Além das memórias e dos álbuns de fotografias,
o viúvo manteve o falante papagaio Lourival, presente de casamento. A ave
sempre pendeu para o lado de Lourdes, que lhe retribuía os agrados com pão
molhado no leite.
— Lourdes, meu amor, o
veterinário já falou que isso faz mal pro papagaio.
— Hum! E desde quando veterinário sabe o que é bom pro Lourival?
— Ué, ele estudou pra isso.
— Bobagem! Quem sabe o que é bom pro meu menino sou eu.
A despeito de fazer bem ou mal, o fato é que o papagaio quarentão
aparentava dar e vender saúde. E, apesar da ausência inesperada de Lourdes,
ainda mantinha certa distância do Deoclécio, que até tentou se aproximar. No
entanto, após algumas bicadas, o homem declinou da ideia, apesar de não guardar
rancor do Lourival. Tanto é que, não raro, fritava alguns pedaços de aipim e
oferecia um quinhão para o louro, que não fazia desfeita.
Certo
dia, enquanto degustava aipim com bons goles de café, o velho percebeu que o
tempo havia mudado. Uma lufada de vento balançou a cortina, fazendo com que a
parte de baixo do tecido lhe tocasse a face. Levantou para fechar a janela,
quando constatou que o céu estava carregado de nuvens densas e escurecidas.
Logo começou a cair um temporal.
Transeuntes corriam de um lado para o outro em
busca de abrigo. Nisso, uma jovem, não mais de 30 anos, talvez nem tenha
percebido que um livro acabara de cair dos seus braços, que carregavam vários outros
volumes. Aquela cena chamou a atenção de Deoclécio, que se sentiu incomodado
por ninguém se preocupar em pegar aquele exemplar, que parecia castigado pelos
pingos cada vez mais fortes.
O idoso tentou avisar as pessoas, mas ninguém parecia lhe
dar bola. Por impulso, abriu a porta do apartamento, desceu as escadas e,
decidido a resgatar aquele pobre livro, atirou-se debaixo da tempestade. Raios,
trovões, água que batia sem piedade na pele. Deoclécio, afinal, conseguiu
chegar ao lado da vítima. Agachou-se, tomou o livro em suas mãos, o segurou
junto ao peito e, curvado, voltou correndo para o seu edifício.
Mal entrou no apartamento, Deoclécio pegou uma
toalha e tentou enxugar ao máximo capa, folhas, tudo. Tudo encharcado. Ele não
sabia se iria conseguir salvar aquele livro. Ainda assim, teve a ideia de
deixá-lo atrás da geladeira, como fazia com suas meias úmidas, a fim de
secá-lo.
Torcedor de nenhum time, resolveu buscar um filme na
televisão. Por sorte, percebeu que iria começar um clássico do cinema nacional:
"Matar ou correr", com Oscarito e Grande Otelo. Pensou em convidar o
Lourival para ver o filme, mas constatou que o papagaio já estava nos braços de
Morfeu.
Pipoca pronta, Deoclécio abriu uma lata de refrigerante e se
acomodou no carcomido, mas aconchegante, sofá. Enquanto assistia ao filme, o
sujeito fez uma viagem até a sua infância, quando teve seu primeiro contato com
o cinema, justamente com "Matar ou correr". E, desde então, se
apaixonou pela famosa dupla de atores.
Após o filme terminar, Deoclécio ainda buscou algo mais na
televisão. Mudou de canal diversas vezes até que, sonolento, adormeceu.
Deoclécio acordou e buscou o relógio de parede. Quase meio-dia.
Atordoado, levantou-se, cumprimentou o Lourival, encheu o pote de ração, trocou
a água e lhe serviu o tradicional pão embebido em leite. Resolveu tomar banho.
Quem sabe, assim, despertaria de vez?
Enquanto a água quente caía sobre o rosto,
Deoclécio pensava na vida. Sentiu-se desolado, como se todas as ilusões
tivessem lhe sido arrancadas. Foi aí que, de repente, arregalou os olhos e se lembrou
do livro.
Saiu do box sem desligar o chuveiro, correu
até a cozinha, olhou atrás da geladeira e pegou o exemplar, que parecia
recuperado. Seco. Completamente seco, ao contrário do homem, que, apressado,
nem se lembrou de pegar a toalha.
Deoclécio acabou escorrendo por conta da água que escorria por seu corpo. Caiu de bumbum no chão, com o livro ao seu lado. Foi aí que ele leu o título: "Despido de ilusões", de um certo Eduardo Martínez.
- Nota de esclarecimento: O conto "Peripécias de um viúvo" foi publicado no Notibras no dia 12/12/2025.
- https://www.notibras.com/site/peripecias-de-um-viuvo/
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