banho pra relaxar; você dever estar cansado da
viagem. Já estou com o quarto de hóspede pronto há três dias esperando por
você.
_ Obrigado, dona Rita...
_ Me chame de tia Rita, afinal, você é casão com minha
sobrinha. Então, você também é meu sobrinho. Há quanto tempo!
_ Pois é, muito tempo, tia Rita.
_ Deixe de falação! Vá tomar seu banho. Vou pegar uma
toalha pra você.
Fui tomar meu banho. A água estava especialmente gostosa.
Era o meu primeiro banho em liberdade depois de tanto tempo preso. Deixei a
água do chuveiro cair sobre meu rosto. Era uma sensação tão boa! Depois do
banho fiquei me olhando no espelho do banheiro. Sorri ao lembrar de que havia
conseguido escapar da prisão. Foi como sair à francesa, pensei. Vesti a mesma
roupa e fui comer o delicioso lanche que tia Rita havia preparado.
_ Gosta de suco de maracujá? Eu mesma que plantei. Prova
só pra ver que delícia.
_ Hum, muito bom, tia Rita!
_ Não precisa ficar com vergonha, meu filho. Como à
vontade.
_ Obrigado! Está tudo muito bom! Só a senhora pra fazer
um lanche tão gostoso assim, tia Rita.
A tia de minha mulher sabia o que havia acontecido
comigo. Mesmo assim pediu-me para lhe contar toda a minha história. Ela
prestava atenção em tudo, pedia detalhes de uma parte ou outra.
_ Meu filho, como você sofreu! Mas e esse senador não vai
ser punido?
_ Não, sei, tia Rita. Não sei...
_ Ah, mas o que aqui se faz, aqui se paga. Pode ter
certeza disso, meu filho.
_ ...
_ Ih, já passa das 6h! Vamos deitar um pouco, meu filho.
Você deve estar muito cansado. Daqui a pouco o seu Tião está de volta pra tirar
leite das vacas e tratar dos animais.
_ E ele sabe de mim?
_ Não se preocupe, meu filho. Seu Tião é de inteira
confiança. Estou com ele há mais de 15 anos e posso lhe garantir que é homem de
bem.
Segui o conselho de tia Rita e fui dormir. Deitei em
decúbito dorsal e fiquei fitando o teto do quarto. Pensei em Elaine, minhas
filhas, minha mãe, na fuga, no que os jornais anunciariam, no Dr. Basílio, no
detetive Celso, no jornalista João... Com certeza todos no presídio iriam ficar
surpresos com minha fuga. E o cretino do senador Camilo Pessoa de Alcântara?
Qual seria a reação dele quando soubesse da minha fuga? Daria mais R$ 10.000,00
só para ver a cara daquele filho da puta!
Adormeci...
Amanhecer
em liberdade
Despertei... Olhei em volta e comecei a me lembrar do
ocorrido na passagem de ano. Ano novo, vida nova, pensei! O sol lá fora estava
alto, talvez já fosse mais de meio-dia. Ouvi vozes possivelmente vindas da
cozinha. Era tia Rita conversando com seu Tião. Ele não havia passado a noite
no sítio, tinha ido visitar a filha em Nogueira, que também pertence a
Petrópolis. Levantei e fui lavar o rosto e escovar os dentes.
_ Boa tarde, meu filho! Se lembra do seu Tião?
_ Claro. Como vai o senhor?
_ Graças a Deus vou indo bem, Carlos. Dona Rita tava me
contando a arapuca que armaram pra você.
_ Pois é...
_ Deixa de conversa, você deve estar com fome. Tem pão,
queijo, presunto, geleia, leite, café. Vai fazendo uma boquinha enquanto
termino o almoço. Hoje vai ter galinhada. É uma receita da Ione, filha do seu
Tião. Você conheceu a Ione?
_ ... – fiquei sem saber se sim ou se não.
_ Não, eles não se conheceram, dona Rita. Quando o Carlos
veio aqui com a Elaine, a Ione já tava
casada – respondeu seu Tião por mim.
Depois de comer um pedaço de pão com queijo e tomar um
cafezinho (não foi difícil lembrar do café com sonífero), fui dar uma volta
pelo sítio. Tinho, o enorme cachorro de tia Rita, negro azeviche, veio me fazer
companhia. Olhei os animais, chupei uma manga espada que apanhei no pé. Minha
família não me saía da cabeça. Queria vê-los, mas seria arriscado. De repente
meu pensamento foi interrompido pelo chamado de tia Rita.
_ Carlos, corre aqui! Rápido, meu filho!
Saí correndo que nem doido. O que teria acontecido?
_ O que houve, tia Rita?
_ É você na televisão. Estão falando de você na
televisão.
Era o jornal RJ TV:
“_ O perigoso assassino e traficante de drogas Carlos Cesario, vulgo Doutor,
escapou do presídio Desembargador Hélio Bueno Brandão durante a passagem do ano
novo. A polícia de todo o estado foi acionada, e o delegado João Carlos do Amor
Divino declarou que já tem informações de que o perigoso bandido estaria
escondido no subúrbio da cidade”.
_ Meu filho, não se preocupe, você está bem seguro aqui.
_ Não sei, tia Rita... Talvez fosse melhor fugir pro
Paraguai.
_ Não, você fica aqui! A polícia tá atrás de você,
Carlos. É como numa caçada. Se o bicho ficar quietinho no seu canto, o caçador
vai ter de pelejar muito pra pegá-lo. Mas se ficar desesperado e começar a
correr... Aí, o caçador vai e apanha ele na mesma hora! – disse seu Tião com um
ar de grande caçador.
_ Ele tem razão, meu filho. Você fica aqui até as coisas
se acalmarem. Depois a gente vê o que vai fazer.
Preferi não contrariar os dois, mesmo porque eles
conheciam a região melhor do que eu. Além do mais, o sítio era bem afastado,
quase não passava gente por ali. É um excelente esconderijo, pensei. No
entanto, teria de me manter longe de minha família. Na certa a polícia estaria
vigiando cada passo da minha mulher e da minha mãe. Meus impulsos deveriam ser
controlados!
_ Meu filho, aqui é bem seguro, mas também não podemos
facilitar. Antes de sair de casa, dê sempre uma olhada pra ver se tem gente por
perto. Nunca se sabe...
_ A senhora tem toda razão, tia Rita.
Mesmo estando em um sítio afastado da comunidade, eu
teria de ser cauteloso. Era a minha liberdade que estava em jogo. A minha vida
também estava, pois agora eu era um foragido.
Enquanto
isso...
Assim que Dr. Basílio ficou sabendo
da minha fuga, contatou o detetive Celso e o jornalista João, que já estavam a
par de tudo. Marcaram uma reunião para o dia seguinte. O meu advogado, no
entanto, foi ter uma conversa com minha mulher antes do encontro com os outros
mosqueteiros.
_ Elaine, você sabe onde está o Carlos?
_ Não posso falar. Prometi a ele que
não contaria.
_ Elaine, você não entende, a
polícia inteira está atrás dele. Se o acharem irão matá-lo.
_ Dr. Basílio, sei que o senhor só
quer ajudar... Mas eu prometi ao Carlos que não diria pra ninguém.
_ Eu entendo. Mas quando você falar
com ele, diga-lhe que estamos tentando ajudá-lo. Não o deixe fazer besteira.
Sei que o Carlos é um pouco impulsivo, o que é próprio da juventude.
_ Sim, doutor, vou falar com ele. Só
que não sei quando irei ter essa oportunidade.
Antes do meu advogado se despedir de
minha mulher, ele entregou-lhe alguns números de celulares.
_ Elaine, qualquer coisa que o
Carlos precisar, ligue pra esses números. São os celulares do detetive Celso
Machado e do jornalista João Alves de Matos. Também coloquei o número do meu
celular. Não ligue daqui, pois seu telefone pode estar grampeado. Ligue de
orelhões.
_ Obrigada, Dr. Basílio. Sei que
vocês só querem ajudar. Mas não quero trair a confiança do meu marido.
_ Não se preocupe, minha filha. Eu
entendo. Vamos tentar ajudar o Carlos da melhor forma possível. Todos sabemos
da injustiça que estão fazendo com ele.
* * * * *
O encontro dos três mosqueteiros se deu no Peixe Frito do Vovô Genaro, restaurante
localizado na rodovia Presidente Dutra.
_ Meu amigos, estive esta manhã com a esposa do Carlos.
Ela sabe onde ele está, mas não quis falar, pois prometeu ao marido.
Perfeitamente compreensível. Uma grande mulher!
_ Bem, saber onde o Carlos está não vai nos ajudar muito.
Se eles descobrem onde ele está escondido, com certeza vão tentar matá-lo –
disse o detetive Celso.
_ Sim, meu caro Celso, você tem toda razão – concordou
meu advogado.
_ Celso, como vão indo as investigações do seu amigo da
Polícia Federal? – perguntou João.
_ Estive com o Daniel há três dias. Ele não me adiantou
muita coisa. Disse apenas que conseguiu uma fita de vídeo onde aparecem o
bicheiro Sábado Maria, o juiz Nicolau dos Santos Gouveia e o promotor Frederico
Aires em uma festa. Os três pareciam muito íntimos.
_ Estou ansioso pra ver essa fita! – falou o jornalista.
_ E eu estou ansioso pra conhecer esse seu amigo da
Polícia Federal – completou meu advogado.
_ Então, o senhor não vai ter de esperar muito, doutor. O
Daniel também quer conhecê-los. Ele me disse que gostaria de participar da
nossa próxima reunião, caso todos concordem.
_ Mas é claro quem sim! – disse João.
_ De pleno acordo – Dr. Basílio confirmou sua intenção de
conhecer o brilhante policial.
Um
amigo
Há muito não tirava leite de vaca, tinha perdido
completamente o jeito. Mas em pouco tempo fui reaprendendo. Os músculos dos
braços ficam realmente fortalecidos, já que o esforço feito é digno de um
halterofilista.
Tia Rita possuía na época quatro vacas da raça Jersey,
com bezerro ao pé, e cada uma produzia em média 20 litros de leite por dia. No
começo eu ordenhava uma das vacas, e seu Tião aos outras três. Depois que
peguei a prática, os números se inverteram. Também passei a dar uma assistência
veterinária aos animais do sítio. E mesmo com todo esse trabalho, devo
confessar que não foi o suficiente para pagar o carinho e atenção da tia de
minha mulher.
* * * * *
Certo dia de janeiro, quando estava colhendo algumas
espigas de milho verde para que tia Rita preparasse pamonha, ouvi o som de um
carro se aproximando. Abaixei-me no milharal e tentei verificar quem era. Logo
pensei em polícia. Fui andando agachado entre os pés de milho e, de longe,
avistei um Escort XR3 conversível de cor amarela. Fiquei aliviado, pois aquele
era o carro do meu sócio Bernardo. Ele continuava com o mesmo automóvel desde
os tempos da Rural. Havia alguém com ele, mas não deu para ver quem era, pois
estava muito distante. Além do mais, a pessoa estava usando um chapéu de cowboy. Fiquei esperando para ver quem
era. O veículo parou em frente à porteira. Bernardo não gosta de abrir a porta
do carro, prefere saltar, no melhor estilo Batman
do seriado com Adam West. E foi o que fez. Tinho foi o primeiro a receber os
dois visitantes. O cachorro de tia Rita latia grosso e pausadamente. Não
demonstrava ferocidade, mas ninguém era suficientemente tolo de querer invadir
o território de um cão daquele porte. E antes mesmo que Bernardo fizesse
qualquer gesto para chamar a atenção de alguém, seu Tião apareceu para
recebê-los.
_ O que vocês querem?
_ Bom dia. O senhor deve ser o seu Tião. Meu nome é
Bernardo, sou amigo do Carlos.
_ Carlos? O senhor deve estar enganado, aqui não mora
nenhum Carlos.
_ Não??? Mas aqui não é o sítio da dona Rita, tia da
Elaine?
_ É sim, senhor.
_ E o Carlos não está aí?
_ Moço, já falei que aqui não mora esse tal de Carlos.
Fiquei observando de longe a discussão dos dois por uns
cinco minutos. Parecia conversa de grego. Achei graça, até que resolvi sair do
meu esconderijo, mesmo porque já havia reconhecido a pessoa de chapéu de cowboy: era seu Ronaldo, pai do meu
sócio. Bernardo logo me avistou.
_ Carlos, ainda bem que você apareceu!
Seu Tião logo percebeu que Bernardo era mesmo meu amigo.
Abriu a porteira para meu sócio e seu pai entrarem.
_ Você se lembra do meu pai?
_ Claro! Como vai o senhor?
_ Muito bem. E você, Carlos? Estou acompanhando o seu
caso. Você está em uma situação delicada.
_ É, sei disso.
_ Bom dia pra todos! – era tia Rita que veio se juntar a
nós. Já que ninguém me apresenta, meu nome é Rita, sou tia do Carlos.
_ Muito prazer, minha senhora. Encantado – disse seu
Ronaldo.
Depois das apresentações, tia Rita chamou todos para
degustarem seu famoso bolo de queijo.
_ Hum... Mas que delícia! A senhora tem de me dar a
receita.
_ É bem simples, seu Ronaldo.
Parecia estar surgindo um clima romântico entre o pai de
Bernardo, divorciado há pouco tempo, e tia Rita. O único que não pareceu gostar
da situação foi seu Tião. Alguns parentes de tia Rita desconfiavam de que havia
alguma coisa entre ela e o seu caseiro, mas isso nunca passou de suspeita. No
entanto, quem visse a cara de namorado traído de seu Tião, talvez, deixaria de
ter apenas suspeitas.
* * * * *
Enquanto tia Rita pegava um pedaço de papel e caneta para
escrever a receita do bolo de queijo, usei o pretexto de mostrar o sítio para
ficar a sós com Bernardo. Eu tinha de ter uma conversa particular com o meu
sócio.
_ Bernardo, você tem de conhecer o sítio da tia Rita. É
muito lindo!
Meu sócio entendeu o recado. Logo estávamos fora da casa.
_ Carlos, como vão as coisas?
