Para você ter ideia, na semana passada, joguei fora uma
bijuteria que sempre me foi bastante cara, apesar de saber que não valia nada
além de sentimentos. Fora me dada por Arlindo, paixão adolescente, cujos olhos
acolhedores me apanharam em momento de tamanha insegurança e, por isso mesmo,
era eu a criatura mais revoltada com o mundo. Mas quem não o é aos 14?
Pois lá foi a réstia de sentimentos que, porventura, ainda
estivesse guardada em algum lugar. Não que o meu primeiro namorado tenha sido
esquecido por completo. Não. Acredite ou não, ainda somos amigos... Bem, não
amigos que se encontram ou mesmo que se falem. Mensagens, não mais do que isso,
e todas formais, no Natal e no Ano Novo. Só.
O rompimento aconteceu de maneira natural, se é que posso chamar
assim o fato de, após uma viagem para praia, eu não ter conseguido olhar com os
mesmos olhos aquele rapaz tão meigo. Fingi indisposições mentirosas e, após
alguma insistência, ele desistiu ou, ainda guardo certa dúvida, tenha se
interessado por outra. Natural.
Arlindo se mudou dois ou três meses após o nosso rompimento sem
dramas. Soube depois que fora morar na Asa Sul, que, naquele tempo, era uma
viagem da minha quadra, bem no final da Asa Norte. No entanto, quando algo
precisa acontecer, vai acontecer. Meu pai sempre dizia isso, apesar de mamãe
achar aquilo uma tremenda bobagem.
Aconteceu. Mas como levou tempo! Uma eternidade de praticamente
meia década.
— Valéria, e precisa desse drama todo pra falar cinco anos?
Parece que ainda ouço a voz da dona Lourdes, minha mãe. Ela
sempre me dizia para tentar a sorte como atriz.
— Valéria, você puxou a cara de pau do seu tio Lúcio. Não é
possível! Um dia ainda vou te ver numa novela ao lado do Francisco Cuoco.
Bem, tio Lúcio, irmão do meio da dona Lourdes, era o, digamos,
porra-louca da família. E, talvez por isso mesmo, tenha sido o único que viveu
uma vida deliciosamente inconsequente. Que inveja! Mesmo que seu fim não tenha
sido nada romântico, sem contar que passou por alguns perrengues dignos de...
Bem, fugiu-me a palavra, mas não se preocupe, que uma hora ela volta.
Foi na UnB que o Arlindo reapareceu ainda mais lindo. Ele me observou
por um instante até tomar coragem e se aproximar. Devo ter sorrido, pois
percebi seus dentes grandes, brancos, como se tivesse saído de um anúncio de
pasta de dente.
Marcamos de nos encontrar depois da aula para colocar a
conversa em dia. Nem me recordo qual foi a matéria que tive naquela tarde. Já
tentei puxar pela memória, mas devo estar muito velha ou, então, deve ter sido
algo que eu não quisesse mesmo lembrar.
— Matemática?
— É.
— Não acredito! Você sempre disse que seria
advogada.
— Por quê? Tá me chamando de mentirosa?
Arlindo abriu aquele sorriso e, dessa vez,
pude me deliciar com uma gargalhada gostosa, que ainda soa em meus ouvidos.
Basta fechar os olhos e lá está ele, aos 20 anos, como se tivesse o poder de
atrair todas as mulheres do mundo. E, não duvido, tenha sido justamente isso
que nos afastou. Quer dizer, aconteceu algo pior. Muito pior.
Tornei-me confidente do rapaz por quem,
naquele momento, me redescobri apaixonada. Do ciúme inicial, passei a achar
graça das conquistas ou desventuras amorosas do Arlindo. No entanto, até
sorvete com cobertura de chocolate enjoa. Acabei desenvolvendo repulsa por
aquilo tudo, apesar, vez ou outra, sentir certa comiseração por uma ou outra
mulher que caía na lábia do Don Juan.
A formatura foi a desculpa ideal para
conseguir me afastar sem provocar questionamentos. No início, Lindomar,
acostumado a ter uma ouvinte ideal, que fazia caras e bocas a cada detalhe dos
relacionamentos, me telefonava para me contar as novidades. Eu inventava
desculpas, algumas tão esfarrapadas, que devem ter feito o sujeito perceber que
eu não estava mais afim de escutar suas aventuras.
Uns dois anos após a nossa última conversa por telefone,
estava eu no aniversário da Gláucia, quando vi entrar no apartamento o Arlindo.
Não sei o que me deu, mas sorri em sua direção, que demonstrou ter gostado.
Como o danado conseguia? Estava ainda mais lindo! E que magnético olhar
castanho!
— Você
por aqui?
— Há
quanto tempo, Valéria.
Não nos separamos durante quase toda a festa.
Quem não gostou muito foi a Gláucia, que, mesmo após quase uma infinidade de
anos, nunca me perdoou. Soube depois de uma semana que ela estava apaixonada
pelo Arlindo e, no ano seguinte, os dois se casaram e, até onde me consta,
vivem uma vida de aparências.
Mas voltando ao aniversário da minha até então
amiga, eis que o Arlindo me ofereceu carona. Aceitei, apesar de morar na quadra
ao lado. Estava certa de que acabaríamos na cama, e era o que mais deseja
naquele instante, ainda mais por conta de dois copos de cerveja. Sempre fui
fraca para bebida.
Já no carro, voltamos a nos beijar e nos
tocar após tanto tempo, que havia me esquecido de um detalhe fundamental.
Gente, como é que fui me esquecer daquilo? Seria o mesmo que mulheres que
pariram e, anos após resolvem engravidar novamente, pois se esqueceram da dor
descomunal do parto?
Como beija mal! Fingi que estava naqueles dias
e, então, falei para deixarmos para outra oportunidade, que, obviamente, nunca
aconteceu. E, olhando por esse ângulo, não sei como é que guardei por meio
século aquela bijuteria horrível.
Ah, tuaregue! Sim! Tu-a-re-gue! Tio Lúcio, vez ou outra,
levava uma vida de tuaregue.
- Nota de esclarecimento: O conto "Valéria e a bijuteria" foi publicado por Notibras no dia 12/11/2025.
- https://www.notibras.com/site/valeria-e-a-bijuteria/?preview=true
.jpeg)




