segunda-feira, 11 de agosto de 2025

Sob a cortina

 

Na sala sob a cortina

uma mesa ao centro

fichas se misturam

ao antigo baralho

 

Risco um fósforo

e acendo mais um

que vem somar suas cinzas

às dos outros tantos

que já perdi a conta

 

Olhares de desconfiança

embaçados por tanta fumaça 

no ar

e pela poeira

que sobe do velho tapete

 

O gelo do meu copo

de whisky

ou nem sei o quê

já derreteu

 

Mais pontas

amontoadas no cinzeiro

e nenhum de nós percebe

que o tempo

já não é dono de si

  • Nota de esclarecimento: O poema "Sob a cortina" foi publicado no Café Literário do Notibras no dia 11/8/2025.
  • https://www.notibras.com/site/sob-a-cortina/

Arnaldo e a incógnita do acaso

      

   Arnaldo não acreditou quando Luciana, justamente a mulher mais atraente da festa, se aproximou. Não que ela tivesse demonstrado qualquer interesse nele, se bem que tal hipótese não pudesse ser descartada por completo. Mesmo diante da quase total impossibilidade, o homem guardava em seu íntimo inabalável resquício de esperança. 

          Não se sabe o que teria acontecido com Arnaldo, mas ele pareceu se encher de esperança. Talvez um momento de insanidade, quando se imaginou Alain Delon ou Tarcísio Meira. Seja uma coisa ou nenhuma outra imaginada por este escritor, a verdade, segundo ouvi dizer, é que Luciana resvalou o olhar com o do sujeito. Ele precisou segurar o ímpeto de baixar os olhos, a despeito da costumeira falta de coragem. 

          — Luciana.

          — O quê?

          — Sou a Luciana.

          — Ah, sim! Sou o Arnaldo.

          — Prazer, Arnaldo.

          Desacostumado a ser abordado por mulheres, ainda mais uma que certamente seria destaque em qualquer passarela, Armando sentiu o peito dar fortes sobressaltos. Não porque estivesse tomado de orgulho da própria capacidade de atrair tamanha beldade. Não. Não mesmo! Era simplesmente o coração acelerado implorando para que Armando fugisse daquela incongruência de destinos. 

      Os pés, impacientes, batiam ligeiramente o piso. Não obstante à covardia e provavelmente até por conta dela, não foram capazes de fazer com que Armando inventasse desculpa qualquer e fosse embora. O gajo sorriu tentando demonstrar naturalidade e segurou a mão da mulher.

          — O prazer é todo meu. Aceita uma bebida?

          Arnaldo não entendeu por que Luciana havia se aproximado. Era nítido que ele não era o cara de aparência mais agradável naquele ambiente, tão cheio de gente que carregada de altivez. Seja como for, deixou-se levar pela incerteza e até chegou a imaginar aqueles lábios juntos aos seus. Se isso iria ou não acontecer, resolveu não se desesperar e curtir a noite. Afinal, o desconhecimento entre os dois era recíproco.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Arnaldo e a incógnita do acaso" foi publicado por Notibras no dia 11/8/2025.
  • https://www.notibras.com/site/arnaldo-e-a-incognita-do-acaso/

domingo, 10 de agosto de 2025

Eu sei que vou te amar

    

Camila, leitora voraz desde menina, conheceu Juliano, o marido, justamente na festa de 15 anos. Não foi amor à primeira vista. Seus belos olhos castanhos miravam, então, os de um primo, que, ingrato, voltou os dele para outra parenta. Pobre debutante, ficou sem par, enquanto o amado foi se embrenhar no jardim com a outra. 

          Quase cinco anos depois, Camila reencontrou Juliano por mero acaso na fila do banco. Ela, que estava sem óculos, pareceu reconhecer aquele vulto, mas não se lembrava de onde. Apertou os olhos, quando foi notada pelo rapaz, que sorriu.

          — Camila?

          — Sim. Você?