_ Bem, virei um homem do campo. Acordo cedo, ordenho as
vacas, dou milho pras galinhas...
_ Falo sério! Quais são seus planos? Pretende continuar
aqui? Mais cedo ou mais tarde vão descobri-lo neste lugar.
_ Por que me descobririam?
_ Não sei! Esses caras da polícia, quando é do interesse
de alguém importante, descobrem rapidinho as coisas.
_ É... Talvez você tenha razão. Pensei em ir pro nordeste,
mas não decidi ainda. O que você faria se estivesse no meu lugar?
_ Não sei, meu amigo. Sinceramente, não sei, pois não
estou no seu lugar.
_ Precisamos conversar sobre a clínica. Você estaria
disposto a comprar a minha parte?
_ E pra quê? Do que você iria viver? Não acho justo você
deixar de desfrutar dos lucros que estamos tendo depois de todo o trabalho que
tivemos. Não, não vou comprar a sua parte. Vou continuar depositando a sua
parte dos lucros mensalmente na conta da Elaine. Tenho certeza de que você
faria o mesmo por mim.
_ Fiquei surpreso e emocionado com as palavras de
Bernardo. Abracei meu amigo.
_ E Elaine, minhas filhas, minha mãe?
_ Estão todas bem. Elaine está com saudade, pediu pra lhe
dizer que não se preocupe com ela nem com as meninas. Todas estão bem.
_ E minha mãe?
_ Falei com ela no dia primeiro, assim que soubemos da
sua fuga. Posso até estar enganado, mas sua mãe não me parecia muito bem um
pouco antes da sua fuga.
_ É...
_ Pois é, Carlos, quando eu falei com ela pela última
vez, parecia que sua mãe voltara a ser aquela mulher de antigamente. O brilho
de sua voz parece que voltou.
_ Jura?
_ É verdade! Fiquei surpreso, pois pensei que ela ficaria
muito mais abatida depois da sua fuga. Pelo contrário, ela disse que você era
como um passarinho, tinha de viver livre pra ser feliz.
_ É... Ela me disse isso quando fui estudar na Rural.
* * * * *
Bernardo e seu pai ficaram até o anoitecer com a gente.
Contei-lhe toda a história da minha fuga. Seu Ronaldo achou muita graça quando
falei que a sentinela do portão principal desabou depois de beber o café com
sonífero.
_ Puxa, esse café era tiro e queda mesmo! – disse o pai
de Bernardo. E todos riram do trocadilho.
Quando chegou a hora de meu amigo e seu pai partirem,
entreguei a Bernardo uma carta para Elaine e outra para minha mãe. E antes de
se despedir, Bernardo me levou até o seu automóvel, de onde retirou minha
maleta de médico veterinário. Ela estava cheia de remédios e material
hospitalar.
_ Meu amigo, a gente nunca sabe quando vai precisar.
_ Obrigado, Bernardo! Muitíssimo obrigado mesmo!
_ Força! Tudo vai ser resolvido.
Bernardo entrou no Gol prata de minha mulher, seu Ronaldo
pegou o Escort conversível. Os dois carros partiram deixando um rastro de
poeira e saudade.
Natação
à meia-noite
Os carros da imprensa iam se juntando às viaturas
policiais em frente à mansão na rua Margarida Valadão, na Barra da Tijuca. Uma
senhora de feições europeias, robusta, chorava intensamente a morte do marido.
_ Ele era tão bom comigo e com as crianças. Nunca deixou
faltar o que fosse pra gente...
_ Meu pai era um grande homem, todos vão sentir falta
dele – exagerava o filho mais velho.
Consolando a família do defunto, estava o senador Camilo
Pessoa de Alcântara. Chegando às raias do devaneio, ele dizia que o país
acabara de perder o seu maior expoente, o seu maior paladino da justiça, e,
ele, perdera um grande irmão. Os puxa-sacos de plantão aplaudiram cada frase da
velha raposa da política.
O corpo do morto parecia ainda mais gordo do que quando
seu coração ainda batia. Fora encontrado na piscina de sua casa na manhã do dia
2 de fevereiro de 2001 por um dos empregados. O promotor público Frederico
Aires costumava nadar todos os dias na piscina de 20 por 10 metros de azulejos
azuis. Preferia os horários mais adiantados da noite. “Nadar à meia-noite em
período de lua cheia é mais excitante do que o maior dos orgasmos”, costumava
dizer, segundo os amigos mais íntimos. A causa
mortis ainda não havia sido informada, mas, de acordo o médico legista Ivan
Valadares, havia fortes suspeitas de que Frederico Aires sofrera um enfarte
enquanto nadava. O corpo havia sido encaminhado ao IML para a necropsia e o
laudo definitivo sairia em um ou dois dias, ainda segundo o perito.
As
peripécias de um médico legista
Ivan Valadares não era um desconhecido meu. Fora ele que havia
assinado o laudo do corpo de delito de Elaine, onde afirmava que minha mulher
não sofrera estupro, o que ia contra o primeiro laudo médico, que sumira por
encanto. Esse mesmo médico legista também assinou o laudo médico do corpo de
seu José, o porteiro do meu edifício, dando como causa mortis o esmagamento torácico em virtude de atropelamento,
quando havia duas perfurações causadas por projéteis de arma de fogo no crânio
da vítima.
O médico legista Ivan Valadares não era digno de
confiança, isso era certo. Um outro ponto era a morte do promotor público
Frederico Aires, o mesmo que havia trabalhado contra mim no primeiro
julgamento. Teria esse promotor sofrido um enfarte durante a sua atividade
aquática? Pelo menos era isso que, dois dias depois da sua morte, o médico
legista Ivan Valadares confirmaria. Frederico Aires teria sido assassinado? Mas
por quê? O senador Camilo Pessoa de Alcântara estaria envolvido nesse crime?
Todas essas perguntas eu me fazia enquanto continuava em férias forçadas no
sítio de tia Rita.
Dartangnan
e os três mosqueteiros
Daniel Marchi contatou o detetive Celso. Ele havia
descoberto coisas importantes e, por isso mesmo, gostaria de repassá-las.
Tudo bem, Daniel, então fica assim, a gente se encontra
na quarta-feira às 19h no Amarelinho da Cinelândia.
_ Celso, não se esqueça de avisar os seus amigos.
_ Pode deixar, eles estarão lá. Estão loucos pra te
conhecer também.
No dia e hora marcados lá estavam os três mosqueteiros à
espera do policial Daniel Marchi. Este não demorou, chegando uns 15 minutos
mais tarde. O detetive Celso se encarregou das apresentações, alguém pediu um
chope para o novo mosqueteiro.
_ Senhores, tenho revelações bombásticas a fazer.
_ Então, diga logo, homem. Estamos todos ansiosos pra
saber – disse o jornalista João.
_ Bem... Nem sei por onde começar...
_ Comece do início, meu jovem – sugeriu o Dr. Basílio.
_ Bem, como o Celso já deve ter-lhes adiantado, estive
investigando o envolvimento do notório chefe do jogo do bicho Sábato Maria.
_ Sim – confirmou o jornalista.
_ Pois bem, através das minhas investigações, descobri
que o senhor Sábato Maria não tem como atividade única o jogo do bicho. Há pelo
menos cinco anos está envolvido com algo muito mais rentável: o tráfico de
entorpecentes, mais precisamente de cocaína.
_ Mas o que isso tem a ver com o caso do Carlos Cesario?
– quis saber João.
_ Calma, vou chegar lá. Como estava dizendo, o senhor
Sábato Maria está envolvido até a alma com o tráfico de entorpecentes.
Inclusive, está ligado ao Cartel de Medelín, na Colômbia. No ano passado estive
nos Estados Unidos, para onde o senhor Sábato Maria havia ido. Lá ocorrem
esporadicamente encontros dos grandes chefões do tráfico. Entre eles estava o
senhor Sábato Maria. Mas ele não estava só nessa reunião.
_ O senador Camilo Pessoa de Alcântara também? – arriscou
o meu advogado.
_ O senhor seria um ótimo detetive, doutor – disse
Daniel.
_ Obrigado pelo elogio, meu jovem. Mas não tenho a
coragem necessária para tal ofício.
_ Prossiga, Daniel – pediu o jornalista João.
_ Como bem colocou o Dr. Basílio, o senhor Camilo Pessoa
de Alcântara também fazia parte da reunião da Máfia novaiorquina, que controla
mais de 60% do tráfico de cocaína do mundo. Além dele, também estava presente o
juiz Nicolau Santos Gouveia, o mesmo do primeiro julgamento do Carlos Cesario.
Todos envolvidos com a Máfia.
_ Incrível! Simplesmente inacreditável! – exclamava um
embasbacado João.
_ Mas não terminei ainda, meus amigos.
_ Ainda tem mais? – indagou o jornalista.
_ Muito mais, muito mais...
Antes de prosseguir sua história, alegando falta de
saliva, o policial Daniel pediu mais uma rodada de chope.
_ Onde eu estava mesmo?
_ Você ia dizendo que tinha muito mais coisas pra contar,
além do envolvimento do juiz Nicolau e do senador com a Máfia – lembrou o
jornalista João.
_ Ah, sim, sim... Outro membro desse encontro de mafiosos
foi um importante político americano, o senhor...
_ Harvey Grooters – antecipou-se Dr. Basílio.
_ Isso mesmo, doutor! O senhor é realmente um homem
dotado para o trabalho de investigação.
_ Eu apenas acompanho os fatos, meu jovem.
_ Prossiga, Daniel, prossiga – intimava João, deixando
aflorar toda a sua curiosidade jornalística.
_ Bem, o senador Harvey Grooters é um dos chefões da
Máfia novaiorquina. Ele é o responsável direto pela distribuição da cocaína em
toda a Europa. O mercado europeu é um dos maiores do mundo. Grande parte da
cocaína produzida na Colômbia passa pelo Brasil. O senador Camilo é o
responsável pela receptação da droga no país. Daqui, ela é transportada por
navios para a Europa.
_ Navios? A droga é transportada por navios? – estranhou
Dr. Basílio.
_ Sim, doutor. A quantidade de droga que cabe num convés
de navio é muito maior do que a que cabe num avião, mesmo nos boings. Além, é claro, da menor
vigilância nos portos. Nos aeroportos há muito mais rigor por parte do pessoal
da alfândega – explicou o detetive Celso.
_ Exato! Por isso os grandes traficantes preferem o
transporte marítimo ao aéreo – completou Daniel.
_ Interessante – disse o Dr. Basílio.
_ Continuando, antes que o nosso amigo jornalista tenha
um colapso nervoso (todos riram, inclusive o próprio João, da piada)... O
senador Camilo é o receptador da droga vinda da Colômbia. Depois ele trata de
despachar o carregamento para o mercado consumidor europeu. E isso torna o
senador Camilo Pessoa um homem muito poderoso, que movimenta uma quantidade
inacreditável de dólares, dignas de um marajá. Esse homem tem o poder de
comprar até o próprio Diabo com esse dinheiro. Em outras palavras, estamos
mexendo em um vespeiro maior que o monte Everest.
_ Daniel, caso não esteja enganado, esse senador
americano, Grooters, esteve aqui no Rio no ano passado a convite do senador
Camilo.
_ Exatamente, João! Foi uma palestra de Direitos Humanos
no hotel Copacabana Palace. Na verdade, a palestra foi apenas um pretexto. O
que ele veio fazer no Brasil foi resolver um problema que estava surgindo com a
então possível abertura do processo do nosso amigo Carlos Cesario. Grooters é
um político muito importante em seu país. A visita de um senador americano,
ainda mais convidado pelo senador Camilo, jogaria ainda mais a opinião pública
contra o Carlos. Grooters também aproveitou a visita pra checar as remessas de
drogas pra Europa.
_ E você tem como provar isso tudo?
_ João, as coisas não são tão simples assim. Tenho fotos,
filmes, gravações, documentos, tudo o que você possa imaginar que comprometa
esses homens. Mas a questão não é essa. Não estamos entrando numa guerra
ideológica, nem acredito nesse tipo de guerra. Todas as guerras, em minha
opinião, são econômicas. E o nosso inimigo não é o seu Joaquim do boteco da
esquina, mas a maior organização criminosa do planeta. E o nosso amigo Carlos
teve o azar de matar o filho de um importante membro dessa organização, que
possui juízes, promotores, políticos, policiais e toda a sorte de gente em sua
folha de pagamento.
_ E médicos legistas – completou Dr. Basílio.
_ Mais uma vez o senhor provou que está antenado com os
fatos. Isso mesmo! O médico legista Ivan Valadares é um dos mais assíduos
membros da folha de pagamento dessa organização criminosa.
_ O promotor público Frederico Aires foi assassinado? –
perguntou João.
_ Exato! Simplesmente por tentar pular fora do barco. Ele
queria sair da organização. O próprio Camilo Pessoa foi o mandante do crime. A
esposa e os filhos do promotor sabem do assassinato, mas preferiram se calar a
colocar a vida em risco. Aliás, a boa vida em risco.
_ Meu cliente, então, pelo que você está dizendo, vai ter
de passar o resto da vida fugindo?!
_ Não tenho o poder de vislumbrar o futuro, Dr. Basílio.
Mas não apostaria muitas fichas numa possível absolvição do Carlos.
Uma
nova visita
Já corria o mês de abril de 2001, e eu ainda não havia
recebido a visita de alguém que ansiava ver. Queria saber como andavam as
investigações dos três mosqueteiros. Tia Rita, que não é boba, percebeu minha
impaciência.
_ O que houve, Carlos?
_ Nada, tia Rita, nada.
_ Eu te conheço, meu filho. Sei que houve alguma coisa.
Saudade da Elaine, das meninas, não é?
_ Muita!
_ Tem mais alguma coisa?
_ Não...
_ Bem, se você não quer se abrir comigo...
Eu não podia guardar segredo daquela senhora que tão bem
estava me acolhendo.
_ Tia Rita, é que algumas pessoas estão tentando me
ajudar. A senhora se lembra da carta que pedi pro Bernardo entregar à Elaine?
_ Claro. O que tem ela?
_ Eu pedi na carta pra Elaine falar pro meu advogado, que
é uma dessas pessoas que estão me ajudando, vir aqui.
