sexta-feira, 27 de junho de 2025

Os peculiares sentidos de vovó

Vovó tinha lá seu modo peculiar de dizer as coisas, como se soubesse que sentimentos não vêm em caixinhas e, caso viessem, ainda assim se misturariam através das frestas. Talvez por isso, era cozinheira afamada na vizinhança, que, vez ou outra, batia à sua porta para visita de última hora justamente por volta das quatro horas da tarde, quando, invariavelmente saía do forno quitutes de aromas que inebriavam a todos. 

          Mimi, a vira-lata malhada que vivia por ali, era a primeira a chegar. Ficava sentada diante do portão da casa da minha avó, ciente de que, não tardaria, receberia seu quinhão.

          — Mimi, sua danadinha! Tá aqui o seu pão de queijo. Mas cuidado, que acabou de sair do forno agora. Não vá queimar a língua!

        Quem passava não deixava de observar a cena. Um ou outro, mesmo que desconhecido, se atrevia a puxar assunto. Quem sabe, assim, aquela senhora de olhos esverdeados e semblante acolhedor acabaria por lhe ofertar aquela delícia? E não é que, invariavelmente, cada um alcançava seu intento? Minha avó sempre enchia a cesta de vime com quantidade suficiente para esses imprevistos tão corriqueiros.                

Lembro-me de um domingo como se fosse hoje. Estava com minha avó na cozinha, enquanto ela preparava mais um dos seus imperdíveis bolos de chocolate. Aliás, toda vez que eu a ajudava, mesmo que apenas mexendo a massa com a colher de pau ou, então, pegando os ingredientes nos armários, a matriarca da família fazia questão de dizer para todos que aquela iguaria havia sido feita por nós duas.

          — Se não fosse a Aninha, certamente o bolo teria solado. Ainda bem que a minha neta estava aqui para me ajudar. 

          Seria vovó uma grande mentirosa? Prefiro dizer que era uma artista, que sabia como ninguém aproveitar cada instante da vida. Sem contar que, invariavelmente, descobria exatamente a hora em que suas receitas maravilhosas ficavam prontas.

          — Aninha, escuta esse cheirinho!

  • Nota de esclarecimento: O conto "Os peculiares sentidos de vovó" foi publicado por Notibras no dia 27/6/2025.
  • https://www.notibras.com/site/os-peculiares-sentidos-de-minha-avo-e-os-quitutes-que-faziam-fila-em-sua-porta/

quinta-feira, 26 de junho de 2025

O caso da lanterna desaparecida

    

               Mais um plantão na delegacia onde o agente Santana é lotado. Queixumeiro que é, já entrou no recinto soltando impropérios ao vento, como se alguém fosse dar bola para o que saía da sua boca. Mesmo assim, reclamava, reclamava, reclamava e, caso tivesse oportunidade, reclamava novamente. 

            Para sua surpresa e desgosto, Santana percebeu um policial estranho na área. Tratava-se do Deyvystony, que acabara de tomar posse na polícia com todos os ípsilons possíveis e, a partir de então, comporia a equipe de plantão comandada pelo experiente agente Ricky Ricardo, que já contava com o sagaz agente Don Pedrito, o escrivão Bernardino, o delegado Rupereta e, é óbvio, o rei da preguiça, o intragável Santana. 

            Sem papas na língua, o desagradável agente não perdoou quando soube o nome do novo colega.

            — Hum! Deyvystony?

            — Sim.

            — DEY-VYS-TO-NY?

            — Sim, isso mesmo.

            — Foi seu pai ou sua mãe que roubou todos os ípsilons do dicionário?

            Para não entrar em atrito logo no primeiro dia de trabalho, Deyvystony levou a provocação numa boa. Abriu aquele sorriso de anúncio de pasta de dente, o que deixou o Santana contrariado. Antes tivesse dado uma resposta atravessada, já que o velho policial não suportava gente bem-humorada e, pior, de bem com a vida. 

