Prólogo
Alguns dizem que as pessoas que
moram fora da cidade do Rio de Janeiro devem estar loucas ou aplicando uma
piada de mau gosto. Outras, no entanto,
afirmam que loucos são os que ainda conseguem viver na Cidade Maravilhosa,
mesmo depois da série de assassinatos misteriosos ocorridos nos últimos
meses. Certos ou errados, bem, isso não
importa, pois você já se tornou cúmplice desta história, que caiu no imaginário
dos cariocas de nascimento ou de adoção.
O nascimento de uma assassina
Sábado, 25 de janeiro de 2003, 00h36...
O som do salto alto quando se choca
com o piso de cerâmica chama a atenção do porteiro. Ele apenas vê as ancas dançantes que
emolduram o lindo vestido vermelho, que acompanha o gingado invulgar de sua
dona. Lá está ela, esperando pelo
elevador, que a levará ao encontro de mais um de seus inúmeros clientes.
Raquel, se é que podemos chamá-la
pelo seu nome de guerra, não está há muito tempo nessa vida tão comum a tantas
e tantas pessoas, sejam mulheres, sejam homens, sejam travestis, sejam o que
for mais cômodo para a sua imaginação.
Ela caminha há passos vigorosos, altivos, é a dona da situação,
verdadeira loba cercada de cordeiros. E
ela gosta disso, sente que nasceu para o que está fazendo. Raquel, Raquel, tu sabes mesmo por onde
andas? Sim, ela sabe ou, pelo menos,
pensa que sabe.
O elevador, enfim, chega para pegar
a dama da noite. O porteiro estica o
pescoço para dar a derradeira olhada naquele monumento de mau caminho, já que
pedaço é muito pouco para Raquel. Antes
de apertar o botão do sexto andar, ela se olha no espelho do elevador. Tudo em ordem, ela pensa. Esboça um sorriso. Aperta o botão.
A porta pantográfica range ao se
abrir. Raquel sai do elevador e caminha
em direção ao apartamento 601. Toca a
campainha, que faz blim-blom, blim-blom.
Raquel nota que alguém se aproximou da porta e a está observando através
do espelho mágico. A porta se abre.
_ Boa noite... Raquel. É esse o seu nome, né?
_ Sim, meu bem.
_ Eu sou Arnaldo – diz o cliente,
enquanto inclina o rosto para dar os tradicionais dois selinhos nas faces da
profissional.
Arnaldo é um homem
relativamente baixo, não deve ter 1,65 metro, uns cem quilos, mas tem um certo
ar de elegância, traços finos, nariz aquilino, maçãs proeminentes enfeitam seu
rosto redondo. Anda com desenvoltura,
apesar do corpo roliço, não aparenta seus sessenta e poucos anos.
O acerto financeiro desse tipo de
serviço costuma acontecer antes do finalmente.
Raquel gosta de manter a tradição nesse quesito. Recebe o combinado anteriormente e guarda a
féria na bolsa prateada.
O gorducho oferece licor de menta a
Raquel, que não hesita em aceitar. Ela
sorve o líquido verde fazendo biquinho, saboreia a bebida em todos os cantos da
sua língua. Raquel observa o seu
cliente, percebe que não se trata de alguém vulgar, mesmo tendo lhe oferecido
licor de menta. Ela até gosta dessa
bebida. Finalmente ela deixa o líquido
descer pela garganta, o que lhe proporciona o primeiro prazer da noite.
Arnaldo liga o aparelho de som, pergunta
se Raquel gosta de Julio Iglesias, ela diz que sim, talvez por educação, talvez
porque realmente aprecie. Ele coloca um
CD do cantor espanhol, puxa com delicadeza uma das mãos de Raquel e a
enlaça. Dançam, dançam, logo seus lábios
buscam os da sua par. Beijos nessa
profissão não são comuns, mas Raquel tem lá suas exclusividades. Ela se entrega ao jogo de casalzinho
apaixonado, deixa o amante da vez guiar o barco até certo ponto. Logo, logo Arnaldo passará o timão à verdadeira
capitã. E ele gosta, e ela aprecia ainda
mais.
_ Vamos pro quarto, minha querida.
Raquel acompanha o cliente, ele se
senta na beirada da cama e retira a camisa.
Está ansioso, chega a arrancar dois botões que teimam em não abrir. Abaixa a calça de tergal. Ela observa o corpo do amante só de cueca, a
enorme barriga com algumas estrias. A
figura lhe faz lembrar daqueles enormes lutadores de sumô, mas Raquel continua
o ritual. As mãos gordas de Arnaldo vão
de encontro aos polpudos seios da profissional, que finge se excitar. Ela mesma abre o zíper que está nas costas,
abaixa as alças do vestido expondo as mamas de auréolas rosadas e bicos
pontudos.
_ Vem! – Raquel o instiga a mamar
seus peitos.
Esse convite parece irrecusável ao
cliente, que aproxima a boca dos seios de Raquel, suas narinas sentem o odor do
perfume invulgar que exala da pele da amante.
Arnaldo suga os mamilos de Raquel, que começa a acariciar o membro do
amante sob a cueca. Não é dos maiores
que viu, é até pequeno, mas logo dá sinal de vida. Raquel se ajoelha, retira a última peça de
roupa do cliente e começa a retribuir o carinho que recebeu de Arnaldo. Ele se esvai em gemidos e urros de
prazer. Agora é Raquel que está no
comando. Ela pede, ou melhor, rainhas
não pedem, não imploram... Rainhas
mandam!
Raquel retira o vestido, joga-o
sobre uma poltrona ao lado. Ela pega
dois macios travesseiros e se senta na cama.
_ Dance pra sua rainha! – ela
ordena.
No mesmo instante o escravo está
remexendo suas banhas. Parece uma grande
baleia branca, seu pênis fica ainda menor entranhado na gordura pubiana. Seus peitos parecem os de uma índia
velha. As coxas pelancudas com pêlos
irregulares, tudo pode ser repugnante aos olhos de uma jovem que sonha com
príncipes encantados. Raquel, no
entanto, parece estar gostando da cena esdrúxula, seu corpo começa a mostrar os
primeiros sinais de excitação. Talvez ela faça aquilo por prazer, talvez o
dinheiro que recebe pelos serviços prestados seja apenas uma agradável
conseqüência.
Depois de quase 20 minutos dançando
para Raquel, o gorducho está encharcado em suor. Ela finalmente lhe ostenta o brinquedinho que
tem em sua mão. Arnaldo sorri já prevendo o que vai acontecer.
_ Minha deusa, mas é muito
grande! Não sei se vou aguentar tudo
isso! – o gorducho finge estar assustado com o que vê.
_ Vou te enrabar, seu cachorro
sarnento! – enquanto profere tais palavras, Raquel desfere um forte tapa na
cara gorda de Arnaldo, o que parece excitar ainda mais o seu cliente, gotículas
da próstata lustram a glande peniana.
As palavras de Raquel não demoram a
se concretizar. Arnaldo está de quatro,
a enorme bunda virada para sua rainha, que não se inibe, pelo contrário, está
cada vez mais excitada. Logo a operação
é iniciada, o que faz o gorducho se transformar no ser mais submisso da Cidade
Maravilhosa. As estocadas cada vez mais
fortes o fazem chorar de alegria, não demora muito e ele despeja toda a
felicidade sobre o lençol florido que cobre a cama. O enorme corpo desaba fazendo a estrutura da
cama estremecer.
Raquel observa o amante da ocasião
estatelado na cama, parece adormecido.
Ela vai ao banheiro da suíte, lava o seu brinquedindo que tanto prazer
deu ao gorducho. Volta para o quarto
onde veste a calcinha e o lindo vestido vermelho. Calça o sapato salto 15, pega sua bolsa
prateada e retorna ao banheiro. Saca seu
batom vermelho e passa cuidadosamente em seus lábios cada vez mais
experientes. Ajeita o cabelo loiro. Está pronta para sair, confere mais uma vez
as seis notas de R$ 50,00 que recebeu por mais uma noite de trabalho e se vira
para ir embora.
_ Onde você pensa que vai, sua vaca?
– é o gorducho, que acabara de despertar de seu cochilo pós-orgasmo.
_ Você já teve o... – antes mesmo de
Raquel terminar a frase, recebe um tapa no seu lindo rosto, ainda mais forte do
que o que há pouco havia desferido na cara do cliente.
_ Cala a boca, sua vagabunda!!! –
Arnaldo em nada lembrava aquele cliente delicado e submisso de instantes
atrás. Estava totalmente transtornado,
seus olhos congestos pareciam querer saltar da sua cara redonda.
_ Vou te ensinar como se trata um
homem de verdade!!! – o gorducho continuava a gritar para Raquel, que se
encontrava pela primeira vez em apuros em toda a sua trajetória de “vida
fácil”, se bem que estava há não mais de um ano em tal profissão.
Arnaldo pegou Raquel pelos cabelos,
mas não eram os verdadeiros de Raquel. O
gorducho ficou assustado por meros segundos com a peruca loira da profissional
em suas mãos, tempo suficiente para que Raquel pegasse um vidro de loção de
barbear e acertar a cabeça do agora rival.
Em seguida dá-lhe um chute no meio das pernas, fazendo com que Arnaldo
caia de joelhos gemendo de dor. Ela
aproveita e sai correndo para a sala, onde tenta abrir a porta
desesperadamente, mas antes que consiga sair é agarrada pelo gorducho, que a
puxa pelo braço e desfere-lhe um soco no olho, fazendo a dama da noite cair
perto da cozinha. A partida parecia já
ter um vencedor, quando Raquel vê uma faca de carne em cima da pia. Ela agarra a arma branca e, antes que Arnaldo
perceba, desfere-lhe um golpe na garganta, cortando-lhe as jugulares, a
traquéia e o esôfago, fazendo o sangue jorrar.
O gorducho não consegue proferir uma única palavra, nem um som sequer, mas
seus olhos de desespero e angústia dizem tudo.
Seu corpo de hipopótamo tomba.
Ele sabe que o fim está próximo, o que logo se concretiza.
Raquel está exausta, mal consegue
controlar a respiração ofegante. Ela
olha seu adversário caído, o sangue espalhado pelo piso da cozinha, respingado
nas paredes. Há sangue em suas mãos, ela
liga a torneira da cozinha e as lava.
Lava também a faca. Depois segue
para a suíte, onde pega as suas coisas, coloca a peruca loira, lava o rosto,
retoca o batom em frente ao espelho...
Sorri.
A
dama da noite volta para a cena do crime, observa o corpo inerte de
Arnaldo. Profere algumas palavras de
insulto. Já está de saída, quando se
lembra da faca. Ela quer a faca. Talvez como um troféu.
Inspetor Medeiros
Segunda-feira, 27 de janeiro de
2003, 7h32...
O sol entra pela janela do quarto e
reflete no rosto anguloso, bigode vasto de pontas caídas, barba por fazer,
nariz de ventas largas, queixo quadrado.
O cabelo está começando a rarear, o que é facilmente notado pelas
entradas acentuadas.
_ Merda! – o inspetor Medeiros se
levanta com raiva e fecha a cortina, que esqueceu aberta na noite anterior,
quando fumava um dos inúmeros cigarros que traga diariamente. Mas, antes mesmo que volte para a cama, o
telefone toca. Ele atende contrariado.
_ Alô!
_ Medeiros, te acordei?
O inspetor reconhece a voz de
Tereza, a mulher com quem vem saindo há quase três anos. A relação dos dois anda meio desgastada,
“precisando de um tempo”, como ele mesmo costuma dizer.
_ Acordou, mas tudo bem. Tenho de levantar mesmo, já estou até atrasado. O que você quer? –
_ Puxa, você tá tão grosso!
_ Desculpa – Medeiros acende o
primeiro cigarro da manhã.
_ Só queria saber como você
está. A gente já não se vê há quase uma
semana. Estou com saudade.
_ Tereza, depois a gente
conversa. É que estou com pressa...
_ Puxa, meu amor, você não tem um
tempinho pra mim? Já arrumou outra, é?
_ Que outra o quê?
_ Tá, tá, me desculpe, não quero
brigar outra vez. Mas estou sentindo a
sua falta, meu amor.
_ Tereza, vamos fazer o seguinte:
hoje à noite a gente se fala.
_ Não dá pra gente se ver?
_ Vou ver, não prometo, mas vou
ver. Tá bom assim?
_ Tá, meu amor. Então, fico esperando você me ligar.
_ Então, tchau, Tereza!
_ Tchau, meu amor. Um beijo.
O policial desliga o telefone, pega
a toalha de banho pendurada na porta do armário, onde se olha no espelho. Ele é moreno, quase 1,80 metro, tórax
musculoso coberto de pêlos pretos. Uma
barriga proeminente o incomoda, da mesma forma que a calvície que a cada dia
lhe parece mais presente. Antes de ela
aparecer, ele fazia a barba diariamente.
Passou a usar bigode nos últimos dois anos, talvez como forma de
compensar o avanço da calvície. O homem
de 44 anos segue para o banheiro, onde atira o cigarro na privada. O banho é mais demorado do que de costume,
pois decide, hoje, fazer a barba. Ele
gosta de se barbear dentro do chuveiro, hábito que cultiva há anos.
Quase
uma hora depois, Medeiros, com mais um cigarro entre os dedos médio e indicador
da mão esquerda, está no seu carro rumo à 12ª DP (12ª Delegacia de Polícia), em
Copacabana, onde está lotado há seis anos.
É policial civil há 15.
*
* * * *
_ Estava justamente te esperando,
Medeiros.
_ O que houve, delegado?
_ Degolaram um cara na rua Dias da
Rocha. A perícia já está lá, mas quero
que você e o Felício acompanhem o caso.
Marcos Alexandrino era delegado há
poucos anos. Um pouco mais alto que
Medeiros, sempre bronzeado de praia, cabelos quase loiros, olhos cor de mel,
praticante de musculação, o que se reflete no seu corpo musculoso. Ainda não completou 30 anos e é adepto de
comida natural. Vive implicando com a
compulsividade de Medeiros por cigarros.
Felício entra na sala do delegado, onde é
cumprimentado por Medeiros, seu parceiro há cinco anos. Ele tem uns 70 quilos bem distribuídos em seu
1,65 metro de altura. É negro e careca,
mas diferentemente de Medeiros, que já está no oitavo cigarro da manhã, é
careca por opção. E antes que Felício e
Medeiros saiam da sala, Alexandrino faz uma última recomendação.
_ Ei, Medeiros!
_ Mais alguma coisa, delegado?
_ Esse seu cigarro ainda vai
matá-lo!
Medeiros acena contrariado para o delegado Alexandrino. Depois ruma com seu parceiro para o local do
assassinato ocorrido. O trajeto é curto demais para surgir uma conversa mais
profunda. Apenas alguns comentários
sobre os últimos acontecimentos, mas nada que valha a pena mencionar.
* * * * *
9h41...
Medeiros e Felício estão em
frente ao edifício, onde se encontra uma pequena multidão, a maioria de
curiosos, que são barrados pelo cordão policial. Os dois abrem caminho entre as pessoas, se
identificam para os policiais do cordão de isolamento, tomam o elevador até o
sexto andar. Em menos de cinco minutos
já estão dentro do apartamento 601 da rua Dias da Rocha. Eles são logo recebidos pelo perito Raul
Teixeira.
_ Arnaldo Quintana – diz o perito.
_ O quê? – pergunta Medeiros acendendo mais um cigarro.
_ O nome da vítima. Tinha 63 anos,
era professor universitário aposentado, viúvo, sem filhos. Professor de filosofia – esclarece Raul.