_ Você está pensando que foi abandonado por essas
pessoas?
_ Não! Eles não me abandonariam, não é do feitio deles.
Só estou querendo ficar a par da situação – menti, pois na verdade estava quase
convicto de que todos haviam se esquecido de mim.
* * * * *
Alguns dias após essa conversa com tia Rita, um táxi
estacionou em frente à porteira do sítio. Dele desceu um senhor alto, vestido
sobriamente, maleta tipo 007 em uma das mãos. Tinho foi logo dando o ar de sua
graça, latindo como de costume, pausadamente, sem mostrar agressividade, apenas
como um alerta para que tia Rita percebesse que alguém havia chegado. Esperei o
táxi ir embora para, só então, ir receber o Dr. Basílio.
_ Carlos, meu filho, como você está?
_ Estou vivo, doutor! E o senhor?
_ Bem, meu filho, bem...
Apresentei o meu advogado à tia Rita e ao seu Tião. Dr.
Basílio, depois de provar o delicioso café de tia Rita, além de uns
biscoitinhos de polvilho feitos por ela, pediu para falar em particular comigo.
_ Doutor, tudo que o senhor tiver a me dizer pode falar
na presença de tia Rita e seu Tião. Não tenho coisa alguma a esconder deles.
Dr. Basílio, então, contou os fatos da última reunião dos
três mosqueteiros com o policial Daniel Marchi. Todos ficaram espantados com a
quantidade de sujeira que existia por debaixo do tapete da política.
_ Dr. Basílio, eu já sou uma mulher de 57 anos, já vivi
muito, já vi coisas que até Deus duvida... Sei que esse meio da política está
assim de gente que não presta, mas nunca pensei que a situação pudesse chegar a
esse ponto. Um senador? Aliás, dois senadores, já que também tem esse
americano. Aonde chegamos? Aonde chegamos?
_ Pois é, minha senhora. E o Carlos está no meio desse
fogo cruzado. O próprio Daniel, que é da Polícia Federal, não vê muitas chances
de absolvição do Carlos. Pra senhora ver, até um policial federal, que tem
provas irrefutáveis contra esses criminosos, não vê muitas chances de toda essa
perseguição contra o Carlos acabar.
Fiquei em estado de choque. Não sabia o que dizer, no que
pensar. Não tinha ideia, até então, que o senador Camilo Pessoa de Alcântara
fosse um homem tão poderoso, pelo menos não a tal ponto. O que fazer? Ficar no
sítio de tia Rita até que eu fosse descoberto? Não, eu não poderia colocar em
risco as vidas de tia Rita e seu Tião. Precisava me esconder em outro lugar.
Mas onde?
Antes do meu advogado partir, escrevi duas cartas.
_ Doutor, gostaria de lhe pedir que entregue estas
cartas. Uma é pra Elaine... e a outra pra minha mãe.
_ Claro, meu filho, eu entrego sim.
Nas cartas contei toda a situação. Pretendia sair do
sítio de tia Rita e, assim que chegasse a um local seguro, daria um jeito de me
comunicar. Pedi para não se preocuparem, pois estaria bem. Lembro-me que
escrevi as duas cartas olhando a foto na parte de dentro da tampa do relógio de
bolso que Elaine havia me dado no Natal de 1998.
Aquela foi a última vez que vi meu advogado, um homem
sempre correto. Ainda espero um dia encontrá-lo, mesmo que seja apenas para
jogar conversa fora.
Em
busca de um caminho
Estava decidido a seguir meu caminho, não queria mais
sobrecarregar tia Rita, minha mulher, minha mãe... Precisava tomar as rédeas da
minha vida, não podia mais esperar que as coisas caíssem do céu. Analisei os
fatos friamente: eu era um condenado e foragido. Precisava me esconder, não
dava para andar tranquilamente pelas ruas, pois meu rosto estava em todos os
jornais. Para onde ir?
Por uma obra do acaso (ou destino?), acabei descobrindo um
lugar onde poderia me esconder. Estava ajudando seu Tião a limpar o depósito de
materiais. O local estava tão imundo, que até achamos um ninho de ratos.
_ Puxa, tia Rita guarda um monte de cacareco!
_ Na verdade nem é culpa dela. Isso tudo era do seu Ari,
irmão dela. Ela havia pedido pra guardar essas coisas aqui. Mas como ele morreu
há uns cinco anos, e ninguém quis ficar com isso, essas coisas foram ficando
por aqui.
_ Sei...
Caixas e mais caixas de livros, discos, alguns móveis,
talheres, roupas. Levamos quase uma semana para arrumar o depósito, ver o que
interessava à tia Rita, o que iria para doação e as coisas que não prestavam.
Foi nessa bagunça toda que encontrei o mapa do Brasil, com as rodovias, desses
que os estradeiros costumam usar.
_ Será que tia Rita vai querer esse mapa, seu Tião?
_ Não sei. É melhor perguntar pra ela.
Peguei o mapa e fui correndo falar com tia Rita, que já
estava a caminho do depósito segurando uma bandeja.
_ Vim trazer um suco de acerola pra vocês, meu filho.
_ Obrigado, tia Rita.
_ Você quer falar comigo?
_ Sim. A senhora vai querer ficar com este mapa?
_ Não, Carlos, não me interessa. Quer ele pra você?
_ Sim, gostaria de ficar com ele.
_ Nenhum problema, ele é seu.
_ Obrigado, tia Rita. A senhora é um amor! – dei um beijo
na face rosada daquela senhora que tão bem me acolheu em sua casa.
_ Como vai aquela bagunça?
_ Ah, estamos arrumando. Ainda tem muita coisa pra ver se
presta ou não. Talvez no domingo a gente acabe de arrumar.
* * * * *
À noite no meu quarto, pouco antes de dormir, dei uma
olhada no mapa. Para onde ir? Sul ou norte? Estudei várias possibilidades, até
que decidi rumar para a região amazônica.
No dia seguinte comuniquei minha decisão à tia Rita. Ela
foi totalmente contra a princípio, mas acabou entendendo que eu precisava
seguir meu rumo.
Tia Rita me deu uma mochila velha para eu colocar algumas
roupas (duas camisas, um casado, uma calça, dois pares de meias), escova e
pasta de dente, um pequeno espelho, alguns potes de doces, biscoito, cantil de
água, garfo, faca e colher, uma panela pequena, pó de café, açúcar, um bom
pedaço de charque, um cobertor. Apenas coisas extremamente necessárias. O peso
disso tudo não chegou a 15 quilos.
Marquei minha partida para o dia 4 de junho de 2001, uma
segunda-feira. As estradas estariam menos cheias, pensei. Eu tinha R$ 878,00
que sobrara do dinheiro que Elaine havia me dado para a minha fuga. Decidi
economizar o máximo possível, nem que eu tivesse de ir caminhando até a
Amazônia.
Nova
lua de mel
Dentro de três dias eu iria partir, seguir meu rumo ou,
como alguns preferem, meu destino. Seu Tião iria me levar de carro até a divisa
do estado do Rio com Minas Gerais, próximo a Santana do Deserto. Dali
continuaria meu caminho sozinho.
Estava na sala com tia Rita vendo o Jornal Nacional, DA TV Globo, quando ouvimos o barulho de um
automóvel se aproximando. Fui até a janela para ver quem era. Logo reconheci o
Gol prata de minha mulher. Mesmo assim esperei que ela estacionasse em frente à
porteira. Tinho começou a dar sinal. Elaine desceu do carro e chamou por tia
Rita. Peguei a chave do cadeado da porteira e fui receber minha mulher.
_ Elaine, o que você veio fazer aqui?
_ Carlos, não podia deixar de vê-lo antes de você partir.
_ Você é louca, meu amor!
_ Louca por você!
Sei que Elaine havia arriscado minha liberdade indo me
visitar. Alguém poderia tê-la seguido. Mas na verdade adorei vê-la novamente
depois de quase seis meses. Nos abraçamos, nos beijamos, nos amamos... Ela
chegou sexta-feira, iria ficar até a manhã de segunda. Finalmente teríamos
algum tempo só nosso.
_ Amor, como estão as nossas princesinhas?
_ Ah, você precisa vê-las. Patrícia está uma mocinha,
Carlinha já está falando mamãe e papai.
_ Papai?
_ É, eu a ensinei. Mostro suas fotos pra ela e digo que é
o papai. Ela é muito inteligente, Carlos.
_ E minha mãe? Como vai indo minha mãe?
_ Ela está bem melhor agora. Na época que você estava
preso ela estava péssima, mas agora está bem melhor. Sempre vem visitar as
crianças, sai com elas. Claro, sente muita falta de você, mas está bem mais
conformada.
_ E seus pai, o que falam disso tudo?
_ Carlos, todos estão do seu lado. Eles entendem que você
não pode voltar, ninguém o culpa por coisa alguma. Você fez o que deveria ser
feito. Todos concordam com sua decisão.
_ E as meninas?
_ Bem, a Patrícia sente falta de você, às vezes chora,
mas a sua mãe tem conversado bastante com ela. E a Carlinha ainda é bebê, não
entende a situação.
_ E você?
_ Meu amor, eu te amo! Põe isso na sua cabeça! Eu sou
louca por você! Você é o homem da minha vida. Sei que estamos passando por um
momento difícil, mas tudo vai acabar bem. Tenho certeza de que um dia tudo isso
vai acabar, e que nós voltaremos a viver toda a felicidade que merecemos.
Elaine havia trazido fotos de todos, principalmente de
nossas filhas. Tenho filhas lindas, e não é corujice! Foram dias maravilhosos,
uma segunda lua de mel que há muito estávamos merecendo. Até tia Rita percebeu
o nosso momento especial e quase que nos deixou a sós durante esses dias. Na
manhã do dia 4 de junho de 2001, segunda-feira, dia da minha partida, Elaine
voltou para o Rio. Foi a última vez que vi minha amada, a última vez que senti
o cheiro perfumado daquela que é a dona do meu coração.
A
partida
Logo após o Jornal
Nacional do dia 4 de junho de 2001 me despedi de tia Rita, que ficou muito
emocionada. Seu Tião já estava me esperando com o motor do Corcel ligado.
Entrei no carro e dei adeus àquela senhora que muito havia feito por mim. Tinho
parecia perceber que nunca mais me veria, pois nem quis se despedir, preferindo
ficar no seu cantinho na varanda da casa.
Não demorou muito e nós já estávamos na rodovia, rumo às
Minas Gerais. Noite muito escura, iluminada apenas pelos faróis do velho Corcel
e dos carros que nos faziam companhia na BR 040. Seu Tião, que normalmente não
falava muito, estava quase mudo. Acendeu um cigarro, me ofereceu outro. Eu, que
não fumava, aceitei para lhe fazer companhia. Engasguei um pouco, depois fui
pegando o jeito. Não havia estrela para ver, não havia lua no céu. Havia o
rádio, mas preferimos ficar apenas com o som do motor.
Chegamos à divisa dos estados do Rio e de Minas antes da
meia-noite. Saltei do automóvel, apertei a mão de seu Tião através da janela,
ele seguiu seu caminho de volta para os braços de tia Rita, que o aguardava.
Caminhei por algumas horas, até o amanhecer. Havia
decidido caminhar à noite e me esconder durante o dia. Dessa forma as chances
de alcançar meu objetivo seriam maiores. Quando chegaram os primeiros raios de
sol anunciando a chegada da manhã, arrumei um local debaixo de uma frondosa
árvore, onde preparei minha cama usando o cobertor como colchão e a mochila
como travesseiro. Adormeci.
* * * * *
Acordei depois de um bom tempo, pois o sol já estava bem
alto. Meu estômago começou a reclamar. Peguei meu canivete suíço e cortei um
pedaço de charque. Abri um pacote de biscoito e comi alguns. Depois bebi um
pouco d’água. Essa foi a minha primeira refeição na estrada.
Tinha de esperar o dia passar para voltar para rodovia.
Explorei a região em volta do meu esconderijo, encontrei algumas bananeiras,
peguei umas frutas. Depois avistei alguns coqueiros. Peguei quatro cocos. Bebi
a água de um coco, raspei a fina camada branca que derreteu em minha boca.
Guardei os outros três para outra hora.
Ao anoitecer voltei para a rodovia e recomecei minha
caminhada. Andava durante toda a noite, procurava um local para dormir assim
que o dia começava a clarear, tentava arrumar algum alimento depois de acordar
e, quando voltava a escurecer, retornava para a rodovia e seguia meu caminho.
Somente uma vez entrei em uma lanchonete num posto de gasolina para comprar
alguns sacos de biscoito, um bolo de fubá e cigarro. Sim, comecei a fumar. Era
como uma forma de passar o tempo. O cigarro, que é tão combatido em campanhas
do Ministério da Saúde, passou a ser meu único amigo naquele tempo.
Um
cadáver no caminho
O sol estava tão forte que formava uma imagem distorcida
do asfalto. Meus miolos estavam sendo castigados, apesar do boné que protegia minha
cabeça. Os olhos ardiam por causa do suor que escorria da minha testa. Os
carros passavam e agitavam o ar, refrescando um pouco o ambiente. Era a
primeira vez que caminhava durante o dia.
Saí da rodovia em direção a um pequeno riacho que corria
sob uma ponte. Tirei o boné e molhei a cabeça com a água cristalina. Arranquei
as botinas e as meias, coloquei os pés no riacho. Como é bom se refrescar na
água fria de um riacho na beira da estrada! Fiquei observando alguns peixes
pequeninos que lutavam contra a correnteza. Peguei um biscoito e fui jogando-o
em pequenos pedaços na água. Os peixinhos, assim que notaram a presença de
comida, foram saborear a refeição que lhes ofereci. Fiquei pensando se alguma
vez na vida eles haviam comido biscoito. Quase certo que não.
Depois de comer alguns biscoitos e descansar por uma hora
ou mais, resolvi continuar minha viagem. Antes mesmo de me levantar notei que
um carro parou sobre a ponte. Vozes, no mínimo de três homens. Fiquei estático!
_ Eu te disse pra não se envolver com minha irmã, seu
safado! – primeira voz.