            O plantão naquele dia foi corrido. Algumas diligências foram feitas a fim de combater a criminalidade na região. Nisso, Deyvystony acabou perdendo a sua lanterna. Ele tinha quase certeza de que a havia deixado cair na viatura. E lá foi ele tentar encontrá-la, quando se deparou com o Santana anotando a quilometragem rodada.

— Santana, você viu uma lanterna?

            — Lanterna?

            — Sim. Acho que deixei cair aqui no banco de trás.

            — Não vi.

           Sem lograr êxito em sua busca, o novato comunicou o fato ao Ricky Ricardo, que transmitiu ao delegado Rupereta e aos outros membros da equipe. 

            — Ricky, coloque isso no grupo do WhatsApp.

            — Pode deixar, doutor!

           "Caso alguém encontre uma lanterna da marca Invictus, cor preta, com funções luz alta, luz baixa e estrobo, favor entregá-la ao agente Deyvystony."

            Mensagem postada, Ricky Ricardo, já fechando o seu turno, começou a se despedir dos colegas. Mas eis que, para sua surpresa, algo fez com que ele olhasse para o bolso de trás da calça do Santana, que já estava de saída na porta da delegacia. Um pisca-pisca incessante.

            — Alto lá, Santana! 

            — O que foi, Ricky?

            — Acho que a lanterna do Deyvystony entrou sem querer no bolso da sua calça. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "O caso da lanterna desaparecida" foi publicado por Notibras no dia 26/6/2025.
  • https://www.notibras.com/site/o-intrincado-caso-da-lanterna-desaparecida/

quarta-feira, 25 de junho de 2025

Entre roscas e parafusos

    

Não tem a Lurdinha? O quê? Não conhece? Não é possível! Então, senta aí, que lá vem uma história, no mínimo, curiosa. 

          Maria de Lourdes Gomes de Almeida, 48 anos, mineira de Visconde do Rio Branco, radicada em Brasília desde o início do século XXI, após rodar muito por este Brasil de dimensões continentais. E foi na capital que conheceu Luciano dos Santos Rodrigues, carinhosamente apelidado de Lulu, pacato comerciante do ramo de parafusos. 

          Paixão, paixão, parece que não foi o caso, ainda mais por parte da moçoila. Quanto ao Lulu, é até possível que, em determinado momento, tenha existido, mas que logo se perdeu por conta da brusca queda de vendas no comércio. Foi como se o mundo tivesse deixado de consumir parafusos, justamente algo que mantém as partes unidas firmemente, pelo menos até que a rosca espane. Se espanou ou não, ninguém sabe, ninguém viu. 

          A despeito dos motivos que levaram a tamanho desacordo entre parafusos e roscas, a verdade é que, pouco antes disso acontecer, lá estava o casal em concorrida casa noturna do Distrito Federal. De tão afamada, havia até lema conhecido dos frequentadores: "Aconteça o que acontecer, o acontecido não pode vazar."

          Se vazou ou não, é algo incerto. Mas eis que, justamente naquela noite, Lurdinha parecia estar com a corda toda nos pés. Já Lulu, não estava para samba e, então, ficou o tempo todo sentado diante de latinhas e latinhas de cerveja. Por conta disso, vez ou outra, lá ia a mulher para a pista de dança gastar tanta disposição. E como dançou! Dançou tanto, que perdeu a conta de tantas vezes que flexionou os joelhos naquela infinidade de sobe e desce. 

          Finalmente, Lurdinha atendeu aos suplicantes pedidos do marido para irem embora. O casal, mal entrou em casa, se sentou no sofá da sala. Lulu, talvez empolgado com a pele trigueira da mulher, a beijou no pescoço, que, sutilmente, o repeliu.

          — Ah, Lulu, outra hora. Dancei tanto, que tô toda espanada. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Entre roscas e parafusos" foi publicado por Notibras no dia 25/6/2025.
  • https://www.notibras.com/site/rosca-espana-parafuso-afrouxa-e-beijos-e-caricias-ficam-para-uma-outra-hora/

terça-feira, 24 de junho de 2025

Matias, o recruta

    

Matias, por conta dessas desgraças que acontecem rotineiramente na vida de pobre, foi convocado para servir o exército. Que lástima, o jovem pensou, mas foi lá enfrentar mais esse revés. Lavou latrinas atrás de latrinas, teve que deglutir aquela gororoba para não morrer de inanição, escutou as mais descabidas bravatas dos superiores e, por um triz, não tacou a mão na fuça de um sargento, que se achava o rei da cocada preta. 