Medeiros e seu parceiro observam o corpo da vítima. Mesmo depois de tantos anos na atividade
policial, Medeiros não deixa de sentir certo mal estar com a cena. Felício é mais frio, talvez por ter
trabalhado por alguns anos na Baixada Fluminense, onde crimes com requintes de
crueldade são comuns. Talvez o parceiro
de Medeiros tenha mesmo os nervos mais tesos.
_ Como descobriram o corpo? – indaga Medeiros.
_ A faxineira hoje pela manhã. De
acordo com o seu testemunho, assim que ela entrou no apartamento e viu o corpo
do patrão, chamou o porteiro e depois ligou para a polícia. Confirmamos a história com o porteiro da
manhã, que a viu chegando um pouco antes de telefonar.
_ A arma do crime? – Felício pergunta ao perito.
_ Não foi encontrada. Com certeza
ela levou a arma, que possivelmente era uma faca ou navalha bem afiada.
_ Ela? Como você sabe que é ela –
quis saber Medeiros.
_ O porteiro disse que uma mulher estava com a vítima – respondeu Raul.
_ Que mulher? – perguntou novamente Medeiros.
_ Ele não sabe, mas pela descrição trata-se de uma prostituta.
_ E o circuito interno de TV? Você
já examinou as imagens? – perguntou Felício.
_ Infelizmente está quebrado há três meses, conforme informou o síndico.
_ E o porteiro consegue fazer um retrato falado da tal prostituta? – quis
saber Felício.
_ Bem, ele me disse que ela era um mulherão, usava um vestido vermelho,
tinha uma bunda maravilhosa... Mas não
prestou atenção no rosto. Disse que era
loira. E só!
_ Droga! Então temos uma assassina
loira que tem bunda, mas não tem rosto.
Se fôssemos partir desse ponto, teríamos de prender metade das mulheres
da cidade – desabafou Medeiros.
_ Só metade das prostitutas – corrigiu Felício.
_ Obrigado por me lembrar disso, cara!
Talvez encontremos a desgraçada que fez isso daqui uns 30 anos –
ironizou Medeiros.
_ Podemos rastrear os telefonemas dados pela vítima nas suas últimas 24
horas – lembrou Felício.
_ O telefone foi cortado por falta de pagamento há seis meses – informou
o perito.
_ Algum vizinho viu ou ouviu alguma coisa? – perguntou Felício.
_ Nada! É um prédio de idosos, a
maioria se recolhe bem cedo. O vizinho
mais novo da vítima é o do 606, que mesmo assim saiu à noite toda, só voltou
quando o dia já estava amanhecendo.
Confirmei essa informação com o porteiro da noite – Raul respondeu.
_ Bem, mas venham por aqui. Pelos
indícios, os dois tiveram uma noite de amor, pois há licor de menta em dois
copos. Também há um CD do Julio Iglesias
no aparelho de som. A capa está aberta
sobre o aparelho. A cama está
desarrumada, há uma mancha de esperma no lençol – Raul foi informando as
descobertas aos dois policiais.
_ Houve roubo? – perguntou Felício.
_ Aparentemente não. Mas olhem
isto! – Raul pegou o vidro de loção de barbear que já estava dentro de um saco
plástico e iria para a perícia laboratorial.
_ Encontrou digitais? – perguntou Medeiros.
_ Sim, há digitais nos copos e no vidro.
O Araújo já providenciou tudo. Ele irá confrontar as digitais
encontradas com as da vítima. Caso haja
outra digital, tentaremos confrontar com o banco de digitais.
_ Banco de digitais? Raul, você
quer enganar quem? Desde quando o nosso
banco de digitais funciona? – ironizou Medeiros.
_ Talvez não funcione como deveria, mas funciona. Não vamos ser pessimistas, meu amigo – disse
o perito.
_ Tá, não vamos entrar em atrito por causa disso, né? – Felício botou
panos quentes na situação.
_ Bem, continuando... A assassina
acertou a vítima com o vidro de barbear.
A prova é um hematoma na testa do defunto. Depois os dois foram para a sala, onde
continuaram a briga. Talvez a assassina
tenha tentado escapar com algum pertence da vítima; talvez a vítima tenha
tentado fugir da assassina, que estava armada.
Não houve briga entre a suíte e a porta de entrada, pois os objetos
estão todos no lugar, não há desarrumação, não há coisas no chão. A luta reiniciou somente na porta de entrada
ou na cozinha, que é onde o corpo se
encontra. A vítima teve todos os
principais vasos do pescoço seccionados, sem falar do esôfago e da
traquéia. Foi uma morte horrível. A vítima teve forte hemorragia, como vocês
podem notar pela quantidade de sangue espalhada pelo chão. Pelo estado do cadáver e pelo depoimento do
porteiro, o assassinato ocorreu entre 11 horas da noite e 3 da madrugada de
sábado para domingo – concluiu Raul, na
mesma hora que chegava a maca para levar o corpo ao Instituto Médico Legal
(IML), onde seria feita a necropsia.
Tereza
Ainda 27 de janeiro de 2003...
Medeiros chegou ao seu apartamento por volta das 21h. Havia tomado uns chopes com Felício no
Benfica, bar localizado na rua Figueiredo Magalhães, ali mesmo em
Copacabana. Depois passou no
supermercado para comprar o jantar: lasanha de queijo e presunto.
_ Boa noite, rapaziada! – Medeiros cumprimentou o grupo de garotos que
batia papo na entrada do seu edifício.
_ Boa noite, Medeiros! – os adolescentes responderam quase em uníssono.
O policial entrou no elevador e por pouco não caiu com o movimento de
subida. Teve de se apoiar na parede do
elevador, estava sentindo os efeitos dos incontáveis chopes que havia
tomado. Uma ânsia de vômito tomou conta
de seu corpo. O elevador para, ainda não
é o oitavo andar, mas o quinto. Algumas
crianças entram e ficam observando o policial em estado etílico. Medeiros observa os rostos deformados dos
meninos, que devem ter entre 8 e 10 anos.
A vontade de vomitar é ainda maior, mas Medeiros tenta ao máximo se
controlar. Um pouco do suco gástrico sobe
para a sua boca. Ele sente o ardor em
sua garganta, consegue devolver o líquido para onde veio. Finalmente o elevador chega ao oitavo andar,
Medeiros abre a porta e se dirige a passos largos para o apartamento 804. Mal tem tempo de abrir a porta e vomita em
cima do vestido vermelho de Tereza, que já o esperava há quase uma hora.
_ Medeiros! – Tereza quase grita.
Quando o policial termina o que havia começado, ele observa o rosto
assustado da amante. Não parece haver
nojo na expressão de Tereza, apenas preocupação com o estado do homem por quem
é apaixonada.
_ O que você está fazendo aqui, Tereza?
_ Ué, você disse que ia me ligar.
Pensei que você havia se esquecido.
Então, vim lhe fazer uma visita surpresa. Como você não havia chegado, resolvi preparar
um jantarzinho para nós dois, à luz de vela.
Gostou?
Medeiros só então observou a mesa posta.
Havia filé de peixe, arroz branco e salada de alface e tomate. Não havia apetite em seu olhar, mas mesmo
assim ele agradeceu a preocupação da namorada. Tereza sugeriu que ele fosse
indo tomar um bom banho, enquanto ela limparia toda a sujeira provocada pelo
vômito. Medeiros achou por bem
obedecê-la.
Quando o policial saiu do banheiro enrolado na toalha, já de banho
tomado, Tereza apareceu somente de calcinha e sutiã. Seu vestido havia se sujado, ela não tinha
outra roupa. Tirou a toalha que estava
no corpo de Medeiros, deixando-o em pelo, aliás, pelo era o que não faltava no
corpo do amante. Este já parecia
recuperado, seus hormônios demonstraram que nada é melhor do que um bom banho
depois de uma sessão de vômito. Tereza
fingiu não notar a ereção do policial e entrou no box, ligou o chuveiro, deixou a água morna cair pelo
seu proporcional corpo bronzeado, 1,60 metro, 58 quilos, seios tipo pera,
barriga de dançarina do ventre, pelos pubianos descoloridos e bem aparados,
bumbum empinado e firme, onde uma fina penugem dourada teimava em se deixar
ficar, descendo pelas coxas bem torneadas da jovem de 28 anos. A morena parecia ainda mais linda debaixo do
chuveiro, seus olhos castanhos sorriram matreiros quando Medeiros puxou a cortina
do box e foi esfregar as costas da namorada.
* * * * *
O casal está jantando. Medeiros
precisa recuperar a energia gasta durante o dia e, especialmente, na última
hora. Tereza parece satisfeita, talvez
nem tanto pela performance do amante, mas por voltar às boas com ele.
_ Preocupado?
_ Um pouco – ele responde enquanto pega o maço de cigarros e acende um.
_ Com relação à gente?
_ Não, não... É coisa do trabalho
– Medeiros mente.
_ O que houve? Você quer se abrir
comigo, meu amor? – ela toca a mão esquerda de Medeiros com as suas.
_ Depois eu te falo, Tereza.
O jantar prossegue quase em total silêncio. Coisas passam pela cabeça de Medeiros, outras
pela de Tereza. Ele não sabe como
explicar que está vivendo um momento muito difícil da sua vida, está vivendo a
crise dos 40, não se conforma que está envelhecendo, apesar de ainda ser
jovem. Começa a não gostar do próprio
corpo, sempre motivo de orgulho há tão pouco tempo. Para piorar a situação, ainda há o problema
da calvície. Tereza não parece dar
importância a essas coisas, ela parece amá-lo com ou sem barriga, de cabelos
dançando ao vento ou, então, sendo todos carregados por ele. Medeiros talvez tenha medo de Tereza, talvez
tenha medo do dia em que não mais corresponderá à natureza fogosa da
amante. Talvez seja esse o verdadeiro
motivo dele querer “dar um tempo na relação”, essa é a expressão sempre usada
pelo policial.
Depois do jantar, Medeiros e Tereza vão para o quarto, onde ligam a
televisão. Está passando um épico
antigo, mas os dois continuam com a mente ocupada com outras coisas. O policial está fumando o último cigarro do
dia, quase não tem forças para tragar, repousa a guimba no cinzeiro e adormece
antes da namorada, que logo depois pega o controle remoto e dá uma passada por
todos os canais. Nada de
interessante! Ela desiste e desliga a
televisão. Não demora muito e adormece. A mesa de jantar continua posta, não tiveram
ânimo para desfazê-la.
Necropsia
Quinta-feira, 30 de janeiro de 2003, 09h50...
_ Felício, onde está o Medeiros? – perguntou o delegado Alexandrino.
_ Está ali no telefone, delegado – o parceiro de Medeiros responde
apontando para a outra sala.
_ Chame-o imediatamente!
Felício entra na sala onde Medeiros continua falando ao telefone, tendo
um cigarro entre os dedos da mão esquerda.
Ele espera o parceiro acabar de falar, mas Medeiros logo percebe a
aproximação do colega.
_ Mãe, tenho de desligar agora.
Depois eu ligo pra senhora. Ligo
assim que der. Um beijo na senhora e no
pai.
Assim que Medeiros põe o telefone no gancho, Felício diz que o delegado
quer vê-lo.
_ Você sabe o que é?
_ Não, mas deve ser algo relacionado ao assassinato daquele professor de
psicologia...
_ De filosofia, Felício – corrige Medeiros.
_ É...
Medeiros dá dois leves toques na porta, já aberta, da sala do delegado
Marcos Alexandrino. Este o manda
entrar. Felício já está dando meia volta
quando o delegado o chama.
_ Quero conversar com os dois, Felício.
_ Sim, senhor – diz o parceiro de Medeiros fazendo continência em tom de
brincadeira.
_ Por favor, sentem-se.
Os policiais obedecem ao pedido do delegado. Logo são servidos com café pelo próprio
Alexandrino, que, no entanto, prefere tomar chá de camomila com adoçante. O superior volta a falar.
_ Bem, quero que vocês compareçam ao IML agora. Vocês vão com o Raul Teixeira. Lá quero que procurem o Dr. Antônio Manoel,
que poderá lhes esclarecer mais detalhes da morte do professor Arnaldo Quintela.
Os dois policiais saem da sala do delegado, passam na do perito Raul, não
o encontram, apenas o seu ajudante.
_ Lima, onde está o Raul? – Felício perguntou.
_ Ele foi rapidinho ali na cantina pegar... – mas antes mesmo do ajudante
completar a frase, o franzino perito Raul Teixeira aparece com uma garrafa
térmica na mão.
_ Querem café?
_ Não, obrigado, Raul – agradece Felício.
_ O delegado quer que você vá com a gente lá no IML falar com um tal
Antônio Manoel – informa Medeiros.
_ Tô sabendo. Deixa eu só pegar
umas coisas e a gente já vai – o perito fala enquanto coloca a garrafa térmica
sobre uma mesinha no canto. Depois abre
uma gaveta e pega sua carteira de documentos.
* * * * *
Em menos de uma hora os dois inspetores e o perito da Polícia Civil estão
dentro do IML diante do Dr. Antônio Manoel e o cadáver de Arnaldo Quintela. O forte cheiro de formol parece não incomodar
os policiais. A palavra é do médico, que
tenta evitar o uso de jargões para não confundir os policiais.
_ Como os senhores podem ver, o golpe único e fatal foi provocado por
objeto cortante, possivelmente uma faca de cortar carne bem afiada. A pessoa que fez isso não é alguém de
estrutura frágil e é canhota, já que o golpe foi desferido de frente para a
vítima, da direita para a esquerda, levando-se em conta a posição do assassino.
Foram seccionados esôfago, traquéia, jugulares internas e externas, aorta
ascendente, entre outros vasos de menor calibre. A vítima morreu em decorrência de monstruosa
hemorragia e asfixia. Vocês já estiveram
em um matadouro?
_ O quê? – perguntou Medeiros.
_ Num matadouro? Onde se abatem
bois, vacas... – disse o médico.
_ Não, nunca – respondeu o parceiro de Felício, que estava doido para
fumar, mas foi proibido pelo médico do IML.
_ Pois bem, é dessa forma que os bois que têm a carne exportada para
Israel são abatidos. Há todo um ritual
de afiação da lâmina destinada a degolar os animais. Assim que o animal cai de um alçapão de fundo
falso, o responsável pela degola passa a lâmina afiada no pescoço do bicho. Enquanto isso, outro homem prende uma
corrente numa das patas de trás do animal, que é suspenso. Enquanto a corrente desliza pelo trilho
carregando o boi, este fica se debatendo em agonia, seu sangue jorra como
cachoeira pelos vasos rompidos. Junto
com o sangue também vem o vômito dos animais.
É um espetáculo selvagem, meus senhores.
Desde que presenciei tal cena, nunca mais coloquei um pedaço de carne na
boca – explicou o Dr. Antônio Manoel.
_ Então, o senhor acha que a assassina pode ser judia? – perguntou
Medeiros, que não conseguiu deixar de lembrar do vômito que tivera há dois
dias.
_ Assassina? Não, meu caro, não
creio que seja uma assassina – disse o médico.
_ Não? Mas por que não? – quis
saber Raul.
_ Bem, pelo menos não uma mulher como nós conhecemos – continuou fazendo
certo mistério o médico legista.
_ Seja mais claro, doutor – intimou Felício.
_ Falo que não é uma assassina porque ela teria de ter um pênis – disse o
Dr. Antônio Manoel enquanto observava as caras de espanto dos três homens a sua
frente.
O silêncio tomou conta da sala fria onde se encontravam os cinco homens,
sendo que um deles jazia estirado em cima de uma maca. Até que um deles, mais precisamente o
inspetor Medeiros, esboçou algumas palavras.
_ Um travesti? O senhor está
falando que o assassino é um travesti?
_ Exatamente, inspetor! – disse o médico.