_ O que você tá pensando em fazer, homem? – segunda voz.
_ Vou te dar o que você merece! Desce! – primeira voz.
_ Não, não vou descer! – segunda voz.
_ Desce logo, porra! – primeira voz.
_ Pra quê? O que você vai fazer, Cristiano? – segunda
voz.
_ Já falei, porra, desce logo! – primeira voz.
_ O que você tá fazendo, cara? Solta essa arma! –
terceira voz.
_ Não se mete, meu irmão! Isso é entre mim e esse filho
da puta! – primeira voz.
_ Por favor, não me mate! – o homem da segunda voz
chorava implorando pela própria vida.
Logo em seguida ouvi alguns tiros e um grito agonizante.
_ Você fiou louco, cara? – terceira voz.
_ O safado mereceu, mexeu com minha irmã. Me dê uma mão
aqui com esse filho de uma rapariga – primeira voz.
O corpo sem vida do infeliz foi jogado da ponte, caindo
tão próximo que respingou um pouco d’água do riacho em meu rosto. Fiquei em
estado de choque. O que fazer? Ir à polícia contar tudo? Não, eu era um
foragido, já tinha muitos problemas com a justiça. Melhor sair dali o mais
rápido possível. Voltei para a rodovia e retomei minha longa caminhada.
Um
passarinho na estrada
Entrei no município de Conselheiro Lafaiete – MG sob um
forte temporal. Tentei me proteger debaixo de uma árvore, mas o vento jogava a
água da chuva em mim. O frio era tanto que até meus ossos doíam, meu queixo
tremia, mal sentia meus dedos.
Os carros iam passando e espalhando água por todos os
lados. Caminhões, ônibus, automóveis... e uma motocicleta. Sim, uma motocicleta
que teimava em seguir viagem apesar do castigo de São Pedro.
Acendi um cigarro para tentar esquentar um pouco meus
pulmões. Depois acendi outro e mais outros. Quando a chuva passou havia várias
guimbas espalhadas sob a árvore. Coloquei uma camisa seca e recomecei minha
caminhada.
Devo ter andado uns dois quilômetros, quando avistei a
mesma motocicleta que havia passado por mim durante o temporal. Sabia que era a
mesma porque não era uma moto comum, mas uma dessas incrementadas, tipo das
usadas pelos Hell’s Angels. Ela
estava caída no matagal ao lado da rodovia. Nenhum sinal do motoqueiro. O que
teria acontecido? Com certeza ele havia perdido o controle e caído. Estaria
vivo? Corri até o local e logo encontrei o pobre homem, que estava deitado de
costas, imóvel. Verifiquei seu pulso, estava vivo, mas fraco, muito fraco. Não
queria movê-lo, pois poderia ter quebrado algum osso, alguma vértebra. Retirei
sei capacete com cuidado. Ele gemeu e logo depois esbravejou:
_ Onde está o animal asqueroso que me fechou?
_ Não sei, amigo, estou chegando agora. Você está bem?
Consegue se levantar?
_ Acho que sim. Me ajude aqui.
Ajudei o sujeito a se levantar. Aparentemente ele estava
bem. Levei-o para debaixo de uma árvore, ajudei-o a se sentar com as costas
apoiadas no caule.
_ Minha moto, onde está a minha moto?
_ Está ali, vou pegá-la pra você.
Trouxe a motocicleta para perto. Era uma Yamaha Virago
535. Havia uma placa com a seguinte frase: “Jesus te ama, EU NÃO!”
_ Seu braço está com uma ferida feia.
_ É, mas já estive em situação pior.
_ Me deixa cuidar disso.
Retirei a minha maleta de medicamentos de dentro da
mochila. Limpei a ferida e fiz um curativo. O sujeito soltou alguns gemidos,
mas nada fora do comum. Depois me mostrou a sua coleção de cicatrizes, uma mais
feia que a outra.
_ Obrigado. Você é médico?
_ Médico veterinário.
Ele soltou uma gargalhada gutural.
_ Deixa só a galera saber que fui tratado por um
veterinário. Todos vão morrer de rir. E onde está o seu carro?
_ Não estou de carro, estou a pé.
_ A pé? Você mora aqui perto?
_ Não.
_ E mora onde?
_ Prefiro não falar sobre isso.
_ Entendo...
_ Você está com fome? Tenho biscoito – ofereci ao homem
da motocicleta.
_ Obrigado. Qual é o seu nome?
_ ...
_ Tudo bem, tudo bem. Se você não quer dizer, eu entendo.
_ Desculpe, meu amigo, meu nome é Roberto – menti.
_ Então, muito prazer, Dr. Roberto. Meu nome é Braga, mas
também pode me chamar de Piu-Piu.
_ Piu-Piu?
_ É como sou conhecido pelos motociclistas de todo o
Brasil. Sou um dos motociclistas mais conhecidos do país.
_ Legal... Você vai pra algum encontro de motoqueiros?
_ Motociclistas! Motociclistas!
_ Sim, motociclistas, desculpe. Você está indo a algum
encontro?
_ Não, estou apenas viajando pelo prazer de viajar.
Sempre estou na estrada.
_ E você vive de quê?
_ Sou bancário, trabalho no Banco do Brasil. Tirei alguns
dias pra cair na estrada.
Depois de comermos dois pacotes de biscoitos, meu amigo
se levantou e foi verificar se sua motocicleta estava avariada. O tanque estava
um pouco amassado, o banco rasgara na lateral, alguns arranhões aqui e ali, mas
nada que pudesse interferir em seus planos de chegar ao seu destino. Ligou a
Virago, acelerou forte, pude ver a potência do motor.
_ Está indo pra onde, Roberto?
_ Pra onde você vai?
_ Pra Três Marias. Tem umas vagabundas lá me esperando.
_ Deve ser um bom lugar.
_ Você está com sorte, maluco, pois quase nunca viajo com
um capacete extra. Vamos?
O motociclista jogou o capacete para mim, subi na garupa
da motocicleta do meu novo amigo e partimos.
Braga (ou Piu-Piu) é um sujeito de no máximo 1,70m, uns
100 quilos, branco, cabelos lisos e bem aparados, mineiro de Belo Horizonte,
mas mora no Rio há bastante tempo. Ele tem um colete no qual está bordado o seu
apelido – Piu-Piu – e, embaixo, a frase “A gente se vê na estrada!”
* * * * *
Em menos de duas horas entramos na cidade natal do Braga,
onde paramos em um posto de gasolina para abastecer e esticar um pouco as
pernas. Aproveitei a parada para ligar para Elaine. Comprei um cartão
telefônico, me dirigi a um orelhão e disquei o número do celular de minha
mulher. Era a primeira vez que entrava em contato com minha amada desde que nos
despedimos no sítio de tia Rita.
_ Alô?
_ Elaine, sou eu.
_ Carlos, é você? Onde você está, meu amor? Você está
bem? Estava tão preocupada, meu amor!
_ Estou bem. Liguei pra ouvir a sua voz. Estou com tanta
saudade!
_ Eu também, Carlos! Onde você está?
_ Estou em Minas, estou bem.
_ Em Minas? Mas em que lugar de Minas?
_ Não estou em um lugar fixo, estou mudando sempre de
lugar. Amorzinho, tenho de desligar agora.
_ Carlos, eu te amo!
_ Eu também te amo, meu amor. Mande um beijão pra todos,
pra minha mãe, pras nossas princesinhas.
_ Pode deixar, vou falar com todos.
_ Tchau, meu amor. Eu te amo.
_ Eu também te amo, Carlos.
* * * * *
Braga estava saindo do restaurante do posto de gasolina
com duas latas de Coca-Cola e um saco de biscoito de polvilho. Bebemos o
refrigerante, mas só ele comeu o biscoito, pois eu não estava com fome. Meu
amigo é desses sujeitos que parecem ter o estômago furado, pois come mais do
que a própria boca.
_ Conhecia BH?
_ Só de passagem.
_ Aqui tem muita vagabunda, Beto.
Meu amigo sempre se referia às mulheres como vagabundas.
A princípio pensei que fosse um tipo específico de mulher, mas depois comecei a
perceber que era uma forma debochada de se referir ao sexo feminino. Debochada,
mas nem por isso deixa de ser grosseira. Mas esse é o Braga, não sou eu que
irei mudá-lo.
_ Vamos nessa? – meu amigo disse.
Voltamos para estrada e logo estávamos saindo da capital
mineira. Passamos por diversas cidades até chegarmos a Três Marias – MG, a 260
quilômetros de Belo Horizonte. Fomos direto para um casarão antigo, onde
moravam as tais “vagabundas” do meu amigo: Fabíola e Viviane.
* * * * *
Havia uma terceira moça no casarão, seu nome era Olívia,
morava em Brasília e estava passando uns dias com as amigas. Cabelos aloirados
e encaracolados, olhos esverdeados, algumas sardas no bonito rosto, corpo
atraente, sorriso de menina levada. Olívia é a pura tentação em forma de
mulher... E que mulher!
Meu amigo motociclista (e não motoqueiro, como ele mesmo
gostava de frisar) me apresentou às suas amigas, que me receberam muito bem.
Olívia nos foi apresentada, Braga também não conhecia a garota brasiliense.
_ Braga, hoje vai ter uma festinha lá na casa da Bete –
disse Fabíola.
_ A Bete? E como vai aquela vagabunda?
_ Ah, ela tá bem. Vou te levar lá hoje.
_ É festa de quê?
_ Festa de festa, uai – respondeu Fabíola deixando
escapar um pouco de sua mineirice.
_ E aí, Beto, vamos lá?
_ Você quem manda, Braga.
* * * * *
Lá pelas 22h chegamos à casa da Bete, uma mulher
grandona, cabelos compridos, lisos, rosto redondo, faces rosadas, branca que
nem cera, uns 35 anos ou mais.
_ E aí, Piu-Piu, o que você veio fazer em Três Marias? –
perguntou Bete.
_ Vim comer as Três Marias e você – brincou Braga.
A festa não tinha muita gente, mas estava bastante
animada, principalmente por causa da Fabíola e da Viviane, sempre alegres, dançando,
contando histórias do Braga. Eu assistia a tudo aquilo passivamente. Bebi um
pouco de cerveja, depois um pouco de vinho, mais adiante provei uma batida de
maracujá com cachaça. Quando acendia mais um dos inúmeros cigarros que fumei
naquela festa, Olívia veio para perto de mim.
_ Me dá um trago?
_ Claro! Você fuma?
_ Às vezes.
A festa rolou madrugada adentro. Voltamos para casa das
amigas do Braga quando o sol estava nascendo. Meu amigo foi dormir com Viviane
– depois fiquei sabendo que os dois tinham um caso há algum tempo. Fui direto
para o quarto que as meninas prepararam para mim. Estava exausto, fechei os
olhos, mas não conseguia dormir. Nem sei quanto tempo se passou até surgir a
garota de Brasília, vestida apenas com uma camisa de malha e uma calcinha
branca minúscula. Ela se aproximou de mim e, sem dizer uma palavra sequer,
encostou seus lábios nos meus, depois desceu seu rosto e mordiscou meu peito,
continuou descendo... Tentei me controlar, mas ela, com um leve toque de dedos,
percebeu que havia vencido qualquer barreira que, por acaso, pudesse existir.
Arranquei nossas roupas, depois retribuí todo o carinho que havia recebido
daquela menina tão doce.
* * * * *
Acordei com gosto de papelão na boca, muita sede, um
sentimento de culpa do tamanho de um bonde por ter traído minha mulher. O Braga
falando alto pela casa, as meninas rindo...
_ Até que enfim, Beto! Pensamos que a Olívia tivesse
matado você – brincou Fabíola.
_ Puxa, minha cabeça está girando – respondi, enquanto
bebia litros d’água.
Olívia veio me dar um beijo de bom dia. Retribuí, o que
me fez sentir ainda pior, pois a imagem de Elaine não saía da minha mente.
_ Dormiu bem? – a garota de Brasília me perguntou.
_ Dormi...
_ Olha o que preparei pra você.
Olívia havia feito pão de queijo e suco de manga. Tudo
estava delicioso, só que eu estava me sentindo como um peixe fora d’água.
Aquela não era a minha Elaine, aquela não era a minha casa, aquela não era a
minha vida.
_ Vou embora amanhã cedo. Você quer ir comigo?
_ Ir pra onde, Olívia?
_ Pra Brasília. Você está bem, Beto?
_ Estou... Só estou um pouco zonzo, de ressaca, há muito
tempo não bebia.
_ Vou fazer um chá de boldo pra você.
_ Não precisa se preocupar, Olívia.
_ Deixa de besteira, homem, ela só quer ajudar –
interferiu Viviane.
Olívia preparou o tal chá. Melhorei um pouco o mal-estar,
mas a dor na consciência por ter traído minha Elaine continuava. E, para piorar
ainda mais a situação, algo naquela garota de Brasília me atraía. Acabei não
resistindo aos apelos da natureza e voltei a cair nos braços de Olívia. Vivemos
momentos de paixão!
Na
Capital Federal
O resto do último dia em Três Marias foi dedicado à total
esbórnia. Tentei não pensar na traição que estava cometendo e tirei férias das
preocupações que vinha tendo há quatro anos. Olívia e eu passamos o dia inteiro
dançando, rindo, nos amando como dois adolescentes que acabaram de conhecer o
sexo.
No dia seguinte, um domingo, fui com Olívia para a
Capital Federal no seu Fusca branco. Não saímos pela manhã como ela pretendia,
pois acordamos bem tarde, já que passamos a noite na maior festa particular
dentro de quatro paredes. Almoçamos, nos despedimos das nossas anfitriãs e do
Braga. Este me chamou num canto e disse: –
Boa sorte, Carlos! – ele sabia quem eu era, mas mesmo assim me deu
carona. Apertei a sua mão e o abracei.
Caímos na estrada. Teríamos 480 quilômetros pela frente.
Olívia é uma companhia muito agradável, divertida. A viagem não foi de forma
alguma cansativa no sentido de enfadonha. Paramos algumas vezes para abastecer
o carro, comer alguma coisa, esticar as pernas e, como estávamos enamorados,
fazer amor. Por causa de tudo isso acabamos chegando em Brasília só na
madrugada de segunda-feira. Fomos direto para o apartamento de Olívia, que
morava com uma amiga na Asa Norte, Plano Piloto. Era um local pequeno, porém
aconchegante.