          — Juliano.

          — Ah, sim! Que cabeça a minha. 

          Ele a convidou para um sorvete e, assim, o namoro começou, apesar da pouca empolgação por parte de Camila. Entretanto, com o passar dos dias, ela se propôs a se apaixonar e passou a escrever poemas para Juliano. Esse hábito talvez não tenha despertado paixão, mas foi o suficiente para aceitar o pedido de casamento dois anos após. 

          O tempo não voou, mas passou mais rápido do que a mulher imaginou. O casal estava prestes a completar 40 anos de união. Filhos, netos e uma bisneta fizeram uma grande festa. Camila e Juliano dançaram até valsa, momento em que ela sorriu, como se lembrando de algo ocorrido há tanto tempo.

          — O que foi, meu amor?

          — Nada, Juliano. Nada. Bobagem.

          Como teria sido a sua vida, caso tivesse se casado com o primo? Na verdade, a última notícia que teve sobre seu paradeiro é que fora para a Índia. Quem sabe não tenha virado refeição de tigre? 

          Duas semanas se passaram. Camila e Juliano estavam sentados na varanda, quando chegou uma carta. Ela tomou um susto quando percebeu quem era a remetente. Justamente aquela parenta que havia lhe roubado o pretendente na comemoração dos 15 anos. 

          Camila abriu o envelope e leu a missiva. Lúcia falava que Antônio falecera há seis meses. Não contava detalhes sobre a morte do cônjuge, mas apenas que ele sempre dizia como Camila era a debutante mais linda que ele teria visto na vida. 

          Assim que terminou de ler a correspondência, Camila desejou guardá-la no cofre. O problema é que não se lembrava mais do segredo.

           — Juliano, qual é mesmo a senha do cofre?

           — O dia do nosso reencontro no banco. Lembra?

           — E como poderia esquecer, meu amor?

            A mulher puxou pela memória e, após duas ou três tentativas frustradas, finalmente conseguiu abrir o cofre. Havia um monte de folhas soltas. Eram as poesias escritas para se fazer apaixonada por Juliano. Ela pegou todas e retornou para varanda, onde começou a lê-las para o marido, enquanto sua mão repousava sobre a dele. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Eu sei que vou te amar" foi publicado por Notibras no dia 10/8/2025.
  • https://www.notibras.com/site/eu-sei-que-vou-te-amar/

sábado, 9 de agosto de 2025

Eita, mundo cada vez mais perigoso!

          

            Lauro andava preocupado com a criminalidade na região do Cruzeiro. Não que fosse tão preocupante, ainda mais levando-se em conta outras localidades do Distrito Federal. Mesmo assim, o homem parecia só querer escutar as notícias ruins, tão comuns em telejornais que promovem verdadeiros espetáculos de horrores sobre o mundo da bandidagem. 

        Judite, a esposa, já havia se cansado de dizer para o marido parar de ver tantas desgraças. Entretanto, quanto mais falava, mais o sujeito aumentava o volume. Sem contar que, até nas horas mais impróprias, Lauro fazia questão de comentar sobre as últimas notícias.

          — Você viu?

          — Vi o quê, Lauro?

          — A onda de sequestros que está acontecendo.

          — Lauro, meu amor, a única onda que quero ver é a de uma praia. Mas, enquanto o verão não chega, vamos prestar atenção no que o padre Luiz está falando.

          Não era só na missa, como também na hora de cantar parabéns para Letícia, a única neta do casal. Sandra, a mãe da menina, foi até a mesa dos pais para avisá-los que era chegado o tão aguardado momento antes de partir o bolo.

            — É pra já, minha filha, que você sabe que não resisto a um bolo de chocolate. Vamos, Lauro!

            — Não sei como é que vocês podem pensar em comemorar algo quando a cidade está sendo tomada por ladrões e assassinos.

            — O quê, papai?

            — Não liga, não, Sandra, que seu pai não anda muito bem.