_ Mas baseado em quê o senhor faz tal afirmação – quis saber Felício.
_ Bem, a vítima foi sodomizada. Há
lesões ao redor do ânus, além de restos de fezes, o que caracteriza
sodomia. Não foi encontrado vestígio de
esperma do assassino, mas as evidências são claras. Posso afirmar
categoricamente que a vítima era praticante dessa vertente sexual – concluiu o
Dr. Antônio Manoel, enquanto seus ouvintes continuaram boquiabertos.
Felício e Raul saíram do IML intrigados com a revelação de que o assassino
era um travesti. Medeiros estava
preocupado com outra coisa, tanto é que saiu do instituto quase correndo: não via a hora de dar suas tragadas,
abastecendo seu organismo de nicotina.
O
começo de uma rotina
Sábado, 08 de fevereiro de 2003, 22h25...
_ Raquel? – perguntou o homem
de enormes costeletas e basto bigode.
Ele vestia um pobre vestido amarelo com flores azuis e amarelas de gosto
duvidoso.
_ Almir? – respondeu com outra resposta a elegante loira de pele
bronzeada e corpo estonteante.
O homem convida a profissional da dita “vida fácil” a entrar em seu
pequeno, porém aconchegante, apartamento na rua Voluntários da Pátria, nas
proximidades da estação do metrô, em Botafogo.
A noite corre fria lá fora. Há
uma certa ansiedade no ar, tanto o cliente quanto a prestadora de serviço estão
desejosos. O primeiro quer ter suas
fantasias saciadas, a outra não está apenas atrás de dinheiro. Aliás, este talvez seja apenas mais um atrativo
da profissão, porém nunca o mais importante.
O pagamento do serviço é somente a entrada do banquete que em breve terá
início.
_ São R$ 300,00, não é, minha flor? – pergunta o cliente.
_ Exatamente, meu bem – confirma a profissional.
_ O preço é meio salgado, não? – Almir faz um pequeno protesto.
_ Não se preocupe, meu amor, pois eu valho cada centavo – Raquel rebate
as palavras do cliente.
Depois que o acerto financeiro é consumado, o homem de pouco mais de 1,70
metro e doces olhos cor de mel assume o papel de uma histérica mulher. Raquel, mesmo acostumada com os tipos mais
estranhos, não deixa de achar graça nos trejeitos do novo cliente. Ele caminha de forma rebolativa sobre o
carpete azul desbotado da sala.
_ Você acha que eu não tenho sentimentos?
Você pensa que eu sou uma dessas suas amiguinhas que você come na rua? Eu não me casei com você pra ter de suportar
tudo isso, Pedro Paulo! Eu quero você,
eu desejo você! Sou uma mulher ferida! Sou uma mulher que quer ser comida pelo seu
homem! - Almir encena seu papel com uma
voz feminina.
_ Cale-se, sua puta!!! – protestou Raquel, que entrava em cena com seu
papel de marido sem muito tempo para as crises existenciais de sua mulher.
_ É só isso que você sabe falar, Pedro Paulo! Eu sou sua mulher!!! Eu sou a mãe dos seus filhos!!! Se você não me comer hoje eu juro que vou dar
pro vizinho!
_ Você cala essa boca, sua vagabunda!!! – protestou mais uma vez Raquel,
desta vez esbofeteando a cara rosada do cliente, fazendo com que ele despejasse
lágrimas de felicidade de seus olhos agora com a expressão ainda mais doce.
O próximo passo da profissional foi arrancar o vestido vulgar do
cliente. Depois lhe desferiu mais um ou
dois tapas na cara, chegando a abrir-lhe o canto do lábio superior. Um filete de sangue escorreu pela boca. Os olhos da “esposa” submissa encontraram os
do “marido” violento no mesmo momento em que este tinha numa das mãos um enorme
brinquedinho, a outra deixava cair no carpete sua bolsa prateada. Almir se desfez em felicidade.
_ Chupe!!! – ordenou Raquel.
Depois de mais de vinte minutos se deliciando com os 22 centímetros do
brinquedo de Raquel, Almir se posicionou de joelhos e, apoiando as duas mãos no
gasto carpete, implorou para que fosse sodomizado. Mas o pedido veio de forma não muito comum,
como bem mostram suas palavras:
_ Pedro Paulo, por favor, coma a boceta da sua mulherzinha!
Raquel se posicionou atrás do amante da ocasião e lhe sodomizou de forma
violenta, proporcionando-lhe o mais desvairado dos orgasmos. E antes mesmo daquele corpo submisso tombar
de exaustão, a dama da noite retirou de sua bolsa uma faca já assassina e
degolou o amante. O sangue jorra e
inunda o velho carpete azul lhe dando novo colorido. Nenhum som sai da boca da pobre “mulher” que
só queria ser amada pelo cruel “marido”...
que ela cismava em chamar de Pedro Paulo.
De
especulação à prova
22h47...
Naquela mesma noite, Medeiros e Felício pararam a viatura na rua Rainha
Elizabeth, esquina com a av. Atlântida,
em Copacabana, onde um transexual de nome Samanta fazia ponto há algum tempo. Felício fez um sinal com a mão direita e
chamou a profissional dos prazeres carnais.
_ O que você quer, tira? – quis saber Samanta, que já conhecia de vista
os dois policiais.
_ Calma, não precisa ficar assustada, minha querida. Não queremos aprontar com você. Só estamos atrás de algumas informações –
falou Felício convidando o transexual a entrar na viatura.
Samanta olhou desconfiada e tentou se livrar o mais rápido possível dos
dois policiais.
_ Olha aqui, meu querido, ainda não fiz nem um cliente sequer hoje. Se é dinheiro que vocês estão querendo, pegou
a menina errada – disse Samanta.
_ Não queremos seu dinheiro, só queremos conversar. Agora, se você preferir, a nossa conversa
pode ser lá na delegacia – ameaçou Felício.
A boneca pensou por alguns instantes.
Ela não queria parar outra vez na delegacia, onde seria tratada como um
ser alienígena. Além do mais, poderia
ser colocada numa cela com outros presos, o que poderia significar o seu
fim. Algumas de suas amigas de profissão
já tinham apanhado e sido abusadas quando foram presas. Acabou aceitando o convite de Felício e
entrou no carro, sentando no banco de trás.
_ Qual é o seu nome? – perguntou Medeiros oferecendo um cigarro ao
transexual.
_ Samanta, bonitão – respondeu o transexual pegando o cigarro da mão do
policial.
_ Muito bem, Samanta, nós só queremos fazer algumas perguntas. Se você for boazinha, vai poder voltar mais
rápido para o seu local de trabalho – disse Felício.
_ O que vocês querem?
_ Olha, houve um assassinato no bairro há duas semanas – falou o parceiro
de Medeiros.
_ Meu querido, todos os dias morrem milhões de pessoas em todo mundo
- Samanta cortou o policial.
_ Deixe de gracinha e cale essa boca! – gritou Medeiros.
_ Calma, cara! Sei que ela vai nos
contar tudo o que sabe. Não é Samanta?
_ Cla...claro que vou, querido – concordou o transexual quase deixando o
cigarro escorregar entre os dedos.
_ Samanta, o que nós queremos saber é se você sabe de alguma coisa
relacionada ao assassinato cometido na rua Dias da Rocha há duas semanas –
falou Felício.
_ Por acaso você está falando daquele coroa que teve a garganta cortada?
_ Isso mesmo! Você sabe de alguma
coisa? – perguntou novamente Felício.
_ Sei o que todo mundo sabe, que o tal sujeito foi encontrado pela
empregada. Não sei de mais nada, a não
ser as coisas que saíram nos jornais.
Falaram até que foi uma prostituta que fez isso, não foi?
_ Isso, mas tenho razões para desconfiar de alguma amiguinha sua –
continuou Felício.
_ Amiga minha? Imagina,
querido! Por que alguma biba faria uma
coisa dessas?
_ Não sei. Talvez pra se
defender... Você sabe de algum travesti
novo nas ruas? Algum travesti mais
violento? Algum travesti que se passaria
facilmente por mulher? Loira? – disse
Felício.
_ Bem, menina nova nas ruas... Sei
de duas que estão nas ruas há mais ou menos uma, duas semanas no máximo. Uma veio do nordeste, acho que de Pernambuco
ou Paraíba, não sei direito. Não sei se
é violenta, mas não é muito bonita, nem chega aos meus pés. Já a outra é de Minas. Sei disso porque a conheci na casa de uma
amiga. O nome dela é Pamela. É bonita, tem um corpão, é loira e engana
muito bofe. É, acho que ela passa
facilmente por mulher – informou Samanta.
_ E onde posso encontrá-la? – perguntou Felício.
_ Sei que ela faz show lá na boate Galaxy, no Lido. Ouvi dizer que ela tem caso com um
ricaço. Bem, acho que é só! Vocês acham que foi ela que matou o tal
coroa?
_ Estamos investigando, Samanta. Meu nome é inspetor Felício, meu amigo é
o inspetor Medeiros. Aqui está o
telefone da delegacia. Se você souber de
mais alguma coisa, nos procure. Por
enquanto, obrigado pelas informações.
Obrigado e boa noite – disse o policial entregando um cartão com o
telefone da delegacia ao transexual.
Boate
Galaxy
23h28...
As pessoas se aglomeravam na entrada da boate Galaxy, onde se apresentam
as bonecas mais belas do Brasil, segundo o cartaz ao lado. Nele há fotos de transexuais vestindo plumas
e paetês coloridos.
Medeiros e Felício estão em frente à boate observando o movimento. Relembram o pequeno interrogatório que
fizeram há pouco.
_ Felício, o que você achou da história do traveco?
_ Bem, talvez essa história dessa tal Pamela seja apenas especulação, mas
é o que temos até o momento. E aprendi
na polícia que se não temos algo palpável, podemos partir de uma especulação e
chegarmos a uma pista. Da pista
acharemos os indícios e, dependendo da consistência destes, até mesmo pela sua
obviedade, poderemos encontrar o que estamos procurando, ou seja, a prova.
_ É, não custa tentar... – concordou Medeiros, dando um peteleco na
guimba do cigarro que acabara de fumar.
Desceram do carro e entraram na boate apenas mostrando as insígnias de
policiais ao enorme segurança postado na porta.
Sentaram no bar da boate, onde pediram duas cervejas.
_ Ei, meu chapa, quem vai se apresentar hoje? – perguntou Felício.
_ A Doroth Star e a Sabrina Hill – informou o barman.
_ E a Pamela? – quis saber o parceiro de Medeiros.
_ Qual Pamela? A mineirinha?
_ É essa mesma.
_ Acho que não. Ela teve de sair
hoje e desmarcou a apresentação.
_ Você sabe aonde ela foi?
_ Ei, quem são vocês? Canas? –
desconfiou o barman levantando a voz.
Felício nem respondeu, apenas mostrou a insígnia policial. O barman,
então, baixou o tom de voz.
_ O que vocês querem com a Pamela?
– quis saber o barman.
_ Só queremos conversar com ela, amigo.
Pode ficar tranqüilo – Medeiros colocou panos quentes na conversa,
enquanto acendia um cigarro.
_ Olha aqui, não sei onde ela está.
Só sei que recebeu um telefonema e teve de sair mais cedo – finalmente
respondeu o homem do bar, enquanto preparava uma bebida para um freguês.
_ E quais são os dias dos shows dela? – continuou Medeiros.
_ Terça, quinta e sábado, ás vezes na sexta também.
_ Obrigado, amigo – se despediu Medeiros bebendo o último gole da sua
cerveja.
Assim que os dois policiais se levantaram e viraram as costas para sair,
o barman levantou o dedo médio da mão direita
em direção a eles. Ele completou o gesto
com as seguintes palavras proferidas em resmungo: _ Cornos filhos da puta!
O
segundo cadáver
Quarta-feira, 12 de fevereiro de 2003, 11h55...
As sirenes das viaturas policiais se confundem com a do rabecão. Os carros são obrigados a subirem na calçada,
pois não há estacionamento na rua Voluntários da Pátria.
O apartamento estava tomado de um cheiro de carne podre. O sangue havia transformado o azul desbotado
do carpete em um tom amarronzado. O
cadáver da segunda vítima de Raquel jazia fúnebre.
_ Mais uma vítima da boneca degoladora – disse Raul assim que viu
Medeiros e Felício entrarem no apartamento.
_ Mesmo método? – perguntou Medeiros tragando seu vício.
_ A vítima foi degolada com um só golpe – confirmou o perito.
_ E quem encontrou o corpo? – quis saber Felício.
_ A vizinha reclamou com o síndico do mau cheiro vindo do
apartamento. O síndico e o porteiro
tocaram a campainha, mas como ninguém atendeu, resolveram chamar a
polícia. E aqui estamos na presença de
mais uma vítima desse travesti escroto – explicou Raul.
_ Dá pra saber há quanto tempo ele foi assassinado? – perguntou novamente
o parceiro de Medeiros.
_ Há pelo menos três dias, talvez mais.
Como tem feito um calor infernal, não dá pra saber com tanta
precisão. Só depois do exame cadavérico
– disse Raul.
_ Ele tinha parentes? - perguntou
Medeiros.
_ Mãe, pai, irmãos... Mas ninguém
mora aqui no Rio. Ele era de
Itaguaí. Chamava-se José Almir de
Medeiros, era corretor de imóveis, 45 anos, relativamente bem de vida. Ajudava a família, principalmente os pais e
uma irmã. Quem disse isso foi o porteiro
– informou o perito.
_ Alguma coisa roubada? – nova pergunta do policial Felício.
_ Aparentemente nada! Nem sinal de
briga há no local. Parece que a vítima
foi degolada logo após chegar ao orgasmo, já que parece haver esperma no
carpete – disse Raul.
_ Notei que não há câmeras no prédio...
_ Isso mesmo, Felício. Esse
travesti deve estar escolhendo suas vítimas de acordo com a segurança dos
edifícios – supôs Raul.
_ Alguém viu o traveco entrar no prédio? – perguntou Medeiros.
_ Não, mas viu sair. Foi uma
senhora do quarto andar, mas ela não soube precisar se foi na noite de sábado
ou de domingo. Segundo as palavras dela,
era uma mulher muito chamativa, dessas de reputação não muito ilibada. No popular, era uma prostituta, mas a
testemunha é uma senhora de mais de 70 anos e um pouco avessa a palavras de
baixo calão – explicou o perito.
_ Essa é boa. Digitais? – Medeiros
fez nova pergunta.
_ Existem impressões digitais na maçaneta da porta, que iremos confrontar
com as encontradas no apartamento da primeira vítima. Tenho certeza de que são da mesma pessoa –
informou o perito.
_ Não vai me dizer que o telefone daqui foi cortado por falta de
pagamento?
_ Não! Simplesmente, a vítima não
tinha telefone, Medeiros!
_ Um corretor de imóveis sem telefone? – estranhou Felício.
_ Pois é, usava apenas celular. E
todas as chamadas foram apagadas. Vamos
ver se conseguimos com a operadora as últimas ligações feitas e recebidas.
_ Excelente! – exclamou Medeiros acendendo um cigarro.
O pessoal do rabecão foi autorizado a remover o corpo, que seria transportado
até o IML a fim de ser realizada a necropsia.
O
quebra-cabeça
Ainda quarta-feira...
Medeiros e Felício saíram da rua
Voluntários da Pátria e foram direto à 12ª DP, onde fizeram o relatório do
caso. O delegado Marcos Alexandrino
estava furioso com os dois assassinatos ocorridos num intervalo de menos de 15
dias.
_ Olha aqui, Medeiros, quero esse travesti engaiolado em 48 horas! A imprensa já está em cima de mim. O secretário de segurança está me
pressionando. E eu não vou segurar essa
barra sozinho! Quero o assassino em dois
dias! Façam o que for preciso, mas quero
essa bicha degoladora atrás das grades!
