Não posso dizer que conheci aquele homem. É verdade que eu o vi algumas vezes, mas jamais cheguei a escutar a sua voz. Não que ele fosse mudo ou, então, fosse eu o surdo. Nada disso. É simplesmente porque eu contava com meus lá sete, oito anos quando o dito cujo partiu desta para melhor, como costuma dizer a minha mãe.
E, como nessa época as crianças eram
mantidas com outros meninos e meninas, não acontecia qualquer aproximação entre
adultos e a garotada. Portanto, eram eles lá, nós aqui. Senão, o cinto cantava.
E cantava alto lá em casa, como as cicatrizes no meu traseiro podem provar.
Apesar de guri, ainda hoje me lembro do séquito de
bajuladores que acompanhou o féretro do velho, como se cachorro fosse em busca
do último naco do que pudesse conseguir. O nome do defunto? Arquimedes, assim
como o pai da alavanca.
O falecido, sem filhos vivos, a não ser bastardos, deixou
tudo para a neta favorita, que, também, era a única. Arlete, com pouco mais de
30, solteira, se tornou a pessoa mais rica da cidade. A mulher, tamanha fortuna
que lhe caiu no colo, possuía dinheiro saindo pelo ladrão. Aliás, para não
faltar com a verdade, sejamos justos com a realidade dos fatos. Ela era
herdeira e, ademais, nada sabia das falcatruas perpetradas pelo avô.
Que o falecido fora um trambiqueiro de
marca maior, todos sabemos ou, então, aqueles que ainda não sabiam, agora
ficaram cientes. Mas não nos atentemos a enxovalhar os que já partiram, mesmo
porque o que nos interessa, neste momento, são aqueles dois quadros
simetricamente pendurados na parede oposta à grande sala de estar do palacete
da esquina.
Pois é, tal propriedade passou a ser a
moradia de Arlete desde então, que, mês passado, completou 62 anos. Quanto aos
quadros, basta um olhar pouco crítico para afirmar categoricamente que não
passam de arte vulgar. No entanto, apesar do óbvio, eles têm recebido, desde
que me entendo por gente, os mais elevados elogios, inclusive da aristocracia
local.
De tão afamadas ficaram essas bugigangas, algum incauto
propôs que fossem expostas na sala dos veneráveis vereadores, que já não estão
entre nós, ali na respeitável Câmara Municipal. Isso como se já houvesse tido
algum político por estas bandas que valesse o sacrifício de se bater um prego
naquelas paredes, cansadas de escutarem tantas promessas infrutíferas.
O primeiro quadro era o autorretrato de um tal Juvêncio
Badaró. Como sei disso? Bem, é como está escrito, em letras garrafais, abaixo e
do lado direito da tela. Data de 1918, local incerto. A pintura me pareceu um
imenso borrão, como se a tinta tivesse escorrido sem rumo e se misturado à
flagrante falta de talento do artista. Mas, à despeito da minha opinião, ouvi
comentários lisonjeiros sobre aquele trambolho. Obviamente, mantive–me calado,
pois não sou de escaramuças.
Creio que já basta do desajeitado pintor. Se ele gostava
tanto das tintas, que fosse dar cores às paredes de algum barraco de favela,
que, já naquela época, trazia deselegância à cidade. Que fizesse tal favor aos
nossos castigados olhos, obrigados a olhar tanta feiura e, ao mesmo tempo,
levasse um pouco de caridade à ralé.
Quanto ao segundo, não há muito mais a se falar. Deplorável!
Por incrível que pareça, castiga muito mais do que o autorretrato daquele
Badoró pela completa falta de gosto. Trata–se de um descalabro de um qualquer,
que nem se deu o trabalho de assinar aquela coisa horrenda.
Quer saber? Pois bem. Imagine uma Vênus
de Milo passada dos 70 anos, que mostra todas as vergonhas daquele corpo
decrépito, ao invés de as cobrir, como seria mais apropriado. Afinal, quem quer
ver aquilo? Causou–me engulhos atrás de engulhos. Como se fosse possível fitar
aquele quadro sem sentir tais ânsias.
Mas eis que a anfitriã me puxou pelos braços. Ela queria
porque queria que eu fosse apreciar aqueles quadros bem de perto. Contrariado,
não tive escolha. Fui.
– Fernando, soube pela sua mãe que você é um apreciador de
artes. Pois bem, quero a sua opinião sincera sobre essas duas telas.
Lá estava eu, diante daquelas execráveis pinturas. Tendo uma
reputação a zelar, finalmente me senti confortável para dar a minha opinião
mais sincera para Arlete. Comecei a balbuciar as primeiras sílabas quando,
então, surgiu um homem de cartola e bengala. Devia ter lá seus 80 ou
mais.
Acrísio Ventura. Maior criador de gado do município vizinho.
Ele havia sido atraído pela fama daqueles dois quadros. Tão ou mais rico que a
velha que não me soltava os braços, ele pareceu ainda mais interessado na minha
opinião. Fomos apresentados.
– Ventura, que bom que você veio. Este é o Fernando, o
especialista em obras de arte que lhe falei.
Eu, de esforçado estudioso sobre o assunto, naquele momento,
me tornei um especialista. A princípio fiquei confuso, mas logo percebi a
intenção daquela ardilosa senhora.
– Fernando, este é o Ventura. Ele deseja adquirir essas duas
obras de arte. Eu não as queria vender, mas ele insistiu tanto, que acabei
convencida.
Fiquei atônito e devo ter feito cara de poucos amigos. Ela,
certamente percebendo a minha reação, tratou logo de me colocar naquele jogo.
– Ah! Obviamente, que você será bem remunerado pelos seus
serviços, meu filho.
Sorri. Aliás, todos nós três sorrimos quase ao mesmo
tempo.
– Fernando, qual o valor desses quadros maravilhosos?
– Bem, seu Ventura, um preço justo seria de seiscentos mil.
– Pelos dois?
– Cada um.
O velhote fez aquela cara de felicidade, como se estivesse
preste a fazer o melhor negócio do mundo. A Arlete fez um beicinho, como se
triste pela separação dos quadros. Ficou mais rica ainda e, melhor, se livrou
daqueles trambolhos. Quanto a mim, eis que aqui estou com meus duzentos mil
indo para a Europa na primeira classe.
- Nota de esclarecimento: O conto "A herdeira" foi publicado por Notibras no dia 1/2/2024.
- https://www.notibras.com/site/quadros-que-nao-valem-nada-deixam-velhota-mais-rica/
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