Eis que estava aqui no aconchego da sala admirando a réplica quase original de "Os Lírios", famoso quadro de Van Gogh, quando a minha esposa, a Dona Irene, me despertou do transe: "Amor, você acredita que o Caio Fernando Abreu morou aqui no nosso apartamento?". Levo alguns míseros segundos para concatenar as ideias aqui na cachola, que ainda estava presa a 1889, ano em que aquele Vincent, em momento de profunda inspiração, saiu do amarelo e atiçou a tela com verde e azul.
—
Sério?
—
Sério!
—
Não acredito!
—
Pois acredite!
Antes
de prosseguirmos nessa discussão, que já bem sei quem vai vencer, haja vista
todas as anteriores e, certamente, as futuras, minha mulher me esfrega na cara
a certidão vintenária.
—
Tá vendo?
—
O quê?
—
Aqui, ó, seu bocó!
Como
não encontro o nome do Caio Fernando, a Dona Irene me explica que ele havia
comprado o apartamento no nome dos pais. Aliás, até quem vendeu a propriedade
para o famoso escritor foi o Leozinho, que ainda mora aqui no prédio. Mesmo
assim, ainda era difícil acreditar nessa história, por mais que eu desejasse.
Isto é, até que a minha esposa, em um gran finale, me mostra uma
fotografia do Caio Fernando aqui na nossa sala, posando próximo à janela. Touché! Não
é que ela estava certa?
Volto
a olhar o Van Gogh preso à parede, mas a minha mente viaja até a crônica
"A Morte dos Girassóis", do Caio Fernando. Apesar de não ser um
grande conhecedor de sua obra, já li e reli esse belo texto algumas vezes ao
longo dos anos. Meu devaneio me transporta para uma suposta relação entre a
crônica e o quadro. Nada a ver ou, ao menos, não consigo vislumbrar qualquer
paralelo entre os dois. Insisto, mas logo deixo de lado tal tese.
Algo
me perturba. Lembro que o Caio Fernando e eu ocupamos o mesmo espaço, mesmo que
em épocas distintas. Será que ele escreveu algum conto ou crônica ou sei lá o
quê cá onde estou? Bah! Aqui estou eu, carioca, me fazendo de gaúcho, tamanha a
perplexidade que me domina.
Inquieto,
preciso tomar um ar. Convido minha amada para beber um café na esquina. Já na
portaria, olho a Getúlio. Em frente, o movimento no Bar do Vavá anuncia que
hoje tem Colorado.
- Nota de esclarecimento: A crônica "Caio Fernando Abreu e o Van Gogh da minha mulher" foi publicada por Notibras no dia 25/2/2024.
- https://www.notibras.com/site/caio-fernando-abreu-e-o-van-gogh-de-dona-irene/
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