_ Estamos fazendo o possível, delegado – se defendeu Medeiros.
_ Então, façam o impossível! – protestou o delegado Alexandrino, que logo
em seguida foi para a sua sala e fechou a porta. Pela parede envidraçada deu para ver que ele
pegou o telefone e fez uma ligação.
Felício, vendo a cara de desânimo do parceiro, o chamou para tomar um
chope. Medeiros, não tendo melhor
programa, aceitou o convite. Mas assim
que se preparavam para colocar o pé na rua, avistaram um redemoinho de
repórteres e cinegrafistas tentando entrar na delegacia.
_ E aí, companheiro, o que a gente faz? – perguntou Felício.
_ Por mim, a gente abre caminho – respondeu Medeiros.
Os dois policiais foram de encontro à multidão de jornalistas, que
tentaram entrevistá-los, mas sem sucesso.
Eles pediram licença e foram passando sem maiores problemas, mesmo
porque em quem os repórteres estavam de olho era no delegado Marcos Alexandrino.
* * * * *
Já devidamente acomodados em uma mesa num boteco qualquer de Copacabana,
os dois policiais degustam os primeiros goles dos chopes geladíssimos.
_ Ah, nada como um chopinho depois de um dia cheio! – suspira Medeiros
dando mais uma tragada em um cigarro.
_ É verdade! Mas me conta! O que
você está achando desse caso?
_ Está tudo meio embaralhado na minha cabeça. Mas estive pensando nessa tal Pamela. Penso que ela é o nosso ponto de partida para
resolver esse caso.
_ Também acho isso. Talvez ela
seja mesmo a chave desse mistério.
Vamos dar um pulo lá naquela boate amanhã.
_ Pois é, amanhã é quinta, dia de show da tal Pamela.
_ Eu sei, eu sei... Amanhã a gente vai lá sem falta! E se tivermos sorte, conseguiremos uma
confissão da boneca.
O celular de Medeiros toca. Ele
olha no visor e reconhece o telefone da Tereza.
Ele não quer atender, mas acaba fazendo-o por insistência de Felício. Mas mesmo assim é monossilábico com a
amante. Depois que desliga o aparelho,
Medeiros observa o sorriso sarcástico do parceiro.
_ Do que você está rindo?
_ Da sua cara, Medeiros. O que
houve entre você e a Tereza? Não vai me
dizer que você tá dispensando aquela gata?
_ Não é isso...
_ Ah, não? Então o que é? Arrumou outra?
_ Puxa, você tá até parecendo a Tereza falando. Ela me perguntou a mesma coisa.
_ E nós temos motivo?
_ Não, dessa vez não! Há mais de
seis meses só tenho saído com ela.
_ Ah, então o garanhão está andando na linha!?
_ Não enche, Felício!
_ O que está havendo, então?
_ Nada! Poxa, não posso dar um
tempo? Estou precisando de um tempo,
cara!
_ Tudo bem, meu irmão. Não tá mais
aqui quem falou.
_ Às vezes dá até vontade dela arrumar outro!
_ Não olhe pra mim, cara! Não
gosto de ir contra a minha natureza!
_ Do que você está falando, Felício?
_ Nada! Apenas não ia trair a
confiança de um amigo – desconversou o parceiro de Medeiros.
Os dois colegas preferiram não esticar muito a sessão de chopes e, depois
de mais algumas rodadas, resolveram ir embora.
Medeiros morava na rua Siqueira Medeiros; Felício, na rua Barata
Ribeiro, esquina com a rua Hilário de Gouveia.
Um
suspeito
Quinta-feira, dia 13 de fevereiro de
2003...
Meia-noite, a viatura da Polícia Civil para em frente à Galaxy. Medeiros e Felício observam o movimento na
entrada da boate, a enorme maioria de homens, mas algumas mulheres também se
aproximam para apreciar os dotes artísticos das ditas mulheres de tromba, como
alguns indiscretos costumam se referir aos transexuais.
_ Preciso comprar cigarro, Felício.
_ Agora???
_ Pô, fazer o quê? Tô com vontade
de fumar!
_ Tá, tá! Então, vai logo, cara,
pois já está na hora de agir.
Medeiros abre a porta do carro e ruma em direção ao boteco na
esquina. Em cinco minutos já está de
volta tragando um cigarro. Nem entra no
carro, faz apenas um sinal para o colega.
Os dois entram na Galaxy, nem precisam mostrar as insígnias
policiais.
A boate não está tão cheia como da vez que estiveram ali, num
sábado. Os policiais se dirigem ao
balcão, onde Felício faz um sinal ao mesmo barman
que lhes dera as informações sobre a transexual Pamela.
_ A mineirinha está aí – o barman
disse antes mesmo dos policiais perguntarem.
_ Chame-a! – mandou Felício.
_ Será que não dá pra esperar até ela acabar o show? Veja, ela já está entrando.
Felício e Medeiros se viram e ficam admirados com a beleza estonteante do
lindo transexual. O elegante vestido
vermelho com plumas e paetês prateados realça ainda mais o corpo escultural de
Pamela. Ela dubla Timi Yuro
interpretando Hurt. Suas pernas são torneadas, musculosas sem
serem masculinizadas, os seios fartos parecem querer saltar do generoso decote,
as nádegas dignas das melhores mulatas do Sargenteli.
_ Cara, nunca vi uma boneca como essa! – fala um embasbacado Medeiros.
_ Muito bonita – concorda Felício.
_ Essa aí me engana direitinho.
_ É uma mulher! Só que não tem
xoxota.
Pamela nota Medeiros e Felício na platéia, nem imagina que são policiais
e estão ali atrás dela. O transexual
joga charme para os dois, enquanto faz os últimos movimentos labiais de sua
primeira performance da noite.
_ Obrigada, muito obrigada! Vocês
são ma-ra-vi-lho-sos! – Pamela agradece os aplausos entusiasmados das pessoas
presentes.
Medeiros observa a artista deixar o palco. Por um instante esqueceu o verdadeiro motivo
por estar ali. De repente Felício dá um
toque em seu ombro, despertando-o para a situação. Os dois se dirigem ao barman, que acena com a cabeça, logo se dirigindo ao
camarim para chamar o transexual.
_ Pamela!
_ O que é, Chico?
_ Tem dois canas aí querendo falar com você.
_ Canas? Você sabe o que eles
querem?
_ Não, mas já vieram aqui outra vez te procurando, mas você não estava.
_ Uai, o que será que eles querem comigo?
_ Não sei, mas acho melhor você ir lá falar com eles.
_ Tá bom, diga a eles que já vou.
O barman retorna e
informa aos policiais que Pamela já está vindo.
Enquanto isso, Medeiros pede duas cervejas e acende mais um
cigarro. Não demora muito e aparece a
loira que passaria facilmente por uma mulher, segundo a opinião de
Medeiros. Mulher sem xoxota, como disse
Felício.
_ Boa noite! São vocês os
policiais que querem falar comigo?
_ Sim, somos nós – responde Felício, enquanto Medeiros observa o
transexual quase não acreditando que não está diante de uma mulher.
_ E o que vocês querem, posso saber?
_ Já vai saber, minha querida.
Onde podemos conversar? – perguntou Felício.
_ Hum... No meu camarim, se vocês não se importarem.
_ Tudo bem – concordou Felício.
Pamela deu meia volta e se dirigiu ao camarim, sendo seguida pelos dois
policiais. Ao entrarem, Shirlley Midler,
também artista da casa noturna, estava dando os últimos retoques na maquiagem.
_ Uau, Pamela! Mas que gatos são
esses? – perguntou Shirlley.
_ Nada do que você está pensando, querida! Você pode nos dar licença um minutinho? É que a gente precisa tratar de um assunto –
pediu Pamela.
_ Tá bom, já entendi o porquê da fama que o mineiro tem de comer quieto –
Shirlley se referiu à naturalidade da colega, saindo às gargalhadas do
camarim.
_ Não liga, ela é meio maluca – se desculpou Pamela pelas palavras de
Shirlley.
_ Pamela, onde você estava nas noites dos dias 25 de janeiro e 08 de
fevereiro? – Felício perguntou.
_ Por quê?
_ Foram as noites em que houve dois assassinatos, sendo um aqui no bairro
– respondeu Medeiros.
_ E o que eu tenho a ver com isso?
Vocês não estão pensando que eu matei alguém... Ou estão?
_ Tudo vai depender do que você responder – disse Medeiros.
_ Vinte e cinco de janeiro, 08 de fevereiro... Que dia caiu?
_ Sábado – respondeu Felício.
_ Hum... Puxa, o que é que eu fiz nesse dia? Ah, já sei, fiquei em casa.
_ Alguma testemunha? – perguntou Medeiros.
_ Não, eu estava sozinha. E isso
importa?
_ Você mora aqui mesmo no bairro? – perguntou Felício.
_ Moro. Moro na rua Barata
Ribeiro.
_ O porteiro do prédio pode confirmar que você ficou em casa? – perguntou
Medeiros acendendo um cigarro.
_ Acho muito difícil aquele babaca se lembrar até do que comeu hoje no
almoço. Ele fica bêbado o tempo
todo!
_ Você sempre veste vermelho? – perguntou Felício.
_ Vermelho é a cor da paixão, querido!
E eu sou uma mulher sempre apaixonada!
_ Qual o número da Barata Ribeiro que você mora? – perguntou Felício.
_ Cento e noventa e quatro.
Apartamento 210.
O parceiro de Medeiros pegou um bloco e uma caneta no bolso da camisa,
entregou os objetos ao transexual e lhe pediu que anotasse o seu endereço e
nome completo.
_ Muito bem. É só isso. Talvez a gente volte a te procurar, Pamela –
disse Felício já se virando para ir embora.
_ Ei, vocês não me disseram quem foi assassinado!
Felício, já na porta do camarim, voltou o rosto para Pamela e disse: _
Você deveria ler mais jornal, querida.
A
obviedade dos indícios
Sábado, 15 de fevereiro de 2003, 8h52...
O telefone toca insistentemente, enquanto o homem está debaixo do
chuveiro. Ele deixa escapar um palavrão
sem grandes conseqüências morais, se enrola na toalha e sai patinando pelo
apartamento até chegar ao aparelho.
_ Alô!
_ Alô! Medeiros? Sou eu, Felício.
_ Fala, meu irmão. O que houve?
_ Olha, estou aqui em frente ao IML.
Não passe na delegacia, venha direto pra cá.
_ Já tá sabendo de alguma novidade?
_ Ainda não, mas o Raul tá aqui comigo.
A gente só tá esperando o Dr. Antônio Manoel chegar pra ele expor o
resultado da necropsia.
_ Só vou colocar a roupa e já tô saindo.
Dentro de meia hora estou chegando.
_ Mas vê se não demora!
_ Pode deixar, já tô quase chegando aí.
_ Um abraço.
_ Outro.
Medeiros nem volta para acabar seu banho.
Termina de secar o corpo e veste a primeira camisa que encontra. Veste-se em menos de cinco minutos. Pega a carteira, a pistola e as chaves do
carro. Mais cinco minutos e já está no
trânsito a caminho do IML, onde chega um pouco depois do tempo combinado com o
colega. Logo avista o perito Raul
conversando na portaria do IML com o Dr. Antônio Manoel. Não vê Felício, que com certeza deve estar
por perto.
_ Bom dia, Raul! Bom dia, doutor!
_ Bom dia – o perito e o médico respondem quase ao mesmo tempo.
_ Cadê o Felício?
_ Foi ao banheiro, mas já deve estar voltando – respondeu Raul.
Quando o parceiro de Medeiros aparece, os dois inspetores e o perito
seguem o Dr. Antônio Manoel até a sala onde está o corpo de José Almir de
Medeiros, a segunda vítima de Raquel. Lá
chegando, os três policiais não se sentem incomodados com o forte cheiro de
formol. O médico do IML já nem se dá
conta do odor característico do produto químico, haja vista tantos e tantos
anos trabalhando com cadáveres.
_ Meus amigos, como vocês podem ver, o assassino usou a mesma técnica do
primeiro caso. Isto é, com um detalhe...
– Dr. Antônio faz uma pausa com intuito de causar certo suspense e, até mesmo,
valorizar seu ofício.
_ Que detalhe? – perguntou Felício.
_ A vítima estava de costas quando foi atacada – revelou o médico.
_ Como o senhor pode saber disso?
_ Simples, inspetor Medeiros.
Levando-se em conta que o assassino é canhoto, e o golpe foi desferido
da direita para a esquerda, tanto faz levando-se em conta a posição do
assassino quanto da vítima. Este último
foi sodomizado, pois também foram encontrados restos de fezes ao redor do ânus,
que estava com a anatomia um pouco comprometida. Além disso, foram encontrados vestígios de
sêmen no carpete do apartamento da vítima, sendo que o corpo estava em decúbito
ventral. Posso até lhes garantir que o
assassinato ocorreu logo após a vítima ter chegado ao orgasmo. Como no outro caso, não foi encontrado
vestígio de sêmen do assassino.
Provavelmente ele tem um controle muito grande até sobre a sua
pré-ejaculação. Porém o mais certo mesmo é que ele tenha usado preservativo.
_ Fantástico! – exclamou Medeiros.
_ Não creio que chegue a tanto, mas muito obrigado pelo elogio. Diria apenas que segui a lógica da situação
encontrada.
_ E o senhor seria capaz de precisar o horário do assassinato? – quis
saber Felício.
_ Levando-se em conta o estado do corpo, diria, sem medo de ficar muito
longe da verdade, que o óbito se deu entre as 18 horas do último sábado e as 6
da manhã de domingo.
_ O senhor nos esclareceu muitas coisas, doutor! – Felício ficou
entusiasmado.
O perito e os dois inspetores agradeceram à aula do Dr. Antônio Manoel e
voltaram para a delegacia. Durante o
percurso, Felício foi o primeiro a puxar conversa.
_ Raul, você conseguiu descobrir as últimas ligações do celular do José
Almir de Medeiros?
_ A operadora telefônica ficou de me enviar um fax hoje. Assim que chegarmos na delegacia, vou
verificar.
_ Excelente!
_ E os exames das digitais? – perguntou Medeiros.
_ Idênticas! O assassino é o
mesmo! – garantiu Raul.
_ Muito bem! Acho que já ultrapassamos
o estágio da especulação, meus amigos.
Diria até que temos provas suficientes para prender o assassino! –
exaltou-se Felício.
_ E quem é o assassino? – perguntou Raul.
_ Se não estou enganado, é o traveco que nós estivemos investigando – arriscou
Medeiros.
_ Exato, parceiro! Você se lembra
de quando pedi para a Pamela escrever o nome e o endereço dela? Pois é, ela é canhota! E ela adora vermelho, a mesma cor do vestido
usado pelo travesti que matou o professor de psicologia.
_ Filosofia, Felício – corrigiu Medeiros – tragando seu cigarro.
_ Sim, sim, professor de filosofia – consertou Felício.
Assim que chegaram à delegacia, Raul foi verificar se já havia chegado o
fax da companhia telefônica. Enquanto
isso, Felício e Medeiros foram contar as últimas novidades ao delegado Marcos
Alexandrino.
_ Vocês têm certeza?
_ Claro, delegado! Só pode ser ela
a assassina – confirmou Felício.
_ Ótimo! Vou providenciar o
mandado de prisão. Quero essa boneca
hoje mesmo atrás das grades. Hoje a imprensa
vai ter de me aplaudir! – disse Alexandrino.
A
quase prova
11h40...
Raul entra na sala onde já estão o delegado Alexandrino e os inspetores
Medeiros e Felício.