_ Olá, Marisa! Como foi o final de semana sem mim?
_ Ma-ra-vi-lho-so, minha querida! Você nem imagina!
_ Puxa, você nem sentiu falta de mim?
_ Claro que senti, Olívia, principalmente das suas
calcinhas espalhadas pelo chão. Não vai apresentar o bonitão?
_ Ah, desculpe, este é o Beto, meu namorado lá de Três
Marias. Ele vai passar alguns dias aqui com a gente.
_ Ainda não conheço a sua cidade, Beto, mas já está me
dando vontade de conhecer – brincou Marisa.
_ Bem, na verdade não sou de lá, estava só de passagem.
_ Ah, não? Então, você é de onde? Aposto que é carioca!
_ É, sou do Rio.
_ Mais um carioca na sua vida, minha amiga!
_ Pois é, Marisa, pois é...
Brasília é uma cidade diferente. Não sei explicar
direito, mas tudo parece estar no lugar certo, não é como nas outras cidades.
As ruas são todas iguais, quase não ouvimos os carros buzinarem, o clima é
bastante seco. Só mesmo conhecendo para saber como é.
Não pretendia demorar muito em Brasília, tinha de retomar
minha viagem. Olívia sempre queria me levar para conhecer os pontos turísticos
da cidade, mas eu não queria me expor, afinal, continuava sendo um foragido.
Minha namorada (vou chamá-la assim) era professora numa
academia, dava aula de dança do ventre. Marisa trabalhava como caixa num
supermercado. Aproveitei a ausência das duas e fui a um orelhão, de onde
telefonei para o celular do Dr. Basílio. Ele me disse que o policial federal
Daniel Marchi estava justamente em Brasília fazendo um treinamento.
_ Carlos, ligue pro Daniel agora mesmo. Tenho certeza de
que ele poderá ajudá-lo de alguma forma.
Um
amigo na Polícia Federal
Mal acabei de falar com o Dr. Basílio, telefonei para o
celular do policial Daniel Marchi. Ele ficou surpreso.
_ Carlos Cesario? Não é possível! Onde você está?
_ Estou aqui em Brasília.
_ Aqui? Puxa, mas que coincidência! Mas onde em Brasília?
_ Na Asa Norte. Você conhece?
_ Claro! Me dê o endereço, assim que puder passo aí pra
gente conversar.
_ Mas quando você vem?
_ Assim que puder, Carlos. Tenho alguns compromissos hoje
à tarde. Lá pelas dez horas da noite eu passo aí.
_ Tá bom. Só tem coisa, Daniel.
_ O quê?
_ Estou na casa de duas moças, que pensam que meu nome é
Roberto.
_ Roberto! Tudo bem, não vou me esquecer.
Passei o endereço para o policial, voltei para o
apartamento da Olívia, liguei a televisão, depois liguei o rádio, peguei
algumas revistas... Estava ansioso para finalmente conhecer o Daniel. Ele
poderia me ajudar? Mas como? Eu teria de esperar até a noite para descobrir.
* * * * *
Olívia e Marisa chegaram em casa antes das 19h. Marisa
foi direto tomar banho, Olívia foi me ajudar a terminar o jantar: estrogonofe
de carne, batata palha e arroz branco.
_ Como foi o seu dia, amor?
_ Bom... Hoje talvez venha um amigo meu aqui me ver. Tem
algum problema?
_ Claro que não, Beto. E a que horas ele vem?
_ Depois das 10.
_ Tudo bem. Vou falar pra Marisa. A gente pode até jogar
um buraco. Seu amigo gosta?
_ Não sei, Olívia... Acho que ele não vai querer. Fica
pra outra vez.
_ Tá bom. Vocês têm de colocar os papos em dia...
_ Obrigado... e me desculpe.
_ Não precisa se desculpar, meu querido. Eu entendo. A
Marisa já saiu do banho. Vamos tomar o nosso?
Fizemos amor debaixo do chuveiro, depois fomos jantar.
Olívia contou que receberíamos a visita de um amigo meu. Marisa ficou toda
empolgada, fez mil e uma perguntas a respeito do Daniel. Fui dando respostas
furtivas, pois na verdade nem sabia como ele era.
Já passava das 23h quando o interfone tocou. Corri para
atender, devo até ter usado um tom de voz acima do meu, haja vista toda minha
expectativa. Daniel se identificou, abri a portaria apertando o botão do
interfone. Em menos de um minuto o policial federal entrava no apartamento. Fiz
as devidas apresentações de praxe, depois pedi licença a Olívia e Marisa,
descemos para conversar em particular.
_ Mas vocês voltam, não voltam? – quis saber Marisa, que
ficara interessada em Daniel.
_ Voltamos, senhorita. E será um enorme prazer desfrutar
de companhias tão agradáveis como vocês duas – respondeu o galante policial.
Daniel me perguntou sobre meus planos, respondi que
pretendia seguir para a Amazônia. Ele se prontificou a me ajudar, mas não sabia
de que forma. Disse também que havia entrado em contato com o detetive Celso
Machado logo após a minha ligação.
_ O Celso também tomou um susto quando soube que você
estava aqui em Brasília. Ele pediu para eu ligar logo após o nosso encontro.
Ele quer ajudá-lo, Carlos.
Daniel me contou que a polícia do país inteiro estava
atrás de mim, inclusive tinha solicitado ajuda da Interpol, pois havia grande
possibilidade de eu já estar fora do país. Ele pegou o número do telefone da
casa da Olívia para, assim que tivesse alguma posição, entrar em contato.
_ Bem, acho que já falamos tudo por ora. Não podemos
deixar as moças esperando, não é, Roberto? – disse o policial piscando o olho.
_ Claro, claro, Daniel.
Voltamos ao apartamento, onde Olívia e Marisa nos
esperavam. Esta foi logo oferecendo um copo de cerveja ao policial, que não se
fez de rogado. Sentamos os quatro em volta da mesa, Olívia pegou o baralho e
começamos uma partida de buraco. Marisa e Daniel formaram a dupla adversária.
Eles acabaram nos vencendo com diferença de mais de mil pontos. Depois do jogo,
Daniel mostrou a sua habilidade de mágico usando o baralho. Marisa foi a que
ficou mais entusiasmada. Havia um clima entre os dois. Minha namorada e eu nos
recolhemos mais cedo com o pretexto de estarmos cansados, deixando os dois
pombinhos a sós.
Taboquinha
Acordei bem cedo, antes das 7h, preparei o café-da-manhã
e fui levá-lo na cama para Olívia. Fiquei observando aquela linda menina de 26
anos coberta parcialmente pelo lençol. Logo teríamos de nos separar e,
provavelmente, nunca mais nos veríamos. Sentimentos que me confundiam e perturbavam
desde aquela noite em Três Marias. Não estou aqui pedindo perdão pela minha
traição, nem para ser julgado, pelo menos não por você, pois a dor da traição
já me acompanha desde então. Se eu tiver de ser julgado por alguém, que seja
por minha mulher. Apenas Elaine tem esse direito. A você deixo o julgamento das
minhas ações contra aqueles dois cretinos que invadiram meu apartamento naquele
fatídico 6 de julho de 1997.
* * * * *
À noite recebi um
telefonema de Daniel, que havia conversado com o detetive Celso. O policial
federal contara toda a conversa que havíamos tido na noite anterior. Celso
queria me ajudar de alguma forma e, antes mesmo dele contar para os outros
mosqueteiros, o Dr. Basílio já havia entrado em contato para marcar mais um encontro.
João também foi comunicado. A reunião se daria dentro de dois dias.
_ Carlos, então, vamos esperar um pouco mais. Não é hora
de dar um passo em falso, temos de ir somente na boa.
_ Você tem razão, Daniel.
_ E as meninas nem desconfiam de quem você é?
_ Não, ainda mais por cauda da minha barba e do cabelo
grande. Meu cabelo fica liso quando está curto, mas agora está encaracolado.
Estou bem diferente, você não acha?
_ É, pelas fotos que vi antes, você está bem diferente.
_ Quando você aparece, Daniel?
_ Talvez quando tiver notícias do encontro do Celso com o
Dr. Basílio e o João. Não tenho tido muito tempo, vou ter de ir a um jantar na
casa de um delegado amanhã. Não é só de crimes que um policial vive, meu caro,
a gente tem de ser político também.
* * * * *
Mais alguns dias de angústia. Eu teria mesmo de esperar
pelo veredicto dos três mosqueteiros? As horas se arrastavam lentamente, da
mesma forma vagarosa quando eu estava na minha “suíte”. Uma semana! Foi esse o
prazo que dei para que Daniel trouxesse notícias dos três mosqueteiros. Caso
eles não pudessem me ajudar de alguma forma, teria de agir sozinho. Não poderia
deixar meu destino nas mãos de quem quer que fosse, mesmo que essas mãos fossem
amigas.
No quarto dia de espera recebi um telefonema do Daniel,
que estava animado com a ideia do detetive Celso. Este era muito amido de um
advogado carioca, residente em Brasília desde o final da década de 60, Dr.
Alfredo, que também era criador de gado nelore no município de Padre Bernardo –
GO, a menos de 90 quilômetros da Capital Federal. Celso havia conversado nos
últimos dias com o Dr. Alfredo, explicou todo o meu caso, que ele conhecia
apenas através dos jornais. O amigo do detetive concordou, em nome da antiga
amizade, me abrigar na fazenda por um período, mas não prometeu mais coisa
alguma. Na verdade, o Dr. Alfredo não queria se comprometer com algo que nem
lhe dizia respeito, o que eu não censuro.
Em dois dias recebi uma visita de Daniel, que veio me
contar como eu chegaria à fazenda do Dr. Alfredo. Eu teria de ir até a
rodoferroviária de Brasília. Lá compraria uma passagem para Padre Bernardo, mas
o bilhete de viagem teria de ser apenas até Taboquinha. Chegando em Taboquinha,
me informaria onde ficava a fazenda do Dr. Alfredo, que era o homem mais
conhecido do local. E foi o que fiz no dia seguinte, uma quarta-feira. Saí sem
dizer adeus, deixei apenas um pequeno bilhete para Olívia. E foi só.
* * * * *
Taboquinha é um local pouco habitado, região de muitas
chácaras, muitas terras inabitadas, algumas fazendas, sendo a do Dr. Alfredo a
maior e mais rica. Na fazenda Recanto das Amendoeiras fui recebido pelo
capataz, Osano, casado com a dona Liana, pais de cinco filhos – Leandro,
Leonardo, Fernanda, Rosana e Mariana. Ele é um sujeito de mais de 1,80m,
chucro, trabalhador. Além dele existem dez funcionários em todo o latifúndio do
Celso. Fiquei hospedado na casa do capataz por dois dias, até que
providenciaram um local, o paiol, para eu ficar.
Ataque
de abelha
Os meus dias na fazenda Recanto das Amendoeiras não eram
iguais aos que tive no sítio de tia Rita. Eu recebia minhas refeições das mãos
de um dos filhos de Osano, principalmente de Leonardo, um garoto de seus 10, 12
anos. Todos o chamavam de Fragata, apelido colocado pelo Dr. Alfredo.
Osano não sabia quem eu era, mesmo porque quase ninguém
lia jornal por ali. Havia uma televisão na casa dele, mas que só era ligada na
hora da novela que passa depois do Jornal
Nacional. Acabamos fazendo certa amizade e, por algumas vezes, ele me emprestou
um cavalo para eu conhecer a região. Saía pela manhã e voltava, quase sempre,
só no final da tarde. Levava um pouco de comida, geralmente dois pães com
queijo branco e meu cantil com água. No caminho sempre tinha algo para comer,
principalmente cajuzinho do mato (uma espécie de caju pequeno e vermelho, mais
azedo que o encontrado em supermercados e feiras), que, segundo fui informado,
estávamos na época. Outra fruta do cerrado é uma espécie de fruta-de-conde
tamanho família, meio azeda, de cheiro forte, mas saborasa... e que não me
lembro do nome.
Atravessei serras, rios, terras com árvores retorcidas.
Aliás, eu tinha uma imagem distorcida do cerrado, pois na escola aprendi que
sua vegetação é feia, as árvores com seus troncos tortos. Tudo besteira, o
cerrado é lindo, a vegetação é maravilhosa.
Quando o sol estava forte, gostava de apear do cavalo,
geralmente um meio sangue campolina castanho, e me deitar nas águas rasas de um
riacho com roupa e tudo. Tirava o chapéu, enchia-o de água e jogava no meu
rosto. Depois me levantava, sentava na margem e ficava olhando o movimento dos
pássaros ao redor. Meus pensamentos tomavam rumos diversos, mas com frequência
eram tomados pelas imagens de minha família.
* * * * *
Dr. Alfredo veio pela primeira vez à fazenda desde a
minha chegada. Estava acompanhado de seus três filhos (dois garotos e uma
menina), as idades etnre 8 e 12 anos. Eles vieram passar o feriado prolongado
de 12 de outubro de 2001.
O dono da fazenda Recanto das Amendoeiras veio ter
comigo. Ele foi bastante franco, não fez rodeio, disse que não gostava nem um
pouco da minha presença em suas terras, mas que iria me abrigar por algum tempo
em consideração à sua amizade com o detetive Celso. Não fiquei com raiva, até o
tive em alta estima pela sua franqueza.
Os filhos do Dr. Alfredo fizeram tudo o que qualquer
menino de cidade gosta de fazer quando vai ao campo: andaram a cavalo, nadaram
no rio, pescaram, tiraram leite de vaca, subiram em árvore. Eu não me
aproximava do Dr. Alfredo e dos seus filhos, ficava no canto reservado a mim ou
em cavalgadas pela região.
* * * * *
No domingo, Dr. Alfredo promoveu um churrasco para alguns
amigos. Todos se divertiam, o latifundiário ouvia alguns “causos” dos moradores
da região, gargalhadas dissipavam-se por um raio de 100 metros, mais de 20
crianças se divertiam na piscina, no campo de futebol e em brincadeiras tipo
pique-pega. Toda essa algazarra foi interrompida com os gritos desesperados de
Fragata, que brincava de futebol com outros garotos.