          Órfão de mãe, o jovem aproveitava as folgas para fazer companhia ao pai, que morava em uma chácara em Padre Bernardo, município próximo ao Distrito Federal. No entanto, naquele dia, eis que Matias constatou que estava sem dinheiro para comprar a passagem de ônibus. Não havia jeito e, então, o rapaz decidiu perambular por Brasília, onde a única coisa que poderia gastar, além da sola de sapato, era saliva para tentar arrumar uma namorada endinheirada. 

          Do quartel até a Torre de TV era uma distância considerável, mas nada pior do que já enfrentava no dia a dia. Desse modo, lá foi o recruta em busca da sua princesa milionária, mesmo que a região central da capital não fosse o local mais apropriado para encontrá-la. Sem contar que, por conta do serviço obrigatório, o gajo não podia mais cultivar o bigodinho digno dos galãs dos antigos filmes da Atlântida. 

          Fazer o quê? Resignado, Matias, apesar do corpo descarnado pelos abusos sofridos, era jovem o suficiente para possuir lá alguns atrativos. Sem contar que seu rosto não era de todo desagradável. Havia um charme ali, mesmo que coberto por tantas agruras impostas pelo pauperismo.

          Longe da estampa de galã de novelas, Matias não se intimidou, já que estava acostumado a enfrentar desafios, quase todos perdidos, mas que, de algum modo, não o faziam desistir de continuar respirando, mesmo diante da iminente derrota. Quem visse o rapazola naquele dia nem suspeitaria que ali estava alguém carregado de confiança. Puro blefe, é verdade, pois isso é, muitas vezes, a única coisa que os miseráveis conseguem depositar em seus bolsos furados. 

          Assim que chegou à Torre de TV, passeou pela feira de artesanatos apenas para estudar o ambiente. Ficou encantado por uma arara esculpida em madeira, que atraía a atenção de outras pessoas. Deu mais alguns passos e, finalmente, resolveu se sentar no gramado, de onde observou gente em grupo, gente lendo livro, gente de mãos dadas chupando picolé. gente aguardando o elevador para ter visão privilegiada da capital. 

          Sol a pino, a sede bateu. Matias, sem um mísero centavo para comprar uma garrafa d'água, percebeu que, logo ali, havia uma quantidade do líquido vital capaz de saciar uma cáfila. Não teve dúvida e se dirigiu à Fonte da Torre de TV. 

          Chegou, sentou-se à beira, formou uma concha com as mãos e, em movimentos discretos, bebeu a água que desejou. E tudo de graça. O rapaz suspirou de alívio, até que percebeu que uma senhora de cerca de 80 anos o observava. A princípio desconcertado por ter sido descoberto, Matias se sentiu reconfortado com o sorriso acolhedor da velha.   

           A mulher se aproximou e, confiante que era, estendeu a mão.    

           — Antônia.

           — Matias.

           — Prazer, Matias. O que faz por aqui?

           — Vim conhecer.

           — Não é daqui?

           — Não. Sou de Padre Bernardo.

           — E cadê a sua namorada?

           — Num tenho namorada, não, dona.

           — Antônia. Não sou dona de nada.

           — Desculpe. Antônia.

          Conversa vem, conversa vai, eis que a nova amiga do Matias resolveu convidá-lo para almoçar. Diante da perspectiva de degustar algo certamente melhor do que lhe era oferecido no quartel, ele não se fez de rogado. E lá estavam aqueles dois dentro do Fusca da Antônia a caminho de um tradicional restaurante na W3 Norte. 

         Carne de sol, aipim frito, arroz, feijão-de-corda, refrigerante e, o melhor, tudo pago por sua mais nova amiga. Matias, saciado, não acreditava que a sorte estava ao seu lado. É verdade que não havia conhecido uma princesa endinheirada, mas, ao menos, conheceu uma senhora que parecia ser caridosa diante da flagrante pobreza do jovem. 