_ Eis as ligações dos últimos dois dias do celular da segunda vítima! –
disse um exultado Raul balançando o papel do fax que acabara de receber.
No fax constavam informações preciosas para a investigação policial:
vários números de telefones e seus respectivos proprietários. Felício correu os olhos pela lista, mas não
encontrou o nome de registro de Pamela.
“Com certeza o celular que ela portava era comprado de terceiros, daí
não estar em nome de Paulo César Soares, o verdadeiro nome do transexual”,
pensou o parceiro de Medeiros. “A menos
que Pamela estivesse mentindo quanto ao seu verdadeiro nome...”, concluiu.
Em menos de uma hora, o delegado recebeu o mandado de prisão em nome de
Paulo César Soares. Medeiros e Felício
estavam tomando um cafezinho. Medeiros,
com um cigarro entre os dedos, soltava mais uma baforada.
_ Vamos, parceiro – disse Felício.
Em pouco tempo os dois policiais estavam a caminho do apartamento de
Pamela. Não demoraram muito, não mais
que 20 minutos, já que a delegacia fica próxima. Talvez, se fossem a pé, levariam menos
tempo. Estacionaram a viatura em local
proibido, mas policiais são policiais, a eles são permitidas certas
transgressões em nome da lei e da ordem.
A fachada do edifício não atrairia nem mesmo o comprador menos
exigente. O porteiro não estava na
entrada, o ambiente cheirava a mofo.
Tentaram o único elevador, mas ele estava fora de serviço. Foram pela escada, a maioria dos bocais de
energia sem lâmpadas ou com as mesmas queimadas formava uma penumbra propícia a
delitos. Tateando as paredes pelas
sombras, os policiais conseguiram chegar ao segundo andar. Agora era só encontrar o apartamento
210. A maioria das portas estava sem
número. Havia apenas os números 203, 207
e 208. Seguindo a lógica sequencial, os
dois deduziram que o apartamento de Pamela estava atrás de uma velha porta de
compensado barato. No lugar onde deveria
estar a campainha, apenas um buraco com alguns fios soltos. Bateram na porta. Nenhuma resposta. Bateram outra vez, agora mais forte. Nada.
_ É... Parece que a boneca não
está em casa – disse Medeiros já dando meia volta.
_ Espere! Acho que ouvi algo –
falou Felício.
Passos vindos de dentro do apartamento confirmaram a suspeita do parceiro
de Medeiros. Logo a porta se abre. A imagem de Pamela àquela hora da manhã em
quase nada lembrava a da glamourosa artista da boate Galaxy. Vestia uma camisola de seda, é verdade, mas
seus belos cabelos loiros deram lugar a uma carapinha. Profundas olheiras completavam a imagem nua e
crua da criatura que saiu de Bicas, interior das Minas Gerais para tentar a
sorte grande na Cidade Maravilhosa.
_ Ah, são vocês! O que querem a
esta hora da madrugada?
_ Considere-se detida! – intimou Felício.
_ O quê? Mas por que vocês estão
me prendendo?
_ Dois homicídios! Inspetor
Medeiros, leia os direitos do acusado.
A cena que se seguiu foi a histeria de Pamela, ou melhor, Paulo César
Soares, acusado de ser o responsável pelos assassinatos ocorridos em Copacabana
e Botafogo. Medeiros teve de usar a
força para imobilizar o acusado, enquanto Felício colocava as algemas nos
pulsos de Pamela, os mesmos pulsos onde costumavam trincolejar um emaranhado de
pulseiras de gosto duvidoso.
Pamela foi arrastada até a viatura.
As pessoas, na rua e nas janelas dos edifícios, paravam suas atividades
para verem a tentativa dos policiais de colocarem o transexual dentro do
carro. Gritos de “prende esse veado”,
“não deixe a bicha fugir” dividiam os sons do meio-ambiente com as buzinas e os
motores dos carros. Copacabana parou,
mesmo que por apenas alguns instantes.
Quando a viatura estacionou em frente à delegacia, os jornalistas que
aguardavam a chance de entrevistar o Dr. Marcos Alexandrino transferiram seus
olhares para os dois policiais e o transexual.
Felício de um lado, Medeiros do outro, os dois inspetores quase erguiam
Pamela, que mal tocava o chão.
_ É esse o Degolador? – perguntava um repórter.
_ Como vocês chegaram a ele? – outro repórter queria saber.
_ Ele confessou os assassinatos? – mais um repórter tentava arrancar
alguma informação preciosa.
_ Eu sou inocente! Sou inocente! –
gritava Pamela.
Nada. Nenhuma palavra dos
policiais, enquanto iam abrindo caminho entre a barreira de jornalistas. Finalmente conseguem entrar na delegacia,
onde alguns policiais fazem um cinturão impedindo a entrada dos profissionais
da imprensa.
_ Eis o nosso homem, delegado! – afirma Felício apontando para o
transexual.
_ Então, senhor Paulo César Soares, o que te levou a cometer esses
assassinatos? – perguntou o delegado.
_ Não matei nem uma barata. Esses
dois sujeitos apareceram no meu apartamento e me prenderam sem mais nem
menos. Sou inocente! – falou Pamela
entre soluços e lágrimas.
_ Não adianta negar, Paulo César.
As provas contra você são substanciais! – falou um extasiado
Alexandrino.
_ Que provas? Que provas? Como
pode haver provas se não fui eu que fiz aquilo com aqueles caras?
_ Inspetor Felício, apresente as provas contra o acusado – mandou o
delegado.
_ Bem, segundo a perícia policial, os assassinatos foram cometidos por um
travesti, que manteve relações sexuais com as vítimas. De acordo com as informações das testemunhas,
o perfil do assassino bate com o do senhor Paulo César Soares, vulgo
Pamela. Inclusive, segundo a perícia, o
assassino é canhoto, da mesma forma que o suspeito, que também não possui álibi
algum. Portanto, de acordo com as provas,
pela minha experiência policial, afirmo que estamos diante do assassino de
Armando Quintela e José Almir de Medeiros. Apenas como prova conclusiva, mais
como rotina, o acusado terá suas impressões digitais confrontadas com as
encontradas nos locais dos crimes – concluiu o confiante Felício.
_ Isso é um absurdo! - tentou se
defender Pamela.
_ Leve o suspeito para as averiguações, Felício – disse o delegado,
enquanto pensava o que diria à imprensa, que tanto o vinha massacrando nos
últimos dias.
Digitais
conclusivas
15 h...
Pamela foi levada para a sala do papiloscopista Araújo, que foi logo
pegando as mãos do transexual e borrando seus dedos.
_ Alguma vez na vida você já tocou piano? – perguntou Araújo, enquanto
apertava cada dedo de Pamela em uma folha própria para impressões de digitais.
_ Não – Pamela respondeu meio contrariada
_ Pois é, sempre tem a primeira vez – disse o papiloscopista.
_ Araújo, em quanto tempo saberemos se as digitais dela batem com as
encontradas nos locais dos crimes? – quis saber Felício, que estava muito
confiante em sua tese.
_ Em cinco minutos.
_ Vocês querem café? – Lima ofereceu aos dois inspetores.
_ Aceito – disse Medeiros enquanto sacava um cigarro. Seu companheiro apenas fez um sinal de
positivo com a cabeça.
Felício estava ansioso, não via a hora de ter a prova cabal dos
assassinatos que estavam mexendo com a opinião pública nos últimos dias. Seria a consagração tão sonhada em tantos
anos de profissão. Claro, ele já havia
desvendado homicídios, aliás, era o que vinha fazendo desde que entrou para a
Polícia Civil. No entanto, a descoberta
do Degolador da Zona Sul, alcunha criada pela imprensa carioca, seria a
consagração de sua carreira.
_ Felício.
_ O que foi, Araújo? – o inspetor não gostou do tom de voz do papiloscopista.
_ Venha aqui um minuto.
Felício entra numa saleta dentro da sala de Araújo. É onde o papiloscopista estava fazendo a
comparação das digitais encontradas nos locais dos crimes com as de
Pamela. A expressão no rosto do parceiro
de Medeiros é tensa, ele olha para Araújo em busca da confirmação de que sua
tese é sustentável.
_ Não é ele!
_ Como não é ele? Você deve estar
errado! Não é possível! – Felício vê
todas as condecorações descerem pelo ralo.
O inspetor dá as costas ao papiloscopista, passa por todos na sala e se
dirige ao seu parceiro.
_ Fique de olho no suspeito. Tenho
de falar com o Alexandrino.
_ O que foi, Felício? – quis saber Medeiros.
_ Logo você vai saber, meu amigo – o inspetor respondeu já no corredor.
* * * * *
Já na sala do delegado Marcos Alexandrino, Felício conta a última
novidade.
_ Mas como não é ele? Como vou
explicar isso ao secretário de segurança?
E o que o governador vai falar? A imprensa vai cair de pau em cima de
mim! – lamentava Alexandrino.
_ Temos de soltar o suspeito. Não
temos motivo para mantê-lo preso – disse Felício.
O telefone toca.
_ Espere um instante, Felício – pede o delegado, enquanto pega o
aparelho.
Alexandrino reconhece a voz do secretário de segurança.
_ Como vai o senhor, seu Bambinni?
_ Depende do que você tem a me dizer em relação ao suspeito. Então, os seus homens estavam certos mesmo?
_ ... Infelizmente...
_ O que você quer dizer com infelizmente, Alexandrino?
_ Bem, as digitais do suspeito não conferem com as encontradas.
_ Que porcaria é essa? Você está
me dizendo que seus homens falharam?
Você está de brincadeira comigo?
_ ... Infelizmente, não, senhor.
_ E quem mais sabe que as malditas digitais não conferem?
_ Somente eu, o papiloscopista e os policiais responsáveis pelo caso,
senhor.
_ Não faça coisa alguma até a segunda ordem. Mantenha essa informação sob o maior
sigilo. Retorno daqui a pouco para dar
as coordenadas.
_ Mas e o suspeito? Não posso mais
mantê-lo detido.
_ Segure as pontas, Alexandrino! E
bico calado! Ligo daqui a pouco! – logo
em seguida o secretário de segurança Antenor Bambinni desliga o telefone.
Felício observa o seu superior.
Ele nunca havia visto o delegado Marcos Alexandrino tão nervoso. O inspetor sabe que algo está para acontecer
e, com certeza, não é coisa boa. A bomba
pode estourar a qualquer momento, e quem estiver por perto vai ser atingido
pelos estilhaços. Os minutos passam
lentamente, aumentando ainda mais o clima tenso na sala do delegado. Finalmente o telefone volta a tocar,
Alexandrino nem espera dar o segundo toque para atender.
_ Pronto!
_ Alexandrino, deixe a coisa como está! – disse o secretário de
segurança.
_ Não estou entendendo, senhor secretário.
_ Meu filho, ninguém precisa saber que não foi essa bicha que assassinou
aqueles dois. Vamos manter a história
como está. Se mexermos mais nisso, vai
feder. Quero que você apresente esse
veadinho como sendo o autor desses crimes.
_ Mas...
_ Não tem mais nem menos, Alexandrino!
Ou você quer perder o seu emprego?
_ Não... Claro que não, senhor.
_ Então, siga as ordens. O próprio
governador Rosendo Matheus me disse agora mesmo que quer jantar assistindo à
prisão desse veadinho no Jornal Nacional.
_ Sim, senhor. Vou providenciar
para que o governador tenha a sua vontade atendida.
_ Muito bem, Alexandrino. Você
ainda é jovem, mas já está aprendendo como a banda toca – falou o secretário de
segurança desligando o telefone em seguida.
O delegado Alexandrino vira-se para Felício.
_ Ninguém mais pode saber do que você acabou de me contar, Felício.
_ Como assim, delegado? Não estou
entendendo.
_ Coloque o suspeito numa cela.
Quero-o sozinho. Depois chame
todos que sabem do resultado do confronto das digitais. Quero todos aqui agora!
Felício logo percebeu que o delegado estava sendo coagido pelo secretário
de segurança. Ele se dirigiu à sala da papiloscopia,
onde encontrou Medeiros, Araújo, Lima e Pamela.
_ Medeiros, o delegado falou pra prender o suspeito. E depois ele quer conversar com a gente.
_ Eu também? – perguntou Araújo.
_ Todos nós. Você também, Lima.
_ Puxa, até comigo? A coisa deve
ser séria! – exclamou o auxiliar do papiloscopista.
* * * * *
Os quatro homens da polícia estão na sala do delegado. Felício é o único que se mostra preocupado,
pois já está mais ou menos a par da situação, pois ouviu parte da conversa
telefônica do delegado com o secretário de segurança. A sua experiência de anos na polícia parece
avisá-lo de que a sujeira vai ser jogada para debaixo do tapete. Só Alexandrino parece tão ou mais nervoso que
o parceiro de Medeiros.
_ Bem, não vou enrolar muito.
Recebi ordens de cima, do próprio governador. Ele não quer descartar o nosso suspeito.
_ Mas, delegado, as digitais não são dele! – protestou Araújo.
_ Eu sei disso! O Felício já me
disse! Mas o que eu posso fazer? Você quer que eu ignore as ordens do
governador e solte o suspeito?
_ Eu não entendo dessas coisas políticas, delegado. Mas sei que o suspeito é inocente. E é isso que importa pra mim – continuou
protestando o papiloscopista.
_ Araújo, não estou dizendo que iremos manter o suspeito preso
indefinidamente. É apenas pra ganharmos
tempo. A imprensa está em cima, tá todo
mundo em cima, o Bambinni está me pressionando, o governador está me
pressionando. Preciso da cooperação de
vocês. Tempo, é isso que estou
pedindo!
_ E se o degolador continuar agindo?
Vamos passar por idiotas! – foi a vez de Medeiros fazer coro aos
protestos de Araújo.
_ Estou contando com você e Felício pra pegarem esse maldito assassino
antes dele agir novamente – disse Alexandrino.
_ Você vai apresentar o suspeito à imprensa como o degolador? – quis
saber Felício.
_ Não! Apenas vou dizer que temos
um suspeito.
_ E como vai mantê-lo preso? – quis saber Araújo.
_ Há fortes indícios de que ele é o degolador. Baseado nisso vou mantê-lo detido até
resolver esse caso – respondeu o delegado.
_ Vai colocá-lo junto com os outros presos? – perguntou Lima.
_ Não, claro que não! Por isso
mandei colocá-lo sozinho em uma cela.
Não quero que ele se machuque.
Sei muito bem o que os outros vagabundos fariam com um travesti. Ponham uma coisa na cabeça: estou sendo
pressionado por alguém bem mais forte que todos nós. Não tenho como ir contra uma ordem dessas. Estou fazendo o jogo do governador, só que há
maneiras e maneiras de se jogar. Então,
posso contar com a ajuda de vocês?
Os quatro homens da polícia olharam para o rosto de galã de novela
mexicana do delegado. Nenhuma palavra
pronunciada, nem um sussurro sequer.
_ Então, homens? O que vocês me
dizem? – insistiu Alexandrino.
_ Bem, acho que podemos sustentar essa história por algum tempo. Pelo menos até o assassino voltar a agir –
ironizou Araújo.
_ É, acho que dá pra ganhar um tempo – concordou Lima, não entendendo as
ferinas palavras do papiloscopista.
_ Eu e o Felício vamos fazer o possível pra resolver esse caso antes que
o assassino mate outra vez, delegado – respondeu Medeiros.
_ Excelente! É disso que
preciso! Uma equipe! – Alexandrino
tentou animar os quatro homens.
A
vida de Felício
19h36...
Medeiros se despede do amigo, que desce do carro e segue andando pela
calçada tomada de gente de todo tipo.