_ Dr. Alfredo, corre, corre, o Zezinho está tendo uma
coisa esquisita!
_ O que foi, Fragata? – perguntou o advogado.
_ Num sei, ele tá ali todo esquisito.
Houve um corre-corre geral, todos foram em direção ao
campo de futebol. Gritos de desespero, sugestões de toda parte. Dr. Alfredo
pegou seu filho mais novo no colo e o trouxe para a varanda da casa principal.
Trouxeram água, trouxeram compressas, mas o garoto ficava cada vez mais roxo.
Um grito de impotência dominou o ar, era o doutor daquelas terras lamentando
não poder fazer coisa alguma para ajudar seu menino. Ele tornou a pegar o filho
no colo e já ia em direção ao seu carro, quando apareci. Carregava minha
maleta.
_ Coloque-o aqui – eu disse.
_ Ele está morrendo, não consegue respirar – alguém
falou.
Dr. Alfredo deitou o seu filho no capô do automóvel, onde
pude tomar ciência da situação. O pequeno Zezinho estava com um edema de glote,
possivelmente provocado pela picada de um inseto. Fiz um garrote em seu frágil
braço e apliquei um antialérgico na veia. Em questão de segundos o menino voltou a
respirar, mas ainda com dificuldade. Fiz respiração boca a boca, o que melhorou
em muito o estado do geral do pequenino. Notei algo em um dos braços do garoto,
retirei: era um ferrão de abelha. Zezinho estava salvo, e eu nem precisei
recorrer a uma traqueostomia. O advogado chorava, sorria, chorava, abraçava o
seu garoto, todos ficaram emocionados, todos abraçavam o pai de Zezinho,
passavam a mão na cabeça do menino. Dr. Alfredo tornou a pegar o filho no colo,
olhou dentro dos meus olhos, estendeu a mão em minha direção e disse: –
Obrigado, Carlos, foi Deus que o colocou no meu caminho.
Encontro
com Zé Geraldo
Fui alojado num quarto na casa principal, aliás, uma
suíte, com direito até a televisão com antena parabólica. Eu continuaria no
paiol sem qualquer ressentimento, muito pelo contrário, pois só poderia
agradecer à hospitalidade do Dr. Alfredo. De qualquer forma, eu estava adorando
aquilo tudo.
* * * * *
No dia 8 de dezembro de 2001 haveria uma grande festa na
fazenda Recanto das Amendoeiras, Dr. Alfredo completaria 60 anos. Na verdade
seu aniversário era dia 6, mas como cairia numa quinta-feira, a comemoração se
daria no sábado seguinte.
Mais de mil convidados! Todos os principais membros da sociedade
de Taboquinha foram convidados. Também estariam presentes o prefeito de Padre
Bernardo, o delegado e... Zé Geraldo! Sim, o cantor e compositor Zé Geraldo, o
mesmo que minha Elaine adorava, principalmente por causa da música Senhorita. Ele fora contratado pelo Dr.
Alfredo para comandar a parte musical da festa.
Faltavam poucos dias para a festança e todos na fazenda
estavam muito animados. Dona Liana e mais algumas mulheres, esposas e filhas
dos empregados da fazenda, preparavam os enfeites, arrumavam a grande área
próxima às três churrasqueiras dando um toque feminino. Os homens faziam o
trabalho mais pesado como encher os freezers
com caixas e mais caixas de cerveja e outras bebidas, capinar toda a área
próxima à casa principal, pintar a cerca e parte dos troncos das árvores com
cal virgem.
Dr. Alfredo chegou à fazenda na quarta-feira anterior à
festa. Ele queria estar a par de tudo, não queria que coisa alguma saísse fora
do planejado. Conversamos por horas nas noites que se seguiram antes da festa,
ele sempre preocupado com o meu futuro.
_ Carlos, tenho uma propriedade na Ilha de Marajó, onde
crio búfalo. Andei pensando, você poderia ficar lá. Eu preciso de um homem de
confiança pra tomar conta da criação, você também é veterinário, é justamente a
pessoa indicada.
_ Doutor, eu fico muito grato, mas não quero
comprometê-lo. Sou um foragido, a polícia de todo o país está atrás de mim.
_ Nunca o encontrarão na minha fazenda na Ilha de Marajó.
Quem o procuraria lá? Quem?
_ ...
_ Carlos, você salvou a vida do meu filho. Se você não
estivesse aqui, agora eu teria um filho a menos. Não quero ouvir um não como
resposta!
_ Vou pensar na proposta do senhor.
_ Então pense e me dê um sim como resposta amanhã mesmo.
* * * * *
No finalzinho da tarde de sexta-feira chegou à fazenda
uma camionete trazendo o músico Zé Geraldo e seu guitarrista Jean Trad. O
próprio Dr. Alfredo foi recebê-los.
_ Como vai, meu caro Zé? – perguntou Dr. Alfredo.
_ A gente vai indo, doutor. E o senhor?
_ Bem, muito bem, ainda mais agora que vocês chegaram.
Como vai, Jean?
_ Bem, doutor.
_ Como foi a viagem? Vocês devem estar cansados, com
fome.
_ Tô mais precisando esticar as pernas – disse Zé
Geraldo.
_ Então, vamos dar uma volta pela fazenda – convidou Dr.
Alfredo.
Fui apresentado aos artistas e logo após saímos os quatro
a caminho do lago artificial próximo aos pés de laranja. Dr. Alfredo criava
vários tipos de peixe: pacu, tambaqui, tambacu, tilápia, piau, matrinxã,
tucunaré. Ele sempre dizia que o peixe mais saboroso de água doce era
justamente este último. Realmente, como pude comprovar na primeira noite dos
dois artistas na fazenda Recanto das Amendoeiras, o tucunaré é um peixe de
sabor único.
Dr. Alfredo conhecia Zé Geraldo há muitos anos, desde
1977, antes mesmo do artista estourar em todo o Brasil com a música Cidadão. Desde então, os dois sempre
mantiveram contato por pura afinidade intelectual, coisa difícil de se imaginar
entre um artista de renome nacional com sua letras políticas contra os
poderosos, e um bem sucedido advogado e pecuarista. Mas quando os dois estavam
juntos era como se todas essas barreiras fossem rompidas e, diante dos olhos
incrédulos dos presentes, apenas dois homens, desnudos de rótulos, proseavam.
_ Zé, você já deve ter ouvido alguma coisa sobre o médico
veterinário que escapou de um presídio lá no Rio de Janeiro.
_ Ah, um tal de... não sei o quê Cesario?
_ Esse mesmo. Você está diante do próprio.
Zé Geraldo e Jean levaram um susto, seus rostos ficaram
pálidos, mas antes mesmo de pronunciarem uma frase sequer, Dr. Alfredo
contou-lhes toda a minha história.
_ Homem, você está comendo o pão que o Diabo amassou –
disse Zé Geraldo.
_ Pois é, seu Zé Geraldo – eu disse.
_ Vamos deixar o Seu lá no céu, me chame de Zé como todo
mundo.
Fomos dormir bem tarde, mesmo tendo no dia seguinte a
grande festa de aniversário do Dr. Alfredo. Zé Geraldo tocou algumas músicas em
seu violão preto. Pedi para que cantasse Senhorita
e, pela primeira vez, ouvi a canção favorita da minha mulher ao vivo. E isso só
me deu mais saudade ainda daquela que é a dona do meu coração.
*
* * * *
Acordei antes que todos da casa principal. Mesmo tendo
dormido tão pouco, menos de cinco horas, estava com uma disposição fora do
normal. Osano estava voltando do curral com dois baldes de leite.
_ Bom dia, Carlos!
_ Bom dia, Osano! Parece que vai fazer um dia bonito.
_ É, parece mesmo. Mas o Dr. Alfredo merece. Vou levar o
leite pra Liana coar e dar uma fervida. Depois levo lá pra vocês.
Fui dar uma volta pela fazenda, peguei algumas amoras, o
que me fez pensar nas cores e seus significados. A amora quando está vermelha é
azeda, ainda está verde; quando está preta é doce, está madura. O verde, o
vermelho, o preto. Devaneio em uma manhã na roça...
Olhei as galinhas, galinhas de cores sortidas que
ciscavam à minha volta. Como são bonitas as galinhas caipiras, como são
diversos seus tipos, algumas de pescoço pelado, outras de porte bem pequeno,
chamadas garnizés, frangos desajeitados com suas longas penas, galos imponentes
com seus cantos duelistas. Quem canta mais alto é o dono do pedaço!
* * * * *
Dr. Alfredo acordou umas duas horas depois de mim, foi
logo convocando seus empregados e dando ordens a cada um. Todos estavam
empenhados para que tudo desse certo, e não era só porque era a festa de
aniversário do patrão, mas de um home que sempre agira corretamente com seus
funcionários, amigos, com quem quer que fosse, indistintamente da posição que a
pessoa ocupasse na sociedade. Aliás, o proprietário da fazenda Recanto das Amendoeiras
é do tipo que se sente à vontade desde quando está tomando um cafezinho na casa
do mais humilde dos homens até em companhia da casta mais fina da sociedade. E
esse homem, antes que alguém possa insinuar, não tem qualquer pretensão
política.
Zé Geraldo e Jean levantaram quase que na mesma hora. Eu
e o advogado estávamos conversando com Osano a respeito dos últimos ajustes
antes da festa, quando os dois apareceram. Zé Geraldo estava com seu
inseparável boné, Jean também estava com um.
_ Bom dia, rapazes! Dormiram bem?
_ Muito bem, doutor – respondeu Jean.
Fomos os cinco dar uma volta para ver se estava faltando
alguma coisa. Tudo perfeito! Em menos de uma hora começariam a chegar os
convidados. Dr. Alfredo já havia mandado acender as churrasqueiras, depois foi
tomar um banho e se aprontar para a festança. Zé Geraldo e Jean aproveitaram
para irem prosear um pouco com os peões da fazenda.
Quando os convidados foram chegando, o aniversariante foi
recebê-los um a um. Os presentes que o advogado ganhava eram os mais diversos,
desde um frango até um jegue, que acabou recebendo o nome do ofertante:
Geraldo. Dr. Alfredo quase teve um enfarte de emoção quando recebeu o animal,
que seu Geraldo, um cearense de Sobral, trouxera de sua terra especialmente
para o advogado.
Um dos últimos convidados a chegar foi o detetive Celso,
que veio acompanhado de sua namorada, Marilda. Depois de conversar com o
aniversariante, veio me contar como andavam as investigações dos três
mosqueteiros. Na verdade não havia muita coisa a ser dita, mas mesmo assim foi
muito bom revê-lo depois de tanto tempo.
Lá pelas tantas, Dr. Alfredo pediu a atenção de todos
para anunciar seus dois amigos artistas. Foi um festival de hurras vindas de
todos os pontos. Zé Geraldo agradeceu os aplausos entusiasmados da animada
plateia com um sonoro “boa tarde, Taboquinha”. Em seguida começou a cantar seus
maiores sucessos, e todos pareceiam saber as letras, pois havia um coro afinado
acompanhando o grande artista. E quem não era fã de Zé Geraldo, com certeza, a
partir daquele dia começou a viver embalado pelas canções do cantor nascido em
Rodeiro – MG.
Adeus,
Taboquinha
No dia seguinte à festa, um domingo, acordei por volta
das 10h. Osano estava comandando a arrumação de toda a bagunça do dia anterior.
Peguei uma vara de pescar e me dirigi ao lago. No caminho catei umas minhocas.
Coloquei uma das mais graúdas no anzol e lancei a linha na água serena do lago,
formando vários anéis de ondas. Não demorou muito e senti um forte puxão, o que
me deu a certeza de ter fisgado um pacu, tambaqui ou tambacu dos grandes. Lutei
com o respeitável peixe por uns bons 10 minutos, a vara formava um arco tão
fechado parecendo que não ia aguentar, a linha esticada ao máximo. Finalmente o
meu adversário começava a dar sinal de cansaço, eu ia guiando-o de um lado ao
outro, ele começava a nadar meio tombado, seus olhos fitavam os meus parecendo
querer dizer que dessa vez, somente dessa vez, eu havia ganho. Entrei na água
para me aproximar do peixe, toquei seu corpo forte e escorregadio, peguei-o no
colo e calculei seis, sete quilos. Retirei o anzol com cuidado para não feri-lo
ainda mais. Soltei o formidável adversário das águas. Era um pacu.
_ Bom dia, Carlos – era o Dr. Alfredo, que há algum tempo
me observava.
_ Bom dia, doutor.
_ Lindo peixe.
_ É, muito lindo. Deu muito trabalho pra domá-lo.
_ Era um pacu, papai? – perguntou Ana Maria, filha do
advogado.
_ Era, Aninha, igual àquele que você pescou comigo.
Carlos, você já tem uma resposta quanto àquilo que lhe perguntei?
_ Doutor, acho que vou aceitar.
_ Muito bem! Olha, hoje à tarde volto pra Brasília, mas
devo estar de volta na quarta-feira. O Jean vai comigo, mas o Zé vai ficar por
alguns dias. Ele mora em São Paulo, quer descansar um pouco do agito da cidade.
Depois ele vai pra Óbidos, no Pará. O meu avião o levará. Haverá uma escala em
Porto Velho, Rondônia, onde tenho uma fazenda de gado de corte, pra resolver
algumas coisas. Em dois, três dias no máximo, creio eu, o avião já poderá
seguir viagem. Depois de deixar o Zé em Óbidos, o piloto vai pra minha fazenda
na Ilha de Marajó. Então, você topa?
_ Claro, doutor!
Zé Geraldo vinha se aproximando com uma faca e uma
laranja na mão. Estava só, Jean continuava dormindo.
_ Bom dia, senhores – Zé nos cumprimentou.
_ Bom dia, Zé – todos responderam.
_ É, acho que o Jean exagerou na esbórnia, pois do meu
quarto dá pra ouvir o seu ronco – disse o cantor, e todos riram.