       Após pagar a conta, Antônia levou Matias até o quartel. Automóvel estacionado, o soldado estendeu a mão em agradecimento, quando foi surpreendido por um inesperado beijo na boca. Sem reação, o rapaz não teve escolha a não ser retribuir o afeto. Beijaram-se longamente até que, quase sem fôlego, os enamorados se despediram. 

        Do portão do quartel, Matias se virou e acenou com as mãos para Antônia, que ligou o Fusca e foi embora. De barriga cheia, o recruta aprendeu mais uma lição de vida: não existe almoço grátis.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Matias, o recruta" foi publicado por Notibras no dia 24/6/2025.
  • https://www.notibras.com/site/matias-recruta-liso-almoca-bem-e-paga-com-um-beijo/

segunda-feira, 23 de junho de 2025

Alice e as fases do relacionamento

   

Alice era afeita a festejos, ainda mais porque roubava a atenção para si, que nem flor que atrai abelhas. A plateia se divertia com as tiradas da mulher, enquanto Ariosvaldo, o marido, esboçava leve sorriso nos lábios orgulhosos, apesar de já saber de cor e salteado praticamente todas as histórias contadas pela amada. 

          Pois era aniversário de Júlia, uma sobrinha do casal. Recém-separada, a moça, logo após apagar as 23 velinhas, foi se sentar ao lado da tia. Seus olhos, tristonhos, pareciam carregar a culpa pelo desfecho do casamento. 

          Boba que não era, Alice logo percebeu a aflição nos olhos da parenta. Acolheu a sobrinha com um aconchegante abraço. As lágrimas escorreram pela face trigueira da jovem, que, não tardou começou a soluçar.

          Júlia havia se casado aos 20, após um namoro de dois anos. Por conta de compromissos firmados em idade tão tenra, surgiram teses de doutorado de mesa de bar. Rosalva, a mãe, foi a primeira a falar.

          — Minha filha, você se casou muito cedo. Aliás, você e o Mauro são tão jovens, que precisam viver a vida antes de inventar esse negócio de se comprometer com alguém.

          Todos pareceram concordar com o pensamento de Rosalva. Quer dizer, quase todos, pois Alice torceu os lábios para a teoria da irmã.

          — Bobagem.

           — Bobagem?

           — Isso mesmo, Rosalva. Bo-ba-gem!

           — Hum! Então, o que é, sabichona?

          — Rosalva, minha irmã querida, se você tivesse percebido o jeito de olhar entre a sua filha e o seu genro, iria saber.

           — Não tô te entendendo, minha irmã tão amada.

          Alice, então, tomou a mão da sobrinha e, em seguida, disse para os curiosos, que já rodeavam a mesa.

            — Dois anos de namoro, três de casamento. Pois é isso.

            — Isso o quê, Alice?

            — Rosalva, os cinco anos é a fase do fim da paixão. 

          Júlia abraçou forte a tia, como se concordando com as suas palavras. Nisso, Ariovaldo, talvez com uma pulga atrás da orelha, cutucou a esposa, com quem já estava casado há quase três décadas.

            — Alice, e a gente tá em qual fase?

            — Ariosvaldo, meu amor, a gente já tá na fase do ódio.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Alice e as fases do relacionamento" foi publicado por Notibras no dia 23/6/2025.
  • https://www.notibras.com/site/alice-e-as-muitas-fases-de-um-relacionamento-incluindo-inclusive-aquela-do-odio/

domingo, 22 de junho de 2025

O improvável Dia dos Namorados da Maria Tereza

        

        Dia dos Namorados, mesmo após anos de casados, era algo a se comemorar, segundo dizia Maria Tereza ao marido, Julião. Entretanto, a mulher, no seu íntimo, pensava que, quando jovem, tudo era feito com mais entusiasmo, como se as datas festivas tivessem mais valor. Para comprovar tal pensamento, bastava rememorar as comemorações de há duas, três décadas, quando jantares à luz de vela eram tão costumeiros. 