Ele está apreensivo com os últimos acontecimentos. Se não bastasse a furada em sua investigação,
ainda terá de manter uma mentira praticamente insustentável. Não que Felício seja um poço de honestidade,
se bem que sente certo remorso por participar dessa farsa contra Pamela,
afinal, ele sabe da inocência do transexual.
No entanto, Felício está mais preocupado consigo mesmo, já que basta uma
única coisa acontecer para que toda essa história inventada perca a
credibilidade: o degolador voltar a agir.
E pensar que ele poderia ter evitado toda essa confusão se tivesse
atentado para o fato de que já tivera a oportunidade de verificar as digitais
de Pamela, quando ela escreveu o seu endereço com a caneta de Felício no
primeiro dia em que se falaram, ainda na boate Galaxy.
Felício Mascarenhas Júnior
nasceu em Nogueira, distrito de Petrópolis, em 1960. Hoje está com quase 43 anos. Mora sozinho desde que se separou da mulher, uma
tal Dorotéia. Não tiveram filhos, talvez
mal tiveram tempo para se conhecerem, logo se separaram. Dizem que Dorotéia não aceitou o modo de vida
do marido, que era dado a escapadas noturnas com amigos estranhos. Seja como for, o policial morava em um
pequeno quarto e sala na rua Barata Ribeiro.
O parceiro de Medeiros entra no apartamento, retira o coldre que carrega
sob o braço direito, coloca-o sobre a mesa da sala. Liga o rádio, que toca um pagode de um grupo
qualquer; nem ele, que admira o gênero, sabe quem está cantando. Tira a roupa, está só de cueca, pega a toalha
de banho, acende o aquecedor a gás, liga o chuveiro. Retira a última peça de roupa e entra no box, onde a fumaça anuncia um banho
quente e relaxante.
* * * * *
Ainda dia 15 de fevereiro, 21h...
Em frente à televisão, Felício come calmamente um sanduíche de atum e
maionese. Ao lado está um copo de suco
de laranja. O policial continua
pensativo, sabe que a farsa sobre o Degolador não vai dar certo. Irritado, Felício larga o último pedaço do
sanduíche, pega o telefone e liga para Medeiros. O telefone toca insistentemente. Medeiros atende.
_ Alô!
_ Medeiros! Sou eu, Felício! Atrapalhei alguma coisa?
_ Não, que isso, você nunca atrapalha, meu irmão! – Medeiros mente, pois
na verdade fora interrompido justamente quando fazia amor com Tereza, que
espera impaciente na cama a volta do amante.
_ Sabe o que é? Bem, não estou
conseguindo tirar da cabeça essa história que o Alexandrino quer armar pra cima
daquele traveco.
_ Sei... Eu tava pensando
justamente nisso – Medeiros novamente falta com a verdade.
_ Pois é, imagina se esse degolador mata mais alguém? Como é que a gente vai ficar nessa história?
_ É verdade... Felício, estão
batendo na porta. Depois eu te ligo pra
gente conversar – Medeiros inventa mais essa mentira, pois Tereza o está
puxando para cama pelo pênis. Ela quer,
ou melhor, ela precisa continuar o que fora interrompido pelo inoportuno
telefonema de Felício.
_ Tá bem, meu amigo. Um abraço.
_ Até mais – Medeiros coloca o telefone no gancho e se entrega à luxúria.
Do outro lado da linha, Felício continua no seu martírio. As horas passam e nada do Medeiros lhe
retornar. Ele acaba adormecendo no sofá
da sala, ao lado do telefone.
Uma gargalhada na praia de Copacabana
Domingo, 16 de fevereiro de 2003, 10h11...
Um grupo de rapazes joga futebol na areia da praia de Copacabana; mais
adiante, um casal se diverte em uma disputada partida de frescobol; uma linda
morena passa saltitante com seu cachorro de pelos dourados; uma multidão entra
na água para se refrescar, pegar jacaré ou até mesmo para aliviar um pouco a
bexiga, já cheia pelas águas de coco, cervejas.
Nada diferente dos muitos e muitos dias ensolarados na praia mais famosa
do mundo.
_ Biscoito Globo! Vai um biscoito Globo, gatinha? – é um
vendedor ambulante oferecendo sua mercadoria a mais alguém. Entre vindas e idas, ele já deve ter
percorrido uns dez quilômetros esta manhã.
_ Não, obrigada – responde a tal
gatinha, que continua entretida com o jornal.
Ela só tira os olhos da matéria que está lendo para dar um gole na água
de coco que comprara há poucos minutos na barraca ao lado.
A leitora contumaz larga o jornal
que traz a matéria sobre a prisão do Degolador e corre para a água, onde fura
uma onda que vem em sua direção com intenção de derrubá-la. Ela sai vitoriosa desta batalha contra o
Oceano Atlântico. Depois sacode os
cabelos e solta uma gostosa
gargalhada. Mas não é uma gargalhada
como as das malvadas das histórias infantis, ela não é a madrasta da Branca de
Neve ou da Gata Borralheira. Ela é
única, ela é Raquel!
As investigações continuam
Segunda-feira, 17 de fevereiro de 2003, 10h15...
Medeiros e Felício estão na sala de Paulo Negrão, outro inspetor de
Polícia, que está repassando as informações sobre as últimas ligações do
celular da segunda vítima de Raquel, o corretor de imóveis José Almir de
Medeiros.
_ Nos últimos dois dias a vítima fez
14 ligações e recebeu outras 23 – informou Negrão.
_ Puxa, o cara gostava mesmo de
falar!
_ O homem era corretor de imóveis,
Medeiros. E com quem a vítima falou
nesses dias? – perguntou Felício.
_ A maioria era cliente. Também teve uma ligação da mãe e duas da
ex-mulher. Aparentemente, nenhum
travesti falou com a vítima nesses dias – disse o perito.
_ Nenhum suspeito? – perguntou
Medeiros.
_ Enquanto não acharmos uma pista,
todos são suspeitos – respondeu Negrão.
_ E por quem você acha que devemos
começar?
_ Tem um tal Rodolfo Simplício
Marques. Ele me parece o mais apropriado
a ser investigado primeiro. É um
arquiteto que compra imóveis, depois reforma e revende. Até aí, nada suspeito. Só que o cara tem 34 anos, é solteiro, frequenta
ambientes para homossexuais e já foi fichado por agressão. E o melhor: o telefonema foi feito na noite
do dia 08 de fevereiro, o dia do assassinato da segunda vítima do Degolador.
_ Como você soube disso tudo, Negrão?
_ Felício, você se esqueceu de que
também trabalho na polícia? – respondeu o inspetor com um sorriso estampado no
rosto marcado pelo tempo.
*
* * * *
14h...
Já dentro da viatura a caminho do escritório de Rodolfo Simplício
Marques, localizado na rua Buenos Aires, no Centro, os inspetores Felício e
Medeiros comentam sobre a possibilidade do arquiteto ser o assassino.
_ Era tudo o que eu queria, Medeiros!
_ O quê?
_ Que esse tal engenheiro fosse o
assassino.
_ Arquiteto, Felício. O homem é arquiteto.
_ Ah, arquiteto, engenheiro,
decorador! Qual é a diferença? O que importa é se ele é ou não o
degolador!
O carro da polícia para na esquina da av. Rio
Branco com a rua Buenos Aires. Medeiros
e Felício abrem caminho entre os pedestres e logo estão no prédio do escritório
do suspeito. Os dois policiais apertam o
quarto andar no elevador quase deserto, se não fosse pela presença de uma
senhora de mais de 70 anos, tez alva, cabelos azulados, quase da mesma cor dos
profundos olhos que miram a figura de ébano e cara de poucos amigos de
Felício. Ela tanto se distrai e acaba se
esquecendo de apertar o botão do segundo andar, onde faria uma visita de rotina
ao cardiologista.
_ Chegamos! – disse Medeiros.
_ É – concorda Felício procurando a
sala 418, logo encontrando com o auxílio de setas indicativas.
Tocam a campainha e são atendidos
por uma linda ruiva.
_ Pois não? – pergunta a mulher com
um sorriso de marfim.
_ Nós somos os inspetores de Polícia
Felício e Medeiros. Gostaríamos de falar
com o senhor Rodolfo Simplício Marques – falou Felício, pois Medeiros está
embasbacado com a formosura da ruiva.
_ Bem, não sei se o Dr. Marques
poderá atendê-los, já que está com a agenda lotada. Eu não poderia ajudá-los? Caso vocês queiram me adiantar o
assunto...
_ Não, não... O assunto é de foro íntimo, seria só com ele
mesmo – insistiu Felício.
_ Bem, vou ver o que posso fazer
pelos senhores. Queiram aguardar um
instante, por favor. Os senhores
gostariam de um suco, um café, uma água?
_ Dois cafés, por favor – respondeu
Felício.
A estonteante mulher, então, dá meia
volta e se dirige à porta ao lado de sua mesa.
Os olhos de Medeiros aproveitam a oportunidade e se atiram sobre o lindo
volume que estufa o vestido de cor bege.
A ruiva dá uma leve batida na porta e entra.
_ Você viu, cara? Puxa, que avião!!!
_ Vi, vi sim essa sua cara de babão
– Felício recrimina o amigo.
_ Meu irmão, é como eu sempre digo:
99% das ruivas são feias, mas quando aparece uma bonita... Aí, não tem pra ninguém, nem pra morena, nem
pra loira, nem pra japonesinha...
_ Tá, tá bom, mas guarde suas
filosofias baratas pra mais tarde. Agora
a gente tá trabalhando, Medeiros!
Em instantes reaparece a nova musa do policial Medeiros. Ela está com o mesmo sorriso emoldurando o
lindo rosto.
_ O Dr. Marques irá atendê-los –
fala a secretária, abrindo a porta para que os dois policiais possam entrar.
_ Muito obrigado – Medeiros agradece
lançando um sorriso e um olhar um tanto malicioso para a ruiva.
*
* * * *
14h38...
_ Senhor Rodolfo Simplício Marques? – Felício pergunta o óbvio.
_ Sim, sou eu. O que os senhores querem comigo? Por acaso cometi algum crime nesta semana?
_ Não estamos aqui pra brincadeira,
senhor Rodolfo – responde com firmeza Felício.
_ Desculpe, não quis
ofendê-los. Mas é que não costumo
receber visitas da polícia. Mas o que os
senhores desejam?
_ Sou o inspetor Felício e esse é o
inspetor Medeiros. Estamos investigando
dois assassinatos ocorridos nos últimos dias.
O senhor deve estar a par desses crimes, pois foram divulgados por
diversos jornais.
_ Inspetor, sou arquiteto, não tenho
o hábito de me prender aos noticiários policiais.
_ Por acaso o senhor está a par dos
crimes do Degolador, como a imprensa está chamando o assassino que já fez duas
vítimas até o momento? – perguntou Medeiros.
_ Sim, ou melhor, sei por alto. Mas até onde sei, o criminoso já está
preso. Não é um travesti?
_ É um suspeito. O caso ainda não está totalmente solucionado
– respondeu Felício.
_ Tá, mas e daí? Onde é que eu entro nessa história? – o
arquiteto começa a se irritar.
_ Bem, o celular da última vítima do
Degolador recebeu uma ligação de um telefone que está no seu nome – falou
Felício.
_ No meu nome? Impossível!
Nem conhecia esse sujeito! – tentou se defender um transtornado Rodolfo
Marques.
_ Por acaso esse telefone não é do
senhor? – Felício perguntou entregando um papel onde constavam alguns números.
O arquiteto pegou o papel e ficou
olhando, parecia não estar entendendo.
De repente começou a falar com um tom de surpresa.
_ Não entendo, não entendo... Como pode ser uma coisa dessas? Não, não pode ser. Alguma coisa deve estar errada, com certeza
tudo não passa de um engano.
_ Não há engano algum, senhor
Rodolfo. Se não foi o senhor que fez a
ligação, foi alguém da sua casa – disse Medeiros.
_ Não, não pode ser, moro sozinho...
_ Um empregado? – perguntou
Medeiros.
_ Tenho uma senhora que faz a faxina
no meu apartamento três vezes na semana.
Poderia ser ela. Aliás, só pode
ser ela!
_ E quais são os dias que ela
trabalha para o senhor? – Medeiros fez nova pergunta.
_ Segunda, quarta e sexta-feira.
_ E qual é o horário dela? – mais
uma pergunta de Medeiros.
_ Ela chega por volta das sete, oito
horas e sai lá pelas 14.
_ Ela tem as chaves do seu
apartamento? – Felício perguntou.
_ Tem. Mas por que o senhor quer saber isso?
_ Bem, é que se foi ela mesma que
fez a ligação para o celular da última vítima, com certeza não foi no horário
de trabalho. O telefonema foi feito às 12h18
no dia do assassinato – concluiu Felício.
_ O quê? Não, não pode ser! Ela nunca vai a essa hora à minha casa.
_ Seja como for, senhor Rodolfo, não
estamos aqui com um mandado. No entanto,
o senhor irá receber uma intimação para comparecer à delegacia para maiores
esclarecimentos. Por enquanto, muito
obrigado. Logo voltaremos a nos ver –
disse Felício se voltando para a porta, deixando um perplexo Rodolfo estatelado
na luxuosa cadeira de encosto alto forrada de veludo vermelho.
Antes de saírem da sala, os
policiais agradeceram também a prestativa secretária.
_ Perdão, mas qual é a sua graça,
senhorita? – quis saber um quase atrevido Medeiros.
_ Graciele – respondeu uma
ruborizada mulher, o que fez realçar ainda mais os fios vermelhos que
emolduravam o lindo rosto.
*
* * * *
Ainda dia 17 de fevereiro, 15h26...
Assim que saíram entraram na viatura...
_
O que você achou desse tal Rodolfo? – Medeiros, pegando um cigarro no maço
quase vazio, perguntou.
_ Olha, posso até estar enganado,
mas acho que ele é o nosso homem – respondeu Felício.
_
É, também achei a mesma coisa.
_ Aquela cara de surpreso que ele
fez quando falamos que houve uma ligação da casa dele para o celular da segunda
vítima não me convenceu.
_ É, você tem razão, Felício. Também não engoli aquele teatrinho
fajuto.
Outro cliente
Sábado, 08 de março de 2003, 12h11...
A construção da casa no Jardim Botânico era de longa data, anterior à
Segunda Grande Guerra. Ali moravam
pessoas de certa condição, não se podendo dizer que eram ricas, mas estavam
longe daquela casta que precisa contar as migalhas no final do mês. Todos estavam viajando. Todos é uma força de expressão, já que o
chefe da família (se é que as feministas de plantão permitem esse termo já um
pouco démodé) havia ficado
para resolver algumas pendências. Também
havia empregados na casa, mais precisamente duas, sendo uma cozinheira e outra
faxineira, mas ambas estavam de folga naquele dia.
A campainha toca! A linda mulher, que espera na calçada pouco
iluminada, observa o interior da casa pela cortina entreaberta da sala. Ela percebe que acenderam a luz. Em instantes a enorme porta de madeira de lei
se abre, surgindo a figura de um minúsculo homem, pouco mais que um anão,
raquítico, cabelos ralos e brancos que ainda teimam em resistir à calvície
avançada. Não se pode afirmar que se
trata de um senhor idoso, mas a juventude já o abandonou há um bocado de anos.
_ Boa noite. Por favor, vamos entrando – disse o
homem.
_ Boa noite – a mulher devolveu o
cumprimento e adentrou.
O mais novo cliente da dama da noite
puxou Raquel pela mão, mas essa logo se desvencilhou.
_ Primeiro o pagamento, meu bem – Raquel
foi incisiva.
_ Claro, claro, me desculpe – disse
o homem se dirigindo a outro aposento da casa.
