Antenor, gaúcho de São José dos
Ausentes, poderia muito bem andar de camiseta nos invernos de Porto Alegre.
Mas, não. Tinha lá seus hábitos e pudores. Tradicional que era, carregava-os
consigo junto à antiga cuia de porongo e um tanto de erva suficiente para uma
invernada no lombo de um cavalo crioulo na lida com o gado. Não possuía muito
estudo, mal assinava seu nome, mas palavra dada era no fio do bigode.
O homem, assim que chegou à casa da
filha na capital, foi apresentado ao Solano, o genro, herdeiro de conceituada
família da indústria paulista. Sem preocupações financeiras, o rapaz bem que
poderia se dar ao luxo de nunca ter que acordar antes do meio-dia. Que nada,
logo se meteu nos negócios da parentada e tomou gosto pela coisa.
Olho no olho, Antenor cumprimentou o
marido da filha. Diante daquele homem feito, o velho chegou a imaginar que
estava apertando a mão de um menino de não mais de seis anos. Solano, por sua
vez, acostumado com a lida de gente, procurou disfarçar o incômodo provocado
por aqueles calos. Diferenças à parte, não se notou agrura entre os dois
tipos.
Na manhã seguinte, Antenor se
levantou mais cedo do que o dia. Ainda sonolento, foi até a cozinha, colocou um
pouco de erva na cuia, despejou a água quente, um hábito desde sempre. Espetou
a bomba enquanto caminhou até a sacada do amplo apartamento no Menino Deus.
Sentou-se numa das cadeiras, nenhuma com pelego. Tomou o mate até o primeiro
ronco. Agora, sim, Antenor se sentiu acordado.
Tentou olhar ao longe, mas o edifício
bem em frente o impediu. Não havia horizonte para perder de vista por ali.
Pensou em sair para dar uma volta, mas logo deixou tal ideia no canto. Sem a
companhia de Poncho, a montaria de anos, talvez não soubesse retornar. Decidiu
esperar alguém sair da cama. Que fosse a filha, que na certa lhe faria
companhia pelo resto da manhã.
Entretido em pensamentos vazios, não
percebeu quando alguém abriu a porta do apartamento. Era Iranilde, a empregada.
Ciente de que os patrões dormiam até mais tarde, entrou na ponta dos pés e foi
até a cozinha. Gaúcha que era, sentiu o cheiro tão familiar da erva. A mulher
farejou até encontrar aquele homenzarrão. Quem seria? Curiosa, aproximou-se e,
antes que pudesse se anunciar, foi notada por Antenor, que logo lhe ofereceu o
mate, aceito de pronto e bom grado.
O par de última hora trocou algumas
palavras, enquanto o porongo, de tempo em tempo, era compartilhado. Aquela era
a primeira vez, desde que havia chegado a Porto Alegre, que Antenor sentiu
alguma familiaridade com o ambiente. Iranilde, por conta das tarefas que ainda
lhe aguardavam, levantou-se e retornou à cozinha, sendo acompanhada pelo
homem.
Mesa posta, não tardou, lá estava a
patroa ao lado do marido. Tomaram o café da manhã, enquanto Antenor jogava fora
a erva usada. Trocaram olhares e poucas palavras, como se estranhos fossem.
Talvez tentando se aproximar, a mulher puxou conversa com o velho.
— Pai, o senhor acredita que o Solano
ainda não tomou mate?
Antenor, homem simples que era, nem
por isso deixou de sorrir debaixo do bigode comprido, que lhe tapava metade dos
lábios. Tratou logo de preencher a cuia com a erva e despejar a água quente.
Bomba devidamente posta, entregou o porongo ao genro.
— Não mexa na bomba.
— Bomba?
— É o canudo, meu bem.
Solano, no primeiro gole, queimou o
céu da boca e fez cara feia com o amargor do mate. Não querendo fazer desfeita
perante o sogro, engoliu tudo sem reclamar. Em seguida, tentou devolver o
porongo ao sogro, que insistiu.
— Beba até a cuia roncar.
Solano, apesar de querer cuspir tudo
aquilo, entendeu o recado e bebericou todo o mate. Seu corpo, não acostumado
com aquela quantidade de cafeína, começou a tremer. Antenor, bugre até o talo,
nem por isso deixou de admirar o genro. Estava aprovado.
Os dias se seguiram sem quase
animosidades. Solano até que passou a gostar da presença do sogro e, não raro,
o instigava a contar sobre a vida no campo. Antenor, amistoso, aceitava aquela
aproximação. O jovem até comprou cuia nova, mas que ficou em desuso. Não se
muda tradição de uma hora para outra, ainda mais diante de tamanha autoridade
sobre o assunto.
Naquela manhã, uma manhã como as
demais, lá estavam Antenor, a filha, Solano e Iranilde na cozinha. O velho, que
acabara de preparar mate, chamou a empregada a se sentar ao seu lado. O homem
tomou seu gole e, em seguida, passou a cuia para Iranilde, que, após beber, a
repassou para a patroa. Esta pegou seu quinhão de mate e entregou o porongo ao
marido.
Solano, já familiarizado com
chimarrão, tomou um, dois, três goles. O rapaz, ainda com a cuia na mão, não
percebeu o olhar de desaprovação do sogro. A esposa até pensou em lhe chamar a
atenção, mas foi precedida pelo pai.
—
Ouvi falar de um lá em São José dos Ausentes que morreu com um porongo na mão.
- Nota de esclarecimento: O conto "Antenor e o chimarrão" foi publicado por Notibras no dia 19/2/2024.
- https://www.notibras.com/site/genro-aprende-sob-olhar-severo-que-cuia-e-de-mao-em-mao/
Bom dia. Conto bem interessante e criativo. gGstei de conhecer algumas palavras por mim nunca usadas.
ResponderExcluirVi a indicação do seu blog no Boteco das letras.
Vim conhecer. Norma
Bom tarde, Norma! Muito obrigado pela visita e pelo comentário! Forte abraço!!!
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