* * * * *
Zé Geraldo estava bastante animado com o show que iria fazer em Óbidos. Depois
seguiria para Santarém, Altamira, Marabá e, finalmente, Belém. Do Pará para o
Maranhão, passando por diversas cidades. Era a sua maior turnê desde o início
da década de 80.
Cavalgamos juntos nos dias seguintes. Zé Geraldo conhecia
a fazenda há alguns anos, mas sempre era como a primeira vez, tamanha sua
paixão pelo lugar.
_ Meu irmão, adoro isso aqui!
_ Realmente é tudo muito bonito, Zé.
* * * * *
Na quarta-feira à noite Dr. Alfredo retornou à fazenda.
Ele veio acompanhado do piloto Samuel Machado (nenhum parentesco com o detetive
Celso), um homem de seus 40 e poucos anos, voz de trovão, aparência séria, mas
alma brincalhona. Jantamos galinha ao molho pardo que Liana havia preparado,
bebemos vinho tinto, fomos dormir cedo, não muito depois das 21h.
Na manhã seguinte acordei e encontrei o advogado e o
piloto tomando café. Zé Geraldo continuava dormindo. Cumprimentei os dois,
passei manteiga em uma fatia de cão, preparei um pouco de café com leite e me
sentei à mesa. Antes mesmo de eu acabar, os dois saíram e foram ter com Osano.
Zé Geraldo apareceu e perguntou pelo Dr. Alfredo, respondi. Ele também se
serviu e, então, saímos para nos despedir do pessoal da fazenda. Encontramos
Dr. Alfredo e o seu piloto.
_ Tudo pronto pra vocês partirem – disse Dr. Alfredo.
_ A que horas podemos ir? – perguntei.
_ É só colocar a bagagem de vocês no avião – respondeu o
advogado.
Zé Geraldo e seu fomos pegar as nossas coisas e colocamos
no avião, um bimotor. Em menos de uma hora estávamos prontos para partir. Nos
despedimos do Dr. Alfredo, que nos abraçou da forma mais amiga possível.
Entramos no avião, que já estava com o motor ligado. Acenamos para todos que
estavam presentes, o avião foi se movimentando aos poucos, depois foi aumentando
a velocidade até ganhar o ar. Samuel deu uma volta sobre a fazenda, quando
aproveitamos para acenar uma última vez para nossos amigos. Adeus, Taboquinha,
adeus, povo simples de Goiás!
A
caminho da Ilha de Marajó
O avião do Dr. Alfredo tinha autonomia de voo para oito
horas, a viagem até Porto Velho era de mais ou menos cinco. Durante o percurso
eu ia maravilhado com a paisagem. A viagem num bimotor é muito mais linda do
que em um boing, pois o avião não
chega a alturas tão elevadas, a paisagem é muito mais nítida.
Samuel ia nos informando sobre os locais que íamos
sobrevoando. Passamos pelo estado do Mato Grosso até chegarmos em Rondônia.
Florestas, rios, cidades, povoados, fazendas, passamos por tudo isso, numa verdadeira
turnê por essa região pouco conhecida pela maioria dos brasileiros. Avistamos a
pista de pouso na fazenda São Sebastião por volta das 14h. Assim que
aterrissamos, um pequeno grupo de peões veio nos receber. Gente simples como a
que deixamos em Taboquinha.
Seguimos direto para a sede da fazenda, onde almoçamos um
delicioso prato: rabo de jacaré à milanesa, arroz, feijão tropeiro, salada.
Nunca havia comido jacaré, é uma carne com gosto de... parece peixe, mas não dá
para confundir. “Carne de jacaré tem gosto de jacaré”, disse Samuel. Fico com a
opinião do piloto.
Ficamos dois dias com aquela gente. Zé Geraldo cantou
suas canções nas rodas de violeiros à noite, aprendeu outras. “Foi uma troca
generosa de informações, onde eu saí vitorioso”, disse um humilde Zé Geraldo.
Na minha opinião o vitorioso fui eu de presenciar um grande artista de renome
nacional ao lado de outros anônimos, mas nem por isso menos maravilhosos.
Partimos no sábado logo cedo, rumo à Óbidos, no Pará,
onde daríamos adeus ao nosso companheiro de viagem Zé Geraldo. Promessas de um
dia voltarmos a Porto Velho não faltaram. Promessas...
* * * * *
Entramos na Amazônia em pouco tempo em pouco tempo. As
árvores com suas copas majestosas iam tomando conta da paisagem, formando um
imenso tapete verde abaixo de nós. Eu nunca tinha visto essa floresta a não ser
através da televisão ou fotografias em livros e revistas. Não é a mesma coisa, posso
lhe garantir. A Amazônia só é a Amazônia quando a gente tem a oportunidade de
apreciá-la ao vivo. Bate uma emoção tão grande, um orgulho incontido de ser
brasileiro. Linda, inacreditavelmente linda!
Em algumas horas avistamos o rio Amazonas, o mais caudaloso
do mundo, como aprendemos na escola. Suas águas parecem sentir que estamos
observando seu curso, como se fosse um daqueles garbosos cavalos de circo.
Óbidos estava a menos de 200 quilômetros, segundo o piloto.
De repente ouvimos um barulho estranho, Samuel nota que
está saindo fumaça de um dos motores, as chamas não demoram a aparecer, o
piloto age rápido e corta o fornecimento de gasolina para aquele motor. Ficamos
apreensivos, principalmente Zé Geraldo e eu. O piloto aciona um dispositivo que
lança água no motor, apagando o fogo. Logo tudo parece estar sob controle, até
o outro motor começar a ratear e, finalmente, parar.
_ Amigos, apertem os cintos, pois teremos de fazer uma
aterrissagem forçada – informou Samuel.
Zé Geraldo e eu obedecemos prontamente a ordem do
comandante. Estávamos temerosos, esperando pelo pior. Toda a minha vida passa
pela minha mente em questão de segundos. Penso que cheguei ao fim da linha, que
tudo acabou. Samuel tenta planar o avião sobre o rio Amazonas, que está cada
vez maior com a nossa perda de altitude. Todos berramos ao mesmo tempo quando o
avião tocou as águas do grande rio. Samuel tenta levantar o nariz do avião,
estávamos a uma velocidade incrível, a água do rio espirra para todos os lados
como se estivéssemos em uma lancha. Um forte estrondo nos anuncia o choque da
aeronave em um banco de areia a menos de 10 metros da margem do rio. Um minuto
de silêncio, não consigo pronunciar uma palavra sequer, nem um som.
_ Estão todos bem? – perguntou Samuel.
_ Creio que sim, meu irmão – respondeu Zé, enquanto me
observava ao seu lado.
_ Bem, acho que quebrei a perna – disse o piloto.
Zé Geraldo e eu, então, descobrimos que a perna esquerda
do Samuel estava presa nas ferragens do avião, que estava meio de lado. Da sua testa
escorria uma quantidade razoável de sangue. O cantor e eu estávamos
praticamente ilesos, graças à perícia do piloto do Dr. Alfredo.
Conseguimos livrar Samuel das ferragens, confirmei a
fratura na sua perna. Fiz um curativo na testa do piloto. Ele tentou fazer
contato através do rádio, mas este fora danificado em decorrência da queda do
avião.
Uma
visita inesperada
Observamos a região antes de tomarmos qualquer atitude.
Mata, tudo era mata ao nosso redor. Teríamos de procurar ajuda, mas antes
precisávamos sair do avião. Haveria algum povoado nas proximidades?
Assim que consegui abrir a porta do avião para sairmos,
um enorme jacaré tentou abocanhar meu braço. Por questão de centímetros o
animal não consegue a sua refeição, cheguei a sentir o bafo da fera. Tombei meu
corpo para trás, caindo em cima do Zé Geraldo.
_ Temos visita – informei.
_ Eu vi, meu irmão, eu vi. Como passaremos por ele? –
perguntou Zé, branco de medo.
_ Não sei, não tenho a mínima ideia.
_ O que está havendo, Carlos? – quis saber Samuel.
_ Um jacaré do tamanho deste avião está querendo fazer da
gente o seu almoço – respondi.
_ É um jacaré-açu, essa região está cheia deles – disse o
piloto, sem mesmo ter visto o animal.
_ Temos alguma arma no avião, Samuel? – perguntou Zé.
_ Não.
_ O que temos, então?
_ Ainda não sei, Zé, mas vamos pensar em alguma coisa.
O sol estava alto, o calor ali dentro do avião começava a
ficar insuportável. Abrimos as duas janelas laterais e quebramos alguns vidros
para correr um pouco de ar. Eu tinha um pedaço de bolo que o pessoal da fazenda
São Sebastião havia me dado. Dividi com meus companheiros aquela que foi a
nossa primeira refeição na floresta.
* * * * *
_ Dez metros! É mais ou menos essa a distância que temos
de ultrapassar pra chegarmos à margem do rio. E o que temos? Aparentemente nada
que possa nos levar em segurança pra lá. Precisamos matar o jacaré. Mas como?
Não temos arma, só uma faca e um canivete suíço. Não, isso funciona só nos
filmes do Tarzan. Os cintos, claro, os cintos!
_ O que você está ruminando aí, homem? Quer dar uma surra
de cinto naquela fera? – ironizou Zé.
_ Estou pensando numa maneira de chegarmos à margem em
segurança – respondeu Samuel.
_ E como faremos isso? – perguntei.
_ Vamos prender o monstro!
_ Mas como? Com o quê? – voltei a perguntar.
_ Vamos amarrá-lo com os nossos cintos e os do avião.
_ Você está maluco, homem?! Esse bicho tem mais de cinco
metros e vai fazer a gente de refeição antes mesmo da gente conseguir chegar à
margem – protestou Zé Geraldo.
_ Zé, sei que o bicho é grande, sei que os cintos não vão
segurá-lo por muito tempo, mas penso que teremos tempo suficiente pra
atravessarmos o rio.
_ Tá, vamos supor que você esteja certo, mas como iremos
prender o jacaré. Com certeza ele não é um cachorrinho que chamamos e colocamos
uma coleira – ironizei.
_ Já pensei nisso também, Carlos. Vamos atraí-lo pra nós
e, então, laçaremos o bicho.
Como ninguém apresentou uma alternativa melhor,
arrancamos nossos cintos e os do avião, fizemos uma tira de mais ou menos
quatro metros. Fizemos um laço em uma das pontas e amarramos a outra
extremidade no manche do avião. O nosso visitante inesperado exibia toda a sua
poderosa carapaça negra com manchas amarelas transversais enquanto nadava
lentamente ao redor do avião, numa paciência oriental até a primeira
oportunidade de cravar sua enorme mandíbula nas nossas carnes. Seus dentes à
mostra pareciam os de um lutador de boxe ante a plateia após ter nocauteado seu
adversário, um sorriso sarcástico, um sorriso diabólico, o sorriso do rei do
rio, o sorriso do jacaré-açu.
Peguei minha mochila e voltei a abrir a porta do avião, o
que logo chamou a atenção do jacaré. Ele veio em minha direção. Zé Geraldo
estava com o laço na mão. Saí do avião e subi em uma das asas. Joguei minha
mochila na margem do rio. A colossal fera deu um encontrão na lateral do avião,
o que acabou me desequilibrando, quase caí na água, onde com certeza não teria
chance alguma contra meu adversário. Tornei a me levantar, a fera ergueu a
enorme cabeça, balançando-a de um lado para o outro, a bocarra aberta. O bicho
foi surpreendido pelo laço certeiro do Zé. Era o momento de agir. O cantor
puxou Samuel para a água, também pulei no rio, indo ajudá-lo a carregar o
piloto. Não estávamos em um local profundo, não mais de 1,5m, pois a água batia
em meu peito. A adrenalina jorrava em nossas veias, a fera se debatia tentando
se soltar, nós a poucos metros do nosso destino, Zé Geraldo gritou que o
gigantesco animal havia se soltado, o que fez com que acelerássemos mais ainda
os passos. Nossos pés escorregavam na lama no fundo do rio, a qualquer momento
esperávamos pela mandíbula do jacaré-açu cravando seus dentes em nossas pernas.
Finalmente chegamos às margens quando o monstro apareceu e, mesmo fora da água,
tentou nos pegar. Tivemos de nos afastar por quase 10 metros da margem até o
nosso caçador desistir e voltar para as águas do rio Amazonas. Caímos exaustos,
a respiração ofegante, estávamos vivos.
_ Samuel, você é um homem muito corajoso... maluco!
_ Obrigado, Zé!
Na
floresta
Peguei dois galhos grossos e uma atadura na minha maleta
e, com a ajuda do Zé, fiz uma tala na perna quebrada do Samuel (este soltou
alguns palavrões, que não valem a pena mencioná-los, quando puxamos sua perna para
colocar os ossos no lugar). Apliquei-lhe uma injeção de antibiótico e outra de
aintiinflamatório, o que ajudou meu amigo a suportar melhor a dor. Depois de
tratarmos do Samuel, Zé e eu fomos providenciar um abrigo para passarmos a
noite, que já estava se aproximando. Entramos mais uns 20 metros na mata, onde
fizemos um abrigo usando meu cobertor e algumas peças de roupa. Catamos alguns
galhos e providenciamos uma fogueira, muito mais para manter os animais
afastados do que para nos aquecer. Não tínhamos o que comer, pois quando
decolamos em Porto Velho não pretendíamos ficar perdidos em plena floresta
amazônica. Adormecemos.
* * * * *
Acordei com os gemidos de dor de Samuel. Ele estava
ardendo em febre. Apliquei uma injeção de antiinflamatório, uma de antibiótico
e outra de antipirético. Zé Geraldo acabou acordando também.
_ Puxa, pensei que tivesse tido um pesadelo, mas já estou
vendo que tudo é real, meu irmão.
_ Muitas vezes a realidade é um pesadelo, Zé – filosofou
Samuel.
_ Precisamos comer alguma coisa. Você conhece alo que
possamos comer, Samuel?
_ Carlos, se vocês conseguirem pegar algum animal,
qualquer coisa, a gente já estaria com sorte.
_ Bem, vou tentar achar alguma coisa pra gente comer. Zé,
você fica aqui com ele.