Em menos de dois minutos o cliente
retornou com os R$ 300,00.
_ Está aqui o seu pagamento. O seu nome é Raquel, não é?
_ Só pra você, meu amor. E o seu é Rubens mesmo?
_ Na verdade me chamo Sandoval, mas
não gosto do meu nome. Inclusive as
pessoas me chamam de Pereira.
_ Hum, Pereira! Taí, gostei de você, Pereira.
Sandoval Pereira pareceu gostar do
comentário de Raquel. O quase anão
abaixou os olhos e sorriu timidamente.
_ O que você quer que eu faça com
você, Pereira? – Raquel falou lançando um olhar irônico para o amante da vez.
_ Quero que me castigue, pois tenho
sido um mau menino há muito tempo.
_ Um mau menino? E por que você tem feito pra ser um mau
menino, Pereira?
_ Eu tenho me masturbado cheirando
as calcinhas das empregadas.
_ O quê? Então, você gosta de ficar fuçando as
calcinhas das criadas?
_ Sim, eu gosto muito!
_ E você quer cheirar a minha
calcinha também?
_ Se a senhora me permitir, eu
cheiro com o maior prazer, minha rainha.
_ Ah, Pereira, você realmente é um
menino muito malvado – falou Raquel aplicando um bofetão no pequeno homem, que
se curvou diante de tal demonstração de superioridade.
_ Me desculpe, minha senhora –
implorava o homem ajoelhado aos pés de Raquel.
_ Seu verme!!! – gritou a
profissional desferindo novo bofetão com a outra face da mão, fazendo com que
sua vítima tombasse.
Só então Raquel percebeu o volume
que se formou sob a bermuda do cliente.
Não que fosse um volume descomunal, mas era maior do que ela supunha,
levando-se em conta o porte de Pereira.
_ Ficou de pau duro, cretino?
_ Nã-nã-não, minha senhora –
gaguejou o homem.
_ Não minta pra sua rainha, sua
lombriga de estrume! Tire toda a roupa
antes que eu lhe arrebente a fuça!
Em instantes a ordem de Raquel foi
cumprida. Então, até para espanto e
deleite de Pereira, ela se ajoelhou e levou a boca até o membro em riste. Ela sugou o sexo do amante com tamanha força
que, por um instante, fez Pereira temer pela integridade do seu brinquedinho.
_ Hum, que delícia! – disse Raquel
interrompendo a felação.
_ Por favor, minha senhora, continue
– implorou o homem.
_ Cale essa boca imunda, seu verme
asqueroso – berrou Raquel presenteando mais uma vez as faces de Pereira com
dois safanões.
A prostituta se levantou, andou em
volta de sua vítima como um tubarão escolhendo o melhor momento para
atacar. Pereira parecia mesmo assustado
ou, talvez, fosse apenas encenação para o teatrinho que acreditava estar
participando.
_ De quatro!!! – Raquel ordenou,
sendo logo atendida.
A visão das nádegas brancas e
descarnadas do pequeno homem fez a prostituta entrar em transe, tamanha sua
excitação. Ela besuntou seu brinquedinho
com um pouco de pomada, depois passou o dedo médio ao redor do ânus de Pereira,
que abaixou a cabeça para expor ainda mais seu traseiro. Raquel deu um sorriso sarcástico e enfiou o
dedo besuntado no orifício anal do homem, que soltou um leve gemido de
prazer. Ela pincelou a glande de seu
enorme membro no ânus de Pereira e, talvez sem nem mesmo ele esperar,
penetrou-o de uma só vez. O homem
apertou os músculos anais e se deixou cair por completo no chão da sala, sendo
possuído de forma violenta pela amante.
Pereira teve um orgasmo logo após, o que fez todo seu corpo relaxar. Raquel acabara de dar ao cliente o que ele
queria. Agora era a vez de realizar a
sua fantasia. Sem o amante perceber,
ela abriu a sua bolsa, que estava ao seu lado no tapete, pegou a faca tipo
magarefe e passou no pescoço de Pereira, que não teve tempo de esboçar qualquer
reação.
Mais
um corpo
Segunda-feira, 10 de março de 2003, 08h40...
Medeiros e Felício já estavam de partida para mais uma diligência atrás
de provas, quando foram chamados à sala do delegado Alexandrino.
_ O que houve, chefe? – perguntou Felício.
_ Parece que o Degolador fez mais uma vítima. O filho da puta agiu de novo!
_ Onde foi? – quis saber Medeiros.
_ Numa casa no Jardim Botânico. O
Raul já está indo pro local. Quero que
vocês dois vão com ele.
_ Pode deixar com a gente, chefe – disse Felício.
_ Ah, e o traveco que prendemos?
Teremos de soltá-lo agora – lembrou Medeiros.
_ Eu sei disso. O secretário de
segurança já me ligou. Ele quer que
encontremos esse maldito Degolador o mais rápido possível. A imprensa vai cair de pau em cima de mim –
lamentou Alexandrino.
* * * * *
09h15...
Os cinco homens da Polícia Civil (Medeiros, Felício, Raul, Araújo e o
ajudante Lima também) estão a caminho do local do crime. Raul puxa a conversa.
_ E aí, Felício, soube que você e o nosso amigo aqui fizeram uma visita a
um suspeito.
_ Só fomos fazer uma sondagem de rotina.
_ E o que acharam do suspeito?
_ Não sei, Raul. Depois da minha
mancada com aquela história do travesti, estou mais cauteloso.
_ Não diria que foi mancada, mesmo porque houve ordem de cima pra que o
traveco fosse apresentado à imprensa como o principal suspeito do caso. O pior é que já sabíamos que ele era inocente
– o perito tentou ser complacente.
Não demoraram muito para chegar ao local do crime. Havia uma aglomeração de pessoas na frente da
casa do Jardim Botânico: policiais, familiares e amigos da vítima, o pessoal da
imprensa e curiosos, aliás, muitos curiosos.
Já dentro da casa, Raul não perdeu tempo para começar o seu trabalho,
sempre auxiliado por Lima. Felício
acompanha o trabalho do perito, enquanto Medeiros vai tentar arrancar alguma
informação útil dos familiares, amigos e empregadas da vítima.
_ Veja, Felício! O corpo está
quase na mesma posição da segunda vítima.
Foi degolado logo após ter ejaculado, pois há esperma no tapete.
_ É o mesmo assassino, Raul? – quis saber Felício.
_ Provavelmente, muito provavelmente.
_ Lima, pegue as digitais na maçaneta das portas. Com elas poderemos ter certeza de que se
trata do mesmo assassino – disse o papiloscopista Araújo.
_ Deixa comigo, chefe! – Lima, um rapaz de não mais de 25 anos, cabelos
encaracolados, pele clara e corpo ligeiramente roliço, logo se prontificou a
cumprir as ordens.
_ Encontrou mais alguma coisa, Raul? – Felício perguntou.
_ Não, aparentemente nada mais que possa ajudar nas investigações. O mesmo ritual do segundo assassinato. E parece que este aqui gostava de levar uns
sopapos, pois seu rosto está com alguns hematomas. É um homem pequeno e magro, tem certa
idade... Também parece que o nosso
assassino tem gosto variado.
_ Aqui estão as digitais, chefe – era Lima segurando um pote com lâminas
de vidro e fita tipo durex.
_ Muito bom, meu garoto, disse Araújo.
_ Agora pegue a câmera e comece a bater fotos do local e da vítima, pediu
Raul.
_ É pra já, chefe! – respondeu um entusiasmado Lima, que estava na
Polícia Civil há pouco mais de um ano, mas já vinha demonstrando grandes
qualidades no campo pericial. No entanto, ele era do quadro administrativo.
Depois de andar pela casa à procura de pistas e nada encontrar de
substancial, Raul liberou o corpo da vítima para ser levado ao IML pelo pessoal
da Defesa Civil.
_ Vou tomar um cafezinho. Vocês
vêm comigo? – quis saber o perito.
_ Tô dentro! – respondeu Lima quase instantaneamente.
_ Vão indo, depois apareço lá. Vou
esperar pelo Medeiros, que parece já estar acabando de conversar com aquela
senhora ali – Felício indicou com os olhos uma mulher de seus 45-50 anos, alta,
corpulenta e que demonstrava estar realmente sentida pela perda de um ente
querido.
_ Então, tá! A gente vai ficar ali
naquele boteco logo na esquina – disse Raul.
Mas antes mesmo do perito e de seu auxiliar virarem as costas, Medeiros
já havia terminado a conversa com a senhora robusta e se dirigia à rodinha
formada pelos três policiais e Lima.
_ E aí, Medeiros, conseguiu alguma coisa? – quis saber Felício.
_ Aquela senhora trabalha na casa há mais de cinco anos. Foi ela quem encontrou o corpo esta manhã e
avisou à polícia.
_ Sem querer te cortar, vamos lá embaixo tomar um cafezinho, Medeiros? –
falou o perito.
_ Tudo bem! – respondeu Medeiros já pronto para acender um cigarro ou,
como ele mesmo gostava de dizer, um mata-rato.
* * * * *
Ainda dia 17 de março, 11h20...
No boteco da esquina...
_ O nome da vítima era Sandoval da Cunha Pereira, mais conhecido por
Pereira pelos amigos e familiares ou, então, Dr. Pereira. Aposentado do Banco do Brasil, 58 anos,
casado, pai de três filhos. Continuava
trabalhando, pois era cirurgião-dentista. Estava sozinho em casa, a família estava
viajando e, anteontem à tarde, liberou as duas empregadas da casa. Aparentemente fez isso para se entregar à putaria
– informou o policial Medeiros.
Intimidação
de um intimado
Dia 18 de março de 2003...
Era ainda manhã de uma terça-feira ensolarada quando o arquiteto Rodolfo
Simplício Marques adentrou na 12ª DP em Copacabana. Ele havia recebido uma intimação para
comparecer naquela data para prestar esclarecimentos sobre os assassinatos
ocorridos nos últimos tempos na Cidade Maravilhosa. Sua fisionomia não era das mais tranquilas;
poder-se-ia até mesmo afirmar que estava bastante perturbado pela situação que
se encontrava. De qualquer forma, lá
estava o Dr. Marques, como sua secretária costumava chamá-lo, um homem de pouco
mais de 1,70 metro de altura, uns 75 quilos, pele bronzeada, traços de uma
beleza até mesmo feminina, as maçãs do rosto proeminentes, olhos quase negros,
cabelos encaracolados e descoloridos.
Ele se dirigiu ao balcão, onde foi atendido por uma mulher macérrima e
de feições grotescas.
_ Bom dia. Recebi isso – o arquiteto falou enquanto entregava a intimação
à atendente.
_ Queira aguardar, por favor – a mulher respondeu apontando um conjunto
de cadeiras encostadas à parede.
Passaram-se quase 20 minutos até que a mesma mulher feia dirigiu a
palavra ao arquiteto. Quase 20 minutos,
não mais que isso! Tempo mais que
suficiente para que mil coisas, inúmeras possibilidades passassem pela mente de
Rodolfo Simplício Marques.
_ Senhor, favor subir essa escada e entrar na segunda sala à
direita. O inspetor Felício está
aguardando o senhor.
_ Ah, sim. Obrigado – Rodolfo
respondeu se levantando automaticamente.
* * * * *
O arquiteto deu duas leves batidas na porta entreaberta.
_ Entre! – o delegado Alexandrino, que estava acompanhado do escrivão
Paulão e do inspetor Felício, intimou.
_ Licença. Como vai o senhor,
policial Felício?
Felício apenas acenou com a cabeça e saiu da sala.
_ Senhor Rodolfo Simplício Marques?
_ Sim, sou eu. Como vai o senhor?
_ Bem, obrigado! Pode se sentar
nessa cadeira, seu Rodolfo. Quer uma
água, um café?
_ Não, obrigado. Eu estou bem...
_ Muito bem. Sou o delegado Marcos
Alexandrino. Aquele ali é o escrivão
Paulo. O senhor foi chamado pra prestar
esclarecimentos sobre alguns crimes que estão ocorrendo. Acho que o senhor já
deve estar sabendo que o Degolador agiu novamente.
_ Soube pelos jornais. Atualmente
não se fala em outra coisa, não é mesmo? – falou o arquiteto finalizando com um
sorriso nervoso.
_ É... Pois bem, seu
Rodolfo... Posso chamá-lo assim?
_ Claro! Como quiser!
_ Pois bem, seu Rodolfo... Onde o
senhor se encontrava na noite do dia oito de março?
_ Oito de março? Bem, deixe-me
ver... Hum, 08 de março caiu num
sábado... Me lembro perfeitamente, inspetor
Felício. Eu estava na casa de um amigo.
_ Que amigo? E esse amigo poderia
confirmar isso?
_ É um amigo um pouco reservado, se é que o senhor me entende...
_ Não, não entendo. Seja mais
claro, por favor.
_ Inspetor Felício, tento preservar minha vida particular e a de meus
amigos...
_ Se você está se referindo à sua homossexualidade, nós já sabemos –
disse Felício de supetão, o que causou surpresa e certo constrangimento ao
arquiteto.
_ Tu... tudo bem. Sou gay. E ser assim não é fácil nessa sociedade
hipócrita. Não que não existam milhares,
até milhões de homossexuais por aí, mas ninguém gosta de sair do armário, se é
que você me entende.
_ Entendo sim, seu Rodolfo. Mas
isso não vem ao caso em questão. O que
importa é que o senhor é proprietário de uma linha telefônica de onde partiu
uma ligação para o celular da segunda vítima do Degolador. Então, por favor, e para o seu próprio bem,
não esconda nada da Polícia. Isso só
viria trazer problemas para o senhor.
Quero saber com quem o senhor estava na noite do dia oito de março.
_ Quero colaborar com a polícia no que for possível, delegado. Mas não gostaria de envolver outras pessoas,
ainda mais alguém que ocupa certa posição na nossa sociedade.
_ Senhor Rodolfo, diga com quem você estava na noite do dia 08 de março!
– disse asperamente Alexandrino.
Por alguns instantes se fez um silêncio na sala. Até que as palavras começaram a brotar da
boca do arquiteto.
_ Eu estava com o meu namorado num motel na Dutra.
_ E quem é o seu namorado?
_ Gostaria de manter o meu depoimento sob sigilo, pois a pessoa com quem
venho saindo nos últimos três meses é alguém de certa notoriedade.
_ O seu depoimento é sigiloso, eu lhe garanto.
O arquiteto hesitou um pouco, mas acabou abrindo o jogo.
_ Meu namorado é Victor Torres.
_ O ator?! – quis saber um surpreso Alexandrino, olhando de relance para
o escrivão Paulão, que até se atrapalhou na digitação.
_ O próprio – confirmou Rodolfo.
_ Mas ele não é o maior garanhão, o cara que sai com as mais belas
mulheres? – Felício continuava incrédulo.
_ Tudo fachada armada pelo empresário do Victor. Tudo em prol da imagem de galã, pois sem ela
o Victor não arrumaria nem vaga de penico em comercial de papel higiênico –
explicou o arquiteto.
_ Terei de confirmar essa história com o Victor Torres, senhor Rodolfo.
_ Mas você me prometeu que manteria o meu depoimento em sigilo –
protestou Rodolfo.
_ Tentarei falar com o seu namorado fora da delegacia, isto é, se ele
quiser falar comigo. Caso contrário,
terei que solicitar uma intimação para que ele compareça para prestar
depoimento. Se tudo sair como espero que
saia, eu lhe garanto, o seu depoimento não sairá dos arquivos da polícia. Claro, isso se o senhor for mesmo inocente e
não estiver mentindo.
_ Não estou mentindo, inspetor.
_ Tudo bem. Acredito no senhor.
