Não vou conseguir precisar o dia em que
aquele rapaz atravessou o portão da propriedade, sorriu confiante, apesar da
vestimenta surrada, e foi direto cumprimentar meus pais, que já o aguardavam
sentados a uma das mesas ao redor da piscina. Soube naquele momento que aquele
jovem, apesar da aparência mais velha, contava apenas 18 anos, enquanto eu, no
mês seguinte, completaria 20.
Meu pai não tardou e se levantou. Foi em direção ao velho
José, que já o aguardava, junto a um de nossos automóveis, com a porta de trás
aberta. Minha mãe acompanhou com o olhar o marido. Os dois se despediram com
beijos soltos no ar. Nessa época, creio que ainda guardavam um resquício do
amor, que talvez tiveram algum dia.
Assim que o Opala partiu, minha mãe pegou a mão do rapaz e
veio até mim. Não muito alta, ela carregava o costumeiro du Maurier acoplado à
piteira dourada. Por conta de tal hábito, um câncer a tomaria por completo duas
décadas após.
_ Augusto, meu querido, quero lhe apresentar o Olegário. Ele
o ajudará nas tarefas de matemática.
Olegário me estendeu a mão. Olhei para ele com ar de
arrogância, que, na verdade, não passava de pura inveja. Como é que aquele
maltrapilho poderia me ensinar algo? Mero bandalho! Devo ter feito cara de
poucos amigos, pois a minha mãe lançou-me aquele olhar fulminante. Não tive
escolha e aceitei o cumprimento.
A partir da semana seguinte, comecei a ter aulas com o meu
novo professor. Um prodígio em trigonometria e geometria, devo admitir.
Relutante a princípio, acabei me encantando por aquela situação. Não pelos
números, diga-se de passagem, pois até hoje não encontrei razão para decorar
nem mesmo a tabuada. Se me interessei, foi por aquela voz rouca do Olegário,
que, ainda por cima, era dono do sorriso mais lindo que, até recentemente, não
tive o prazer de ver igual.
Durante nossas tardes no meu quarto, ele tentava a todo custo
me ensinar atalhos para que eu não tomasse bomba no final do ano. Por debaixo
da mesa, ele cutucava a minha perna com a sua, com o intuito de me fazer
prestar atenção. Isso me causava calafrios por todo o corpo, mas, covarde que
ainda sou, mirava o piso para não ser descoberto.
As provas finais vieram e, não sei como, consegui concluir
meus estudos. Na certa, devo ter me esforçado além do esperado, pois não queria
decepcionar o meu mestre. Não sei se ele ficou feliz com a minha aprovação,
pois nunca mais o vi. Minha mãe, hoje consigo ter maior clareza sobre isso, o
dispensou assim que possível para evitar que algo pudesse causar certo constrangimento
na família.
Passei os anos seguintes envolto em códigos civis, penais e
trabalhistas. Formei-me com louvor e, a partir de então, comecei a exercer a
advocacia no escritório do meu pai. Foi justamente nessa época em que conheci
Glória, brilhante advogada, com quem muito aprendi do ofício.
Protegida do meu velho, ela passou a frequentar a nossa casa.
Entretidos que estávamos com o volume de trabalho, não tínhamos tempo para o
amor. Foi como um acordo que nos casamos no ano seguinte, logo após ganharmos
uma causa de milhões. Minha mãe pareceu aliviada com o matrimônio.
Como prêmio, viajamos para Europa por uma semana. A agora
minha esposa, com um francês muito melhor do que o meu, pareceu adorar aquelas
explicações intermináveis nas idas aos museus. Como bom marido, mantive-me
sempre ao seu lado, mas com a cabeça na pilha de processos que me esperava no
escritório.
Assim que o avião pousou no Galeão, senti um grande alívio.
Nada mais de passeios infrutíferos por Paris, onde sentamos em todos os cafés
possíveis. A companhia era ótima, é verdade, tanto é que na segunda semana de
volta ao Brasil, Glória se sentiu indisposta e correu para o banheiro a fim de
evitar devolver, sobre a mesa, o salmão com nozes ingerido há pouco.
No verão seguinte, eis que estávamos na sala de parto. Minha
mulher segurava minhas mãos tão fortemente, que imaginei que iria arrancar
todos os meus dedos. Devo confessar que aquela era uma situação nova para mim
também, porém, muito mais cômoda. Afinal, todas as dores do parto se
encontravam com Glória.
Às 12h43 do dia 15 de fevereiro de 1989, ouvimos pela
primeira vez o choro de Rubens. Minha esposa e eu, talvez não querendo deixar
nosso filho chorando sozinho, o acompanhamos. Esse momento mostrou a nós dois
que, apesar de ter surgido de um acordo, aquele casamento havia conseguido
gerar um fruto do nosso amor.
Depois de alguns meses de correria, a nossa vida acabou
entrando nos eixos. É verdade que agora tínhamos um filho para criar e, hoje posso
afirmar, o tempo é sábio e toma conta de tudo. Ou, caso não cuide tão bem
assim, o dinheiro ajuda a superar as dificuldades.
Nosso menino cresceu cercado de
todos os mimos e regalias, é verdade. No entanto, até entre os abastados há
certos percalços. Seja como for, lá estávamos para lhe dar o suporte
necessário. E foi assim que fizemos, quando, antes de completar 10 anos, ele
cismou em ser tenista.
Compramos os melhores materiais
esportivos, contratamos o mais afamado treinador. Até mandamos construir uma
quadra de tênis na nossa ampla propriedade. Entretanto, essa febre passou e a raquete,
comprada a peso de ouro, foi parar em algum canto.
Aos 13, Rubens cismou que queria ser
músico. Como dinheiro não era problema, compramos vários instrumentos, mas, no
final, o nosso rapazinho desistiu de todos. Ainda carregou a gaita no bolso por
alguns meses, mas nunca o vi soprando-a nem uma vez sequer.
Rubens, prestes a concluir o ensino médio, parece ter herdado
a minha aversão por números. Por isso, a minha mãe, ainda que adoentada,
contratou um professor de matemática para o único neto. Na hora nem me dei
conta da situação, até que, sentados a uma das mesas ao redor da piscina,
vi passar pelo portão um jovem de lá seus 25. Na verdade, soube logo em
seguida, ainda contava 18. Ele parou diante de mim e sorriu um sorriso, que há
muito guardo na lembrança, e, então, naturalmente, acabei por me encantar por
aquela rouquidão: "Prazer, sou o Olegário!"
- Nota de esclarecimento: O conto "O professor de matemática" foi publicado por Notibras no dia 25/12/2023.
- https://www.notibras.com/site/olegario-ensinando-o-22-4-de-pai-para-filho/