_ Tudo bem, mas não vá muito longe, meu amigo.
_ Pode deixar, não pretendo ficar mais perdido do que já
estamos.
Peguei minha faca e fui explorar um pouco a área. Tomei o
cuidado de marcar com a faca os troncos das árvores por onde eu ia passando para
não perder o caminho de volta. Tentava olhar o céu, mas era difícil enxergar
através das copas das árvores, já que a mata é muito fechada. Se por acaso
houvesse uma busca, dificilmente seríamos encontrados, pensei.
Não sei quanto tempo andei pela floresta, a gente acaba
perdendo a noção do tempo. Caminhava com os olhos e ouvidos atentos a qualquer
movimento, a qualquer som estranho, se bem que tudo era novidade para mim.
Tentava encontrar algo que servisse de alimento. Olhei alguns pássaros, mas
pegar um não é obra tão fácil assim. Também avistei um grupo de macacos, joguei
algumas pedras para ver se acertava um, mas só o que consegui foi assustá-los,
eles logo fugiram para não sei onde. Quando resolvi voltar, estava de moral
baixo, sabia que meus amigos haviam confiado em mim, e eu estava de mãos tão
vazias quanto nossos estômagos. Para minha surpresa, encontrei os dois tirando
o couro de uma cobra enorme, mais de três metros.
_ É uma sucuri. Ela estava ali sob aquele tronco. O Zé
pegou um pedaço de pau e acertou-a em cheio na cabeça.
_ Então, o Zé é daqueles que mata a cobra e mostra o
pau?! – brinquei.
Todos rimos, chegamos até mesmo às gargalhadas. Talvez
você ache exagero, a piada é tão antiga, você pode dizer. Só que você está se
esquecendo que não estávamos tomando um chope no bar da esquina. Estávamos
perdidos na floresta amazônica.
Seja como for, graças ao Zé tínhamos alimento suficiente
por pelo menos uns três dias. Depois de tirarmos o couro e as vísceras do
réptil, colocamos toda a carcaça para assar. Se fôssemos assar aos poucos, a
carne acabaria apodrecendo, pois não tínhamos como conservá-la. Não tínhamos
tempero, e carne de cobra sem tempero é horrível, mas não estávamos em
condições de escolher o cardápio.
* * * * *
Os dias iam passando, as dificuldades se sobrepondo. Zé
Geraldo já é um homem magro, ficou esquálido; Samuel, normalmente rechonchudo,
perdera borá parte da barriga; eu perdi alguns quilos também, mas, talvez por
ser mais jovem, continuava relativamente em forma. Nossas refeições já não eram
tão generosas quanto a do segundo dia na floresta, agora se restringiam a
algumas raízes, ovos de pássaros, insetos, larvas. Cheguei a pensar naquele
grande jacaré que tentou nos devorar, pensei nele em uma grande bandeja.
Delírios de um perdido na floresta, faminto.
A perna do Samuel estava aparentemente boa, ele já andava
sozinho, mesmo que mancando. Samuel tinha mais noção do que Zé e eu sobre
direção, era piloto e conhecia a região, mesmo que do alto. Tínhamos de sair
dali, disse nenhum de nós discordava, pois do contrário acabaríamos morrendo.
_ Meus amigos, amanhã começaremos a nossa caminhada.
Óbidos fica a cerca de 200 quilômetros daqui. Antes disso, com certeza,
encontraremos alguma vila.
_ Duzentos quilômetros não é tão longe assim – eu disse.
_ Carlos, uma coisa é andar 200 quilômetros na estrada,
outra, completamente diferente, é fazê-lo em plena mata – Samuel me corrigiu.
No dia seguinte começamos nossa caminhada, sempre usando
o rio como referência, mas não a menos de 10 metros de distância da margem,
pois não queríamos um novo encontro com um jacaré-açu ou uma sucuri, que nessas
águas costumam ser bem maiores do que aquela que o Zé havia matado.
Caminhávamos uns cinco quilômetros por dia, eu acho, pois não dá para ter noção de quanto se
anda em uma mata fechada, pelo menos nós três não tínhamos, talvez por pura
falta de experiência.
Samuel foi o primeiro a fraquejar, sua perna voltou a
doer, apliquei-lhe uma injeção de antiinflamatório. Teríamos de carregar nosso
amigo. Zé e eu fizemos uma espécie de maca com galhos, folhas e algumas roupas
para carregar o piloto. Agora nossas caminhadas se tornaram mais lentas e
cansativas. A pouca quantidade de alimento ia nos enfraquecendo cada vez mais.
Eu tinha perdido uns 20 quilos, Zé Geraldo uns 15 e Samuel uns 25 ou mais.
Não me lembro de quantos dias caminhamos, uns seis, sete
talvez, até que resolvemos descansar. Quando chegou a manhã do dia seguinte,
não tínhamos forças suficientes para retomar a caminhada. Olhávamos ao redor,
quase não tínhamos forças para sequer conversar, nossas palavras eram
balbuciadas. Desmaiamos, não sei quem foi o primeiro, talvez tenha sido eu, não
sei.
* * * * *
Senti alguém molhando meus lábios com algo adocicado,
talvez suco de framboesa. Tentei abrir os olhos, mas eles estavam pesados como
chumbo. Vozes inteligíveis inundavam meus ouvidos.
Não sei quanto tempo se passou, mas numa manhã voltei a
ter a sensação de alguém mexendo em meus lábios, abri os olhos e percebi um
vulto de rosto redondo, olhos puxados como os de um oriental, cabelos lisos e
pretos como uma graúna, pele mais escura do que a minha. O vulto sorriu e
pronunciou algumas palavras que não pude entender. Depois saiu e logo voltou
como outros vultos parecidos com ele. Esses outros vultos também pronunciaram
palavras estranhas. Todos os vultos também sorriam e falavam ao mesmo tempo. Só
então percebi que eram índios. Eu estava numa aldeia de índios. Tentei
levantar, mas minhas pernas fraquejaram e só não caí porque fui amparado por
aquelas pessoas, que voltaram a me deitar na rede onde eu estava.
Tentei me comunicar, mas ninguém parecia me entender.
Queria saber dos meus amigos. Estariam vivos? Ninguém me compreendia. Uma índia
de seus 15, 16 anos – presumi pelos seus traços jovens – me trouxe um pouco de
peixe e uma papa, talvez de mandioca. Outra índia, um pouco mais jovem – seus
seios ainda estavam em formação – me ofereceu um pouco de água.
Passei umas duas horas na rede recebendo os cuidados
daquela gente. Novamente tentei me levantar e, caso não fosse pela ajuda das
duas jovens índias que estavam tratando de mim, voltaria a tombar. Apoiado nos
ombros das duas, saí, da oca e pude ver a aldeia onde me encontrava. Cinco ocas
abrigavam 29 índios, entre seis meses até mais ou menos 60 anos. Todas essas
idades, claro, são presumíveis, pois eles não tinham registro de nascimento nem
calendário. Logo avistei o Zé num canto conversando com um grupo de homens.
Conversando é modo de dizer, pois logo percebi que eles não entendiam muito bem
o que meu amigo falava, mas pareciam gostar, já que a cada frase do Zé se
seguia um uníssono de gargalhada. Assim que ele me viu acenou para que eu me
aproximasse.
_ Olá, Carlos! Estive na sua oca, mas você estava
dormindo. Como você está?
_ Bem, meu amigo. E o Samuel? Onde ele está?
_ Ele está bem. Essa boa gente está cuidando de sua
perna. Mais uns dias e ele estará pulando como um canguru. Vamos lá vê-lo.
Eu já estava me sentindo melhor, não precisava mais de me
escorar nas duas índias para me manter em pé. Zé e eu acenamos para nossos
amigos índios, que nos acompanharam até a oca onde Samuel estava. Logo que nos
avistou, o nosso amigo piloto deu uma sonora gargalhada de trovão.
_ Carlos, até que enfim! Pensamos que você havia sido
picado pela mosca do sono – brincou Samuel.
Conversamos por um bom tempo. Nossos anfitriões tentavam
se comunicar, participar da conversa, mas não entendíamos aquela língua. Zé era
o único que, raramente, compreendia o que os índios queriam dizer.
_ Carlos, essa gente não tem contato com o homem branco,
pelo menos é o que está parecendo, já que não possuem um só hábito da nossa
cultura. Quem poderia imaginar que ainda existem índios como no tempo do
descobrimento do Brasil? – Zé indagou.
_ Mas nós não estamos próximos a Óbidos? – questionei.
_ É o que parecia, Carlos, mas um bimotor não dispõe dos
mesmos recursos que um boing para
precisarmos o local onde estamos sobrevoando. Provavelmente eu estava enganado
quando disse que estávamos a mais ou menos 200 quilômetros de Óbidos –
confidenciou o piloto.
_ Entendo... Mas, então, onde estamos?
_ Carlos, a única certeza é de que se seguirmos o curso
do rio acabaremos chegando a Óbidos, que fica às margens do Amazonas – Samuel
respondeu.
_ E como chegaremos lá? A nado?
_ Não, Carlos, claro que não, ainda mais com esses
jacarés inundando essas águas – protestou Zé.
_ Iremos construir um barco – disse Samuel.
_ Um barco? Mas como, Samuel?
_ Carlos, olha, temos madeira suficiente por aqui. Você
concorda?
_ Puxa, e como temos – concordei.
_ Pois é, com a ajuda dessa gente construiremos um barco
e desceremos o rio.
_ E você sabe construir um barco? – questionei.
_ Antes de ser piloto trabalhei na Marinha. Conheço um
pouco de embarcações. Tenho até uma lancha, meu amigo.
_ Você é um homem de mil facetas, Samuel. Comandante do
céu e do mar. Tem alguma coisa que você não faça?
_ Fritar um ovo, Carlos. Não sei fritar um ovo.
* * * * *
Como Zé Geraldo havia previsto, Samuel logo estava
pulando como um canguru. O piloto, agora nosso capitão, chamou nossos amigos
indígenas e fez um desenho de um barco na terra. Eles pareceram entender, pois
vários apontaram para o rio, de onde, com certeza, já haviam visto algumas
embarcações. Depois ele desenhou cada uma das partes do barco e tentou lhes
dizer que precisávamos daquelas coisas para montar a nossa embarcação. Eles
entenderam, depois se levantaram e apontaram para a floresta, de onde poderiam
providenciar tudo o que precisaríamos para construir o nosso barco. Os índios
possuíam algumas canoas, mas preferimos não confiar muito nelas, pois achamos
que, se um jacaré-açu quisesse, poderia facilmente virá-la com nós três dentro.
Samuel acompanhou cada etapa da construção do barco e, no
final de um mês, já tínhamos como chegar à civilização do homem branco. Um belo
barco de seus 5m de comprimento por 2,5m de largura, com cobertura de 2,5m,
tábuas transversais que serviriam de assento e três remos. O barco era de fundo
quase chato, já que no rio não enfrentaríamos ondas como no mar. Colocamos o
barco no rio e ele funcionou perfeitamente. Demos um pequeno passeio, inclusive
levando nossos amigos índios. Claro, não carregamos mais do que seis pessoas em
cada passeio, mesmo porque não queríamos correr o risco de afundar o barco e
perder todo o trabalho de um mês.
Resolvemos partir em dois dias. Não queríamos sair dali
correndo, como três forasteiros ingratos. Aquela gente salvou nossas vidas, nos
deu abrigo, nos ajudou a construir o barco e nada pediram em troca. Definitivamente
não poderíamos sair correndo como ingratos.
Participamos de todos os rituais da aldeia nos dias
seguintes. Eles sabiam que íamos partir em breve e estavam tristes, queriam que
ficássemos. Eles ficaram impressionados com a altura do Zé, que tem um pouco
mais de 1,80m; pelos meus olhos claros; e pela voz de barítono do Samuel. Com
certeza sentiríamos também a falta de nossos amigos.
Quando chegou o momento da partida, colocamos nossas
coisas no barco, nos despedimos de cada membro da aldeia. Foi um momento de
muita tristeza para eles e para nós. Subimos no barco e quando já íamos nos
afastando das margens, pedi aos meus dois amigos para voltarmos. Eles não
entenderam, perguntaram se eu havia me esquecido de alguma coisa. Voltamos a
encostar o barco na margem onde nossos amigos indígenas estavam. Peguei minha
mochila e a joguei em terra.
_ O que foi, Carlos? O que está fazendo? – perguntou
Samuel.
_ Vou ficar.
_ Você está louco, homem?
_ Não, Samuel. Deixei a loucura de lado quando resolvi
ficar com essa gente que tão bem nos acolheu.
_ Você tem certeza, meu irmão?
_ Tenho, Zé. Só lhes peço uma coisa.
_ Fale, meu amigo – Samuel quis saber.
_ Digam pra minha família que morri na queda do avião.
Meus amigos me abraçaram, choramos os três. Um vínculo
muito forte havia se formado entre nós durante a luta pela sobrevivência. O
barco foi se afastando, deslizando nas águas do Amazonas.
Epílogo
Não me pergunte o porquê de eu ter desistido de voltar
com meus amigos para a dita civilização, pois nem eu ainda sei. Talvez a falta
de perspectiva de mudança da minha situação de condenado, talvez o cansaço de
continuar a fugir sem destino, talvez por medo, talvez por eu ter encontrado um
povo digno em sua mais pura essência. Não sei, talvez seja até mesmo a soma de
todas essas coisas.
Sinto falta da minha família, minha mãe, minha mulher,
minhas filhas. Não tem um só dia que não chore a ausência delas. Todas povoam
diariamente meus pensamentos. Amo todas mais do que minha própria vida. Talvez
tenha sido essa mesma a razão de querer ficar na aldeia. Elas sofrerão com
minha falta, eu sei, mas não ficarão esperando em vão que um dia eu volte.
Fim
- Nota de esclarecimento: Entre 2005 e 2006, o romance "Despido de ilusões" foi o livro com maior solicitação de empréstimos de todo o acervo da biblioteca do Centro Cultural do Banco do Brasil.
- O senador Marco Maciel, então membro da Academia Brasileira de Letras, teceu elogios ao livro "Despido de ilusões".