            — Ah, tá! Então, sou eu que não ando bem agora, né, dona Judite?

            — Papai, o que está acontecendo?

          — O que está acontecendo é que a sua mãe não percebe os inúmeros homicídios que estão acontecendo a todo momento. É isso que está acontecendo!

            Igreja, festa de aniversário... Ah, também no supermercado. Se bem que, sejamos honestos, nesse caso, quem deu o mote da discussão foi a própria Judite.

                — Que assalto!

                — Assalto? Onde? Onde?

                — Olha o preço deste iogurte! Um absurdo!

                — Quer me matar, Judite?

           Terça-feira era dia de encontro de Judite com as amigas, todas, que nem ela, aposentadas do Banco do Brasil. Era a oportunidade de relembrar histórias e conhecer outras. E, para aproveitar a ausência da esposa, Lauro assistia a documentários sobre crimes e criminosos famosos. E foi assim que se deu mais uma noite daquelas. 

                 Mal se despediram com um leve toque dos lábios, Lauro correu para a cozinha, pegou uma lata de cerveja, sentou no sofá, pegou o controle da televisão e colocou num programa de assassinos em série. Enquanto isso, Judite também seguiu para seu passeio, que parecia rejuvenescê-la cada vez mais. Afinal, nada como sair da rotina.

                Não se sabe se foi por conta da cerveja ou de alguma cena traumática, Lauro adormeceu e, de repente, deu um sobressalto. Levou as duas mãos na boca como se pressentindo algo ruim. Pegou o celular e ligou para a mulher. Chamou, chamou, chamou e nada da Judite atender. Será que ela havia sido raptada? 

                Lauro pensou, pensou, pensou e, então, telefonou para Arlete, melhor amiga da esposa. Tocou, tocou, tocou e, finalmente, o homem ouviu uma voz conhecida do outro lado da linha.

                — Arlete, que bom que atendeu!

                — O que houve, Lauro?

                — Você pode passar o telefone pra Judite?

                — Até poderia, mas...

                — Mas o quê?

                — Ela disse que estava indisposta e voltou pra casa. Ela ainda não chegou?

                — Não! A que horas foi isso?

                — Ah, já tem pelo menos uma hora.

                — Uma hora?

                — Talvez uma hora e meia. Não sei direito.

                — Uma hora e meia?

                — É. Mas calma, homem, que logo, logo ela chega aí.

             Meia hora depois e mais 43 ligações não atendidas, Lauro não teve dúvida. Precisava comunicar o fato à polícia. E foi para lá que se dirigiu.

               Chegou esbaforido à delegacia praticamente vazia. Foi atendido pelo agente Pedrito, que logo comunicou o acontecido ao chefe do plantão, o tarimbado agente Ricky Ricardo. Este, por sua vez, perguntou ao marido desesperado se, por acaso, ele teria a localização do celular da esposa.

                — Sim! Tenho, sim, seu policial! Foi até a Judite que colocou esse negócio aqui no meu celular para sabermos sempre onde o outro está. 

                — Posso dar uma olhada?

                — Sim, claro, claro. Aqui está.

               Ricky Ricardo pegou o aparelho celular do Lauro e, então, logo visualizou onde estaria a possível vítima de sequestro ou, talvez, algo pior. Falou para Pedrito acordar o agente Santana, que roncava no alojamento. Iriam os três e mais o comunicante até o suposto cativeiro. Na delegacia ficaram apenas o delegado Rupereta e o escrivão Gilmarildo, que jogavam mais uma partida de xadrez.

                   Pedrito, assim que estacionou a viatura em frente a uma casa de muro alto, disse:

                      — Ricky, é aqui. O que faremos?

                    — Hum! Como o local é deserto, você e eu vamos entrar, enquanto o Santana fica aqui fora com o senhor Lauro. 