          Com o tempo, a graça parece que foi fazer uma viagem só de ida. Se bobeasse, apenas um breve beijo na testa e uma troca de fatias amanteigadas de pão dormido. Afinal, quem se importa com essas datas, a não ser os tolos e o comércio?

          — Não, não e não, mamãe!

          — Hum! Você fala isso porque mal saiu da lua de mel, Silvana.

          — Pois a senhora e o papai precisam manter a chama do amor acesa.

          — Que chama o quê!? Aqui não tem nem mais faísca.

          — Ah, mamãe! Pois vamos comemorar todo mundo junto! 

          — Melhor você comemorar com o seu marido, que vou ficar com o meu velho aqui em casa mesmo.

          — Que nada! Vamos todos sair para jantar fora. Tá decidido e pronto!

          Sem disposição para entrar em atrito com a caçula, Maria Tereza aceitou o convite, ainda mais porque andava com atrito com o primogênito, Luciano, que há tempos era acometido pelos males do alcoolismo, inclusive com acessos de fúria, que, até então, eram apaziguados pelos familiares. 

          Pois bem, quando a noite ainda era uma criança, Silvana e o esposo, Rogério, chegaram à casa dos pais. Maria Tereza, sempre prática, já estava arrumada, enquanto Julião parecia indeciso se colocava ou não gravata.

          — Papai, o senhor já usou gravata durante tantos anos pra ir trabalhar. Vá sem, fica até mais charmoso. 

           — Você acha mesmo, Maria Tereza?

           — Acho, não. Tenho certeza!

           Assim que os dois casais estavam para sair, eis que a campainha tocou. Julião abriu e se deparou com o filho, garrafa na mão, totalmente embriagado. 

            — Luciano, meu filho, o que houve?

            — Você não é meu pai, seu falso!

            — Não fale assim com o seu pai, Luciano!

            — A senhora nunca me amou. Sempre preferiu a Silvana.

            — Ô, Luciano, estamos de saída. Depois você aparece pra torrar a nossa paciência, tá?

            — Ah, Silvana, pra você é fácil, né? 

          Do bate-boca, a coisa passou para a ameaça de agressão física. Luciano, quebrou a garrafa no portal e apontou o gargalo para todos. Maria Tereza, a única com autoridade em relação ao filho, não se intimidou.

           — Larga isso, Luciano!

           — Vem, vem, que a senhora vai ver o que vai acontecer.

           — Calma, aí, Luciano!

           — Sai da frente, Rogério, se não vai sobrar pra você também. 

          Sem perda de tempo, Silvana telefonou para a polícia, que compareceu ao local com certa rapidez. Luciano foi desarmado, algemado e colocado no cubículo do camburão. Julião, abalado com a prisão do filho, ainda quis dissuadir a esposa e a filha para deixarem aquilo para lá, mas foi prontamente censurado.

           — Julião, meu amor, daqui a pouco o nosso filho se torna um assassino.

           — Mas, Maria Tereza...

           — Pai, por favor, o senhor viu o que quase aconteceu. 

          Diante dos argumentos, o velho não teve escolha a não ser acatar a decisão das mulheres da família. Entretanto, preferiu não acompanhar os policiais até a delegacia. Tal tarefa coube à esposa, à filha e ao genro.

          Um turbilhão de sentimentos tomou conta de Maria Tereza, apesar de tentar encarar a situação com naturalidade. Ela sabia que prisão não iria resolver o grave problema de alcoolismo do filho, mas, tentando não apenas se proteger, como também o marido e a filha, carregou consigo a certeza de estar fazendo o melhor naquele momento. Ao menos, por algum tempo, estariam a salvo.

          O procedimento na delegacia adentrou a madrugada à frente e, quando viram, já estava perto das 3h. E, enquanto o delegado tomava o depoimento de Rogério, mãe e filha, que já haviam sido ouvidas, conversavam na sala ao lado.

           — A senhora tá bem?

           — Como posso estar bem, minha filha?

           — É.

          — E pensar que a nossa comemoração do Dia dos Namorados pudesse ser assim, hein?

          — Hum! Nem me fale, mamãe.