                      Dito e feito, lá foram os destemidos policiais pular o muro, já que temiam que algo pior pudesse ter acontecido à vítima. Isto é, caso ela ainda estivesse viva.

                     Agindo como gatos, Ricky e Pedrito conseguiram esgueirar-se até uma das janelas, de onde estava vindo um som estranho. Estaria Judite tentando escapar ou, pior, estaria sendo vítima de tortura. Os dois sabiam que havia todo tipo de bandido na região e, armas em punho, abriram de sopetão a janela e apontaram as pistolas. 

                    Um grito! Dois pares de olhos arregalados sobre a cama, dois pares de olhos surpresos do lado de fora. Ricky foi o primeiro a falar.

                    — Senhora Judite? Você é a senhora Judite?

                    — Sim.

                    — Desculpe incomodá-la em momento tão... íntimo. Mas é que o marido da senhora está lá fora.

                    — O Lauro?

                    — Sim. Ele pensou que a senhora havia sido sequestrada. 

                  Ricky conversou por alguns minutos com Judite e o dono da residência e, então, pareceu encontrar a solução do caso. Ele e Pedrito retornariam com Lauro para a delegacia a fim de dar tempo da mulher se vestir e voltar para casa. De lá, ela telefonaria para o marido e perguntaria por ele. E foi assim que aconteceu. 

                     Quase uma hora após, Lauro retornou para o lar, doce lar, onde Judite, toda dengosa, o aguardava. E, antes que o casal fosse para o quarto, tiveram um pequeno interlúdio.

                    — Ah, amor, que susto que você me deu!

                    — E você nem imagina o susto que você também me deu, Lauro.

                    — Ah, tudo culpa desse localizador de celular. 

                    — Pois é, meu anjo. Me dá aqui o seu celular, que vou desinstalar essa porcaria.

                    Em seguida, Judite apagou a luz e adormeceu com a consciência mais tranquila do mundo. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Eita, mundo cada vez mais perigoso!" foi publicado por Notibras no dia 9/8/2025.
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sexta-feira, 8 de agosto de 2025

Desavenças no salão de beleza

    

           Marilene gostava de falar que a inveja era abstrata. Não que levasse isso ao pé da letra, mesmo porque, não raro, perdia as estribeiras diante do sucesso alheio, ainda mais se fosse de um desafeto. E o pior deles era Sandro, cabeleireiro de talento inquestionável e língua inexorável.  

          A mulher também era do ofício de Sandro e, pasmem, trabalhava no mesmo salão de beleza. Por conta disso, os dois precisavam manter a linha, apesar das farpas trocadas a todo instante.

          — Amigo, adorei o corte que você fez naquela velhinha.

          — Que velhinha, Marilene? 

          — Ué, aquela que você meteu um chanel.

          — A Luciana nem chegou aos 40 ainda.

          — Não?

          — Não! 

          — Pois é, Sandro, mulher, quando não gosta do corte, envelhece, né?

          — Envelhece mesmo quando resolve pintar o cabelo de verde, né, amiga?

          — Tá falando do quê?

          — Ué, da sua cliente que acabou de sair.

          — Loira! A Flavinha é loira!

          — Jura? Ah, então, sou eu que tô precisando de óculos.

          Nunca chegaram a sair no tapa, mesmo porque sabiam que a ética não poderia ser descartada por completo. Sem contar que a clientela parecia se divertir com aquelas cenas histriônicas. Tanto é que Eulália e Gertrudes, duas das mais tradicionais frequentadoras, fingiam-se inimigas apenas para causar ainda mais intriga, mesmo que fossem vistas conversando animadamente embaixo do prédio que moravam, ali mesmo na Asa Norte. 

          Eulália, que só aceitava ser atendida por Marilene, não desgostava do trabalho do Sandro, mas era adepta do pensamento de que não se mexe em time que está ganhando. Já Gertrudes fazia questão de aparar e tingir as madeixas sempre com Sandro. E as duas faziam questão de marcar exatamente no mesmo horário para, assim, terem a oportunidade de entrar no jogo de disputas dos profissionais.

          — Ih, Gertrudes, você não acha que já tá na hora de deixar de pintar os cabelos de rosa?

          — Que rosa o quê? Sou ruiva natural! Não é mesmo, Sandro?

          — Certamente que é, dona Gertrudes. Não liga, não, que a Eulália é uma despeitada só porque eu não quero atendê-la.

          — Pois, sim, Sandro! Eu não troco a Marilene nem se você viesse pintado de ouro.

          — Obrigada, Eulália. Vamos deixar esses dois pra lá, que, de gente infeliz, o mundo tá cheio.

          E assim eram os dias daqueles dois cabeleireiros, até que, por um desses acasos, eles se encontraram em uma roda de samba na casa de um amigo comum. Trocaram olhares repletos de surpresa e desconfiança, até que se deixaram levar pela voz da Alcione. Desde então, parece que Marilene virou a cabeça do Sandro, enquanto este tirou a colega do sério. 

          Loucos um pelo outro desde então, Marilene e Sandro mantêm o romance em segredo. Afinal, eles sabem que amor, amor, negócios à parte. E a clientela, que adora aqueles imbróglios, não pode ser deixada na mão.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Desavenças no salão de beleza" foi publicado por Notibras no dia 8/8/2025.
  • https://www.notibras.com/site/desavencas-no-salao-de-beleza/

quinta-feira, 7 de agosto de 2025

Não apenas possível, mas provável

    

Jorge não se lembrava da primeira vez que havia entrado no mercadinho da esquina. Sempre lhe parecera algo tão irrelevante, mesmo que fosse o seu apêndice de salvação quando todo o comércio ao redor baixava as portas. Então, era ali que ele se dirigia para comprar algo de última hora. Que fosse uma caixa de fósforo para acender o cigarro que, não raro, o ajudaria a passar mais uma noite de tédio. 

          Nunca se dera ao trabalho de saber nem sequer o nome da proprietária, que, não por acaso, dava nome ao estabelecimento: Dona Célia. Sabia apenas que era uma mulher de meia idade, um pouco acima do peso, cabelos... Castanhos? Talvez loira. Quanto aos olhos, jamais se preocupou em descobri-los cor-de-mel.

          Enquanto aguardava na fila para pagar por um pote de café solúvel, Jorge foi tomado por uma curiosidade incomum. Célia e uma cliente conversavam sobre algo ocorrido ali na quadra, mas que o homem, alheio a quase tudo, nunca ouvira falar.

          — Célia, mas isso é possível?

          — Não apenas possível, mas provável, Solange.

          Jorge demonstrou impaciência, o que não passou despercebido pelas mulheres.

          — O senhor quer passar na frente? 

          — Não, senhora. Não estou com pressa.

          Na verdade, o sujeito não queria perder o desenlace daquela conversa e, por isso, fingiu buscar com os olhos algo na prateleira do caixa. Célia e Solange, sentindo-se à vontade, voltaram à conversa.

          — Mas diga lá, Célia. O que aconteceu.

          — Pois é, amiga, você acredita que era aquilo mesmo que você suspeitava?

          — Não diga!

          — Pois digo e digo mais, mulher!

          Jorge não resistiu e voltou o olhar para as duas, que perceberam e, quase em uníssono, perguntaram.

          — O senhor tem mesmo certeza de que não quer passar na frente?

          — Não, não. Estou bem. 

          As duas mulheres se entreolharam e, em seguida, prosseguiram.

          — Então, era mesmo verdade?

          — Sim! Até parece que você tem bola de cristal, Solange!

          — Se eu tivesse, já teria acertado os números da loteria há tempos.

          — Ué, pensei que você não jogasse.

          — É raro, mas, de vez em quando, faço um joguinho.

          Percebendo que aquela conversa não prosseguia, Jorge arrastou os pés em sinal de protesto. Dessa vez, Solange tomou a frente.