          — Pelo menos, você está com o seu namorado. Pior fiquei eu, que o meu namorado está em casa e, provavelmente, roncando. Sem falar que o meu filho vai ver o Sol nascer quadrado logo mais. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "O improvável Dia dos Namorados da Maria Tereza" foi publicado por Notibras no dia 22/6/2025.
  • https://www.notibras.com/site/o-improvavel-mesmo-tendo-ficado-para-tras-dia-dos-namorados-da-maria-tereza/

sábado, 21 de junho de 2025

Artimanhas do coração

          Sabe aquele momento em que você não está preparada para as artimanhas do coração? Ou porque acabou de tomar um fora ou, então, resolveu dar um tempo nessas coisas de relacionamento sério ou, pode até ser, finalmente pôs em prática o monólogo com o seu ser interior. Mas eis que, do nada, você toma aquele susto bem na faixa de pedestre.

          Foi por pouco! A tragédia só foi evitada por um desses acasos quando o pé que está sobre o acelerador, antes dos olhos arregalados mandarem aviso para o cérebro, resolve pisar no freio. Brecou! 

          O sujeito desceu do carro e veio falar comigo. Perguntou se eu estava bem.

          — Bem? Como assim? Você tá louco?

          — Desculpe, minha senhora?

          — Você quase me matou!

          Ergui o dedo médio para o tipo que quase me atropelou e terminei de atravessar a rua. Entrei em um boteco e pensei em pedir algo quente, mas não é de bom tom começar a beber pouco depois de ter tomado o café da manhã. Pensei em pedir um refrigerante, mas, do nada, me deu aquela vontade de viver e optei por uma água. 

          — Posso?

          Para minha surpresa, o motorista apareceu ao meu lado.

          — Posso? - ele repetiu.

          Fiquei muda, mas consenti com um leve aceno de queixo.

          — Sei que não começamos bem, mas fiquei preocupado com a senhora.

          — Senhora? Tu é mais velho que eu no mínimo, no mínimo... Sei lá! Uns cinco anos.

          — Desculpe. Você?

          Foi aí que reparei no sorriso do sujeito. Que sorriso de anúncio de pasta de dente.

          — Cleide.

          — Lauro.

          Além de dentes lindos, o cara era bom de papo. Tanto é que me fez quebrar a promessa de ficar sozinha até o Natal. Saímos no final de semana seguinte e, por pouco, não aprofundamos a relação naquela noite. Não que eu seja contrária a isso, mas é que fiquei com um pé atrás com aquela gentileza toda.

          Seria aquele homem um serial killer? Pior, seria ele casado? Nem uma coisa nem outra. Lauro é levemente estrábico, o que lhe confere certo ar de mistério. 

          Como ia dizendo, de vez em quando, o coração nos prega uma peça. Quando a gente menos espera, acontece. E foi assim que conheci o meu marido. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Artimanhas do coração" foi publicado por Notibras no dia 21/6/2025.
  • https://www.notibras.com/site/quando-uma-freada-brusca-de-carro-leva-ao-altar/

sexta-feira, 20 de junho de 2025

Crianças são crianças

             Aquelas duas meninas com cara de buldogue se divertiam demais com a irmã caçula, que ainda não completara dois anos. Era nítido, para os que olhavam aquele trio, que a felicidade havia encontrado uma confortável poltrona e, sem qualquer cerimônia, se instalado ali. E haja fôlego para tantas brincadeiras.

          Era um corre-corre para todos os lados, como se o mundo lhes pertencesse. E quem ousaria discordar? Capaz de ficar com cara de tacho, diante de tamanha alegria das espoletinhas. 

          Os pais, sentados em um banco de cimento, observavam aquela algazarra sem hora para acabar. Os dois se entreolhavam e sorriam, admirados que estavam com tanta energia.

          — Como pode?

          — Olha! Olha!

          — Gente, o que é isso?

          — Que espoletas!

          — Não param nunca.

          — Nunca.

          — E como gritam!