          — O senhor pode passar, se quiser.

          — Não, senhora. Aguardo. Não estou com pressa.

          Solange voltou o rosto para a dona do mercado e, então, voltou a falar.

          — Célia, quanto tá esse bombom?

          — Três reais.

          — Três? Mas não era dois e cinquenta?

          — Era, mas tudo aumentou, minha amiga.

          — E esse doce de leite?

          — Tá dois.

          — Dois?

          — É.

          Jorge, percebendo que não conseguiria saber o final daquela história, tratou de pegar dois maços de cigarro. Pagou a conta e foi embora. Ele sabia que não era somente possível, mas provável que aquela noite seria longa, e não poderia ficar sem fumar, já que a ansiedade estava a mil. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Não apenas possível, mas provável" foi publicado por Notibras no dia 7/8/2025.
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quarta-feira, 6 de agosto de 2025

Lesminha, o gângster e Cauby Peixoto

    

          Mal entrou na sala ao fundo do restaurante na Ceilândia, Cristiano, vulgo Lesminha, percebeu que o ambiente era muito diferente do que imaginara. Mobília simples e gasta, uma imagem de Nossa Senhora presa a um suporte na parede encardida. Ao fundo, um homem de aproximadamente 70 anos, cigarro entre os dedos, óculos de grau, cabelos grisalhos, parecia entretido com o jornal.

          O rapaz aguardou em pé, até que o velho dobrou o periódico e o depositou no canto da poltrona. Tragou duas vezes mais e, finalmente, esmagou o cigarro no cinzeiro ao lado. Mirou Lesminha e, com leve movimento do indicador e do dedo médio, mandou que ele se aproximasse.

          — Hum! Então, Cristiano, o senhor pensou mesmo que iria me roubar e que iria sair impune?

          Olhos arregalados, o sujeito não teve dúvida de que não sairia dali com vida. A mente começou a funcionar ligeiramente para escapar. Mas como? Franzino demais para enfrentar aqueles dois guarda-costas, verdadeiros armários. O gatuno também não tinha fama de ser rápido o suficiente para dar o pinote. Não à toa, carregava a sugestiva alcunha de Lesminha. 

          Enquanto matutava, Cristiano foi interrompido pela voz carregada de alcatrão.

          — Você tem algo que aprecio, Cristiano.

          O jovem voltou seus olhos argutos para o idoso. Como é que é? Afinal, o que o larápio teria que aquele gângster apreciava? Não foi necessário perguntar.

          — O seu talento para entrar e sair de locais sem ser percebido é algo incomum. 

          Sentindo-se o dono da cocada preta, Lesminha completou as palavras do dono daquele lugar.

          — Desculpe, seu Otávio, mas o senhor se esqueceu de mencionar o quão bom sou pra abrir cofres.

        — Hum! Qualquer chaveiro meia-boca abre cofres, Cristiano. Mas não conheço nenhum que consiga entrar e sair de um local sem ser notado. Essa é a sua sorte.

          — Sorte? Como assim?

          — Cristiano, Cristiano, se eu conhecesse alguém com esse seu talento, nem estaríamos tendo essa conversa. 

          Lesminha engoliu em seco. Ele bem sabia que isso significaria que aqueles dois brutamontes já teriam dado cabo dele. Deu-se por convencido e, então, não teve dúvida de que, a partir daquele momento, iria trabalhar para o maior chefe de organização criminosa da região. 

          — Cristiano, só não vá cometer o mesmo erro, pois não serei tão benevolente da próxima vez. Neste ramo, devemos ser incrivelmente bons que nem Cauby Peixoto, mas jamais parecer com ele. Discrição é tudo para não sermos notados.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Lesminha, o gângster e Cauby Peixoto" foi publicado por Notibras no dia 6/8/2025.
  • https://www.notibras.com/site/lesminha-o-gangster-e-cauby-peixoto/