          Gritavam em linguagens distintas, mas que se encontram nas trilhas das brincadeiras sem fim. Afinal, crianças se entendem, não importa a espécie. São crianças, e é o que são.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Crianças são crianças" foi publicado por Notibras no dia 20/6/2025.
  • https://www.notibras.com/site/nao-importa-a-especie-elas-sempre-se-entendem/

quinta-feira, 19 de junho de 2025

Iranilde e a intolerância à lactose


           Iranilde há tempos sabia que sofria as agruras da intolerância à lactose, inclusive com diagnóstico médico. No entanto, de vez em quando, não resistia e, aí, a coisa desandava. A barriga ficava abarrotada de gases, que eram expelidos sem a menor cerimônia. Não raro, a mulher precisava correr para o banheiro antes que fosse aquele vexame em praça pública. 

          Para evitar esses perrengues, a mulher, quase sempre, seguia fielmente a dieta, o que garantia o bom funcionamento do trato digestório. O problema era quando o diabinho da tentação dava um nó tático no anjinho da razão. Iranilde até fingia certa tenência, o que poderia enganar os mais desavisados, até que ela tentava enganar a si mesma, como se apenas uma beliscadinha não fosse fazê-la entrar em apuros. Só que, de beliscadinha em beliscadinha, o que estava sob controle se tornava calamidade.

          Maria Alice, sobrinha e afilhada de Iranilde, havia sido convidada para a festa de aniversário de uma das colegas da escola. No entanto, os pais precisaram viajar às pressas e, então, a tarefa de levar a menina ficou a cargo da tia. Aliás, tia e madrinha, que, segundo consta nos anais das famílias mais tradicionais, vale mais até do que avó. 

          Como a menina não poderia ficar sozinha, Iranilde assumiu a tutela durante o final de semana. Tudo parecia pura felicidade, já que as duas se davam muito bem. Por isso mesmo, Maria Alice adorou a ideia de a madrinha levá-la para a festinha. 

           Assim que Iranilde e Maria Alice chegaram, a garota correu para brincar com as outras crianças. Enquanto isso, a tia foi convidada para se sentar à mesa de alguns adultos. Educadamente, recusou um copo de cerveja, pois, responsável que era, iria dirigir. Mas aceitou de bom grado refrigerante e salgadinhos sortidos. A empadinha, então, estava uma delícia. 

          O bate-papo também não estava ruim, o que ajudou a fazer com que o tempo voasse. E, não tardou, logo chegou a hora de cantar parabéns para a Verônica, a aniversariante. Nove anos, a mesma idade da Maria Alice. 

          Depois de assoprar as velinhas, o enorme bolo de chocolate, com aquelas coberturas cremosas e recheado de doce de leite, foi servido em generosas fatias aos convidados. Iranilde até tentou dizer não, mas eis que aquele tal diabinho da tentação deu uma bicuda no anjinho da razão. Da primeira dentada, não tardou, a mulher já estava no terceiro pedaço. Só não lambeu os dedos porque estava na frente de adultos, mas vontade não faltou. 

          Final de festa, Maria Alice foi passar o resto do sábado e o domingo na casa da tia. E, assim que estacionou o automóvel, Iranilde apertou o passo, sendo seguida pela sobrinha, que imaginou que aquilo fosse mais uma brincadeira. Que nada! Mal abriu a porta do apartamento, a mulher correu para o banheiro, enquanto a menina, da sala, teve que ouvir todos aqueles estrondos. 

            Quando os pais chegaram para buscar a Maria Alice, foi aquele festival de beijos, abraços e sorrisos. 

          — E aí, minha filha, como foi o final de semana com a sua tia?

          — Mamãe, a tia Iranilde é muito legal!

          — E como foi a festa?

          — Foi show! 

          —  E o bolo era de chocolate?

        Maria Alice, que estava no colo da Iranilde, sorriu aquele sorriso de menina perspicaz.

          — De chocolate e dor de barriga, né, titia?

  • Nota de esclarecimento: O conto "Iranilde e a intolerância à lactose" foi publicado por Notibras no dia 19/6/2025.
  • https://www.notibras.com/site/iranilde-coitada-sofre-com-intolerancia-a-lactose/