Vamos falar sobre as pessoas que têm acesso ao seu apartamento. Quem mais, além do senhor, possui as chaves
do seu apartamento?
_ Bem, além de mim e da senhora que faz a faxina... Deixe-me ver... Hum... Só o Victor. Sim, acho que é só.
_ Pense bem, senhor Rodolfo.
Ninguém mais? Pense bem!
_ Tenho certeza. Sim, são apenas
essas pessoas que têm as chaves da minha casa.
_ Você tem certeza de que não conhecia o senhor José Almir de
Medeiros?
_ Tenho! Nunca vi esse homem em
toda a minha vida!
_ E como o senhor explica que o celular dessa vítima do Degolador recebeu
uma ligação do telefone da sua casa?
_ Não explico! Simplesmente não
sei como isso aconteceu! Talvez tenha
sido uma ligação errada, não sei, não entendo disso. Só sei que não fui eu quem deu esse
telefonema!
_ Talvez o Victor Torres... – sugeriu Alexandrino.
_ Impossível! O Victor é uma
pessoa maravilhosa! Ele é incapaz de
matar uma mosca, quanto mais assassinar alguém.
Absurdo! O que o senhor está
propondo é um disparate! – protestou um exaltado Rodolfo.
_ E a faxineira? Poderia ser ela?
_ Uma senhora de quase 60 anos? O
senhor está querendo dizer que uma quase anciã é esse tal Degolador?
_ Não, mas talvez ela o esteja ajudando... O Degolador não é mulher, ela não poderia ser
ele.
_ E porque o senhor tem tanta certeza de que esse assassino é homem?
Quero dizer... Não é um travesti? Afinal,
é homem ou travesti? O senhor pode me esclarecer isso?
_ Não... Sigilo policial, seu Rodolfo.
Gostaria de saber o nome completo e o endereço dessa senhora. E caso o senhor também possa me informar o
endereço ou telefone do Victor Torres, lhe agradeceria muito.
_ O nome dela é Maria Francisca dos Anjos. Não sei exatamente o endereço dela, mas ela
mora no Morro Pavão-Pavãozinho.
_ Eu poderia ter uma conversa com ela na casa do senhor?
_ Na minha casa?
_ Seria bem mais tranquilo, sem traumas...
_ Ok! Ela estará amanhã pela manhã
no meu apartamento. O senhor poderá ir
lá.
_ E o telefone do Victor Torres?
_ Vou ter que conversar antes com ele.
Do jeito que ele é, tão impulsivo, talvez ele mesmo o procure.
_ Ótimo! Muito obrigado! Por enquanto é só! Talvez voltemos a nos falar em breve.
_ Então, posso ir? – Rodolfo parece não acreditar que o seu depoimento
tenha chegado ao fim.
_ Claro! Mas antes assine aqui, por favor. É apenas pra constar que o senhor esteve aqui
– o delegado Alexandrino passa o documento contendo o depoimento, que o
escrivão acabou de bater, e uma caneta ao arquiteto.
Depois de assinar o papel, Rodolfo
se levanta, ainda desconfiado, gira o corpo em direção à porta e sai sem ao
menos se despedir do policial. Paulão
acompanha o arquiteto até a saída. Logo
em seguida, o delegado chama o papiloscopista Araújo. Este, em poucos minutos, já está em sua
presença.
_ O que foi, doutor?
_ Pegue esta caneta e verifique as digitais. Talvez já tenhamos encontrado o nosso
Degolador.
O papiloscopista coloca a caneta num saco plástico e a leva ao
laboratório. Depois de algum tempo, Raul
retorna à sala do delegado com o veredito.
_ Doutor, infelizmente, não é esse o nosso homem.
Alexandrino soca a mesa para tentar aplacar um pouco da sua
frustração. As cobranças continuariam
até quando ele não sabia. Talvez até
mesmo o seu emprego poderia estar a perigo.
_ Por enquanto quero manter essa informação em sigilo!
_ Pode contar comigo, Delegado – disse um Araújo sem entender muito o
porquê de tal pedido, ou melhor, ordem.
Um
astro
Victor Torres, 34 anos, 1,95 metro de altura, quase 100 quilos de puro músculo,
pele sempre bronzeada, cabelos calculadamente desalinhados, olhos de um
castanho profundo, o que lhe confere um certo ar de menino desprotegido,
“simplesmente o homem mais bonito da televisão”, segundo várias revistas de
fofocas. Galã de novelas campeãs de
audiência, Victor nasceu em Barretos, cidade do interior de São Paulo famosa
por sua festa de rodeio. Há dez anos, no
entanto, veio tentar a sorte na Cidade Maravilhosa, onde foi descoberto por um
influente diretor de telenovelas. A
história é até curiosa e talvez valha a pena ser contada.
O jovem, belo e então pobretão Vitor (o “c” mudo só mais tarde foi
acrescentado para lhe garantir um status
de europeu dos trópicos) há alguns meses se matriculara num curso de
teatro. Ele carregava consigo a certeza
de que um dia seria um grande ator, chegaria até mesmo a concorrer e, claro,
ganhar a estatueta do Oscar, prêmio máximo do cinema americano. Mas enquanto a sua hora de glória não
chegava, tratava de conservar o modesto emprego de lavador de pratos, entre
outros serviços menos nobres, num boteco localizado na rua Voluntários da
Pátria, em Botafogo. Não ganhava grandes
coisas pelo seu duro trabalho de quase dez horas diárias, mas, afinal, dava
para pagar o tal curso de teatro. No
emprego também tinha direito a duas refeições, o que já ajudava no parco
orçamento do aspirante a vencedor do Oscar.
O dinheiro do curso de teatro estava garantido. O jovem Vitor também não corria risco de
passar fome. No máximo poderia ter uma
disenteria, o que na verdade aconteceu em duas ou três ocasiões, mas logo o seu
organismo aprendeu a digerir aquela gordurosa e pegajosa gororoba. Bem, faltava apenas a moradia. E Vitor não demorou a arranjar um local para
descansar o seu corpanzil de quase dois metros e oitenta e poucos quilos. Sim, Vitor ainda não possuía a sua famosa
silhueta de deus grego.
Durante o tempo de vacas magras, Vitor ia se arranjando na pensão da dona
Ione, uma mulher de seus 60 anos, viúva, morena bem clara, magra de doer,
ligeiramente corcunda e barrigudinha.
Aliás, pairava uma dúvida sobre as cabeças das pessoas que a conheciam,
que não sabiam se dona Ione era corcunda por causa da barriga proeminente ou,
então, era barriguda por causa da curvatura da coluna. Outras coisas que chamavam a atenção das
pessoas eram as orelhas e o nariz da viúva.
Quando a coroa andava, as suas orelhas balançavam parecendo querer
levantar voo. Já a ponta do nariz da
dona da pensão fazia movimentos verticais, como se fosse uma vara que acabara
de fisgar um peixe de tamanho respeitável.
Há muito dona Ione não sabia o que era ver um homem em estado
natural. Entrava ano, passava ano e nada
da proprietária da pensão desfrutar dos prazeres carnais. Diziam as más línguas que a pouco atraente
senhora tivera um amante pouco depois de ficar viúva. O dito cujo se chamava Josué Benevolente e,
as más línguas insistem em não se calar, era totalmente cego de nascença.
Pois é, foi nesse estado de carência afetiva, beirando até mesmo o
desespero sexual, que surgiu na vida da não tão atraente dona Ione o jovem e
belo Vitor, que ainda conservava o forte sotaque de paulista do interior, com
todos os erres possíveis e imagináveis.
Vitor não tinha como pagar nem a metade do aluguel do pior quarto da
pensão da senhora sem muitos atributos físicos.
Por outro lado, dona Ione não queria perder aquele pedaço de mau caminho
que parecia lhe estar caindo do céu como forma de compensação por anos e anos
amolando todos os dedos da mão, sem contar os objetos mais estranhos que lhe
foram tão úteis nas horas mais solitárias na sua cama, há anos sem sentir a
presença de um homem.
Dona Ione não perdeu tempo. Ela
foi direto ao assunto, tamanhas eram suas esperanças em, finalmente, ter um
membro do sexo oposto para esquentar o seu leito. Vitor pareceu não acreditar na proposta da
dona da pensão, mas acabou cedendo a tal capricho, mesmo porque não estava em
situação de negociar. E, a partir
daquela mesma noite, o jovem e belo paulista do interior se dirigia para o
quarto da dona Ione para consumar o pagamento da sua estada.
* * * * *
Durante um ensaio de uma das inúmeras peças de teatro que Vitor fazia nos
tempos em que ainda era apenas mais um tentando a sorte no mundo artístico, um
conhecido diretor da mais importante emissora de televisão do país veio
procurar algum talento jovem para, quem sabe, lançar na próxima novela. Damião Neto, o tal diretor, se encantou pelo
jovem aspirante assim que entrou no recinto.
Trocaram alguns olhares, Vitor errou algumas falas, o diretor da peça,
Jorge Clóvis de Almeida, passou-lhe um baita carão. Damião Neto logo saiu em defesa de Vitor.
_ Almeidinha, mas o que é isso? O
rapaz tem talento, dá pra perceber isso a um quilômetro – pronunciou estas últimas palavras fitando
Vitor de cima a baixo.
_ Quem é vivo sempre aparece! Até
que enfim você resolveu fazer uma visita ao mundo dos pobretões, Damião –
Almeida, que até o momento não havia notado a presença do diretor de novelas,
acabou por abraçá-lo e, em seguida, arrastá-lo para um canto.
_ Como vai aquela vida boa lá na televisão? – continuou Almeida.
_ Muito trabalho, meu amigo...
Muito trabalho... E, o pior:
quase nenhuma diversão.
_ Ora, ora, mas o que o grande Damião, o diretor das maiores estrelas do
Brasil, está falando? Não vai me dizer
que quer trocar de lugar comigo?
_ Ai, às vezes dá vontade, mas não conseguiria viver sem meus pequenos
luxos. Então, tenho que aguentar aquelas
desvairadas pra continuar recebendo o meu ganha-pão.
_ Mas conta! O que você veio fazer
aqui?
_ Rever os amigos...
_ Ah, Damião, conta outra. E desde
quando você se lembra dos amigos pobres?
_ Injustiça da sua parte, Almeidinha.
Injustiça!
_ Gostou do menino?
_ Menino? Que menino?
_ Damião, Damião... Você continua o mesmo...
_ Ah, aquele rapaz... Não, não,
apenas achei que você foi um pouco duro com ele.
_ Tá bom, vou fingir que acreditei!
_ É bonitinho... Nada de mais, só um pouco bonitinho.
_ Damião, o Vitor é ma-ra-vi-lho-so!
Péssimo ator, muito canastrão, é verdade. Mas é um Apolo! Precisa de um trato, é verdade. Mas nada que uma aulinha de musculação não
resolva... E um bom prato de comida também!
_ É, até que uma comidinha faria muito bem àquele menino... – disse
Damião, logo soltando uma gargalhada.
* * * * *
Em poucos dias Vitor foi morar no luxuoso apartamento de Damião
localizado na Lagoa (bairro nobre da Zona Sul).
Cinco meses depois fazia sua estreia numa novela. Não ganhou o papel principal logo de cara,
mas foi o recordista de recebimento de cartas de fãs. Nascia ali Victor Torres, um dos maiores
astros novelescos da televisão brasileira...
Chiquinha
do pó
Quarta-feira, 19 de março de 2003, 10h18...
A campainha toca insistentemente, até que, finalmente, uma senhora de
aparência decrépita, porém gentil, vem abrir a porta.
_ Pois não, o que os cavalheiros desejam?
_ Bom dia. Dona Maria Francisca
dos Anjos? – quer saber um dos homens postados à porta.
_ Eu mesma. O que os senhores
desejam?
_ Somos da polícia e precisamos conversar um pouco com a senhora – disse
Felício mostrando sua insígnia.
_ Da polícia? Mas o que é que eu
fiz, meu Deus?
_ Fique tranqüila, minha senhora.
Só queremos esclarecer algumas dúvidas – Felício tentou apaziguar a
situação.
_ Podemos entrar? – Medeiros perguntou já dando dois passos em direção à
sala de estar, fazendo com que a velha senhora se afastasse e permitisse a
passagem dos homens da lei.
Já devidamente acomodados
no sofá da sala, os policiais começaram um pequeno interrogatório. Segundo as próprias palavras de Felício,
“perguntas de mera rotina policial”.
_ A senhora trabalha há quanto tempo para o senhor Rodolfo? – perguntou
Medeiros.
_ Ih, seu moço, já faz um baita tempo.
Tanto é verdade que ele tinha cabado
a falcudade fazia um
tempinho só – respondeu a velha senhora tentando driblar as armadilhas da
gramática.
_ E o que a senhora poderia nos contar a respeito do seu patrão? –
continuou Medeiros.
_ Ah, o seu Rodolfo é um homi
de bem. Só precisava mais é freqüentar a
igreja. Vocês sabem que uma pessoa
afastada de Deus não é coisa boa, né!?
Eu mesma não tinha uma vida muito ordeira até encontrar o Nosso Senhor
Jesus Cristo. Mas o seu Rodolfo é um homi bão.
_ E os relacionamentos do seu Rodolfo?
Ele é solteiro, deve ter uma vida pessoal bastante agitada... – Felício
quis saber.
_ Ah, seu moço, eu não gosto de falar da vida particular das pessoas, inda mais da vida do seu Rodolfo.
_ Mas não teria algo que a senhora poderia nos dizer? – insistiu Felício.
_ O seu Rodolfo é muito discreto.
Nunca vi ele com namorada. Às
vezes vem um amigo ou outro dele aqui.
Inclusive tem vindo muito aqui o seu Victor Torres. Vocês conhecem o seu Victor Torres, né!? Pois é, ele tem vindo muito aqui visitar o
seu Rodolfo. Às vezes ele chega já
quando eu tô saindo. Até as pessoas lá
donde eu moro não acreditam que o seu Victor Torres é amigo do meu patrão. Ficam falando que eu fico inventando. Mas eu não gosto de mentira, não. Comigo é pão, pão, queijo, queijo. E tem mais, nosso senhor Jesus Cristo não me
deixa mentir, o seu Victor Torres é muito amigo do seu Rodolfo. E também é muito gentil, já me trouxe até uma
caixa de bombom. Pra vocês verem como
ele é. As pessoas pensam que só porque ele é artista vai ser metido. Não, o seu Victor Torres não é assim, não.
_ Entendo... Mas, além do Victor
Torres, quem mais costuma freqüentar aqui? – Medeiros perguntou.
_ Ih, urtimamente só
tem vindo o seu Victor. Mas antes vinha
um rapaz assim meio... – dona Maria Francisca desmunhecou.
_ Entendo. E que fim levou esse
tal rapaz? – Felício quis saber.
_ Ah, desde que o seu Victor Torres passou a vir aqui, ele sumiu. Ainda bem, pois ele não era boa influência
pro seu Rodolfo. Vocês não acham?
Os dois policiais concordaram balançando a cabeça.
_ E o nome dele? A senhora se
lembra do nome desse rapaz?
_ Roberto! Mas o seu Rodolfo só o
chamava de Robertinho. Ele vinha muito
aqui, mas ainda bem que nunca mais voltou.
Acho até que o seu Rodolfo não gostava muito dele. Os senhores sabem, né, o seu Rodolfo é um
arquiteto, tem uma posição, não dá pra ficar recebendo gente desse tipo em
casa. Eu só não me meto porque o seu
Rodolfo não me dá liberdade, mas se desse...
Ah, se desse um tiquinho só de liberdade eu já teria lhe aberto os
olhos. Às vezes o seu Rodolfo é meio ingênuo,
né!?
_ E a senhora não sabe como podemos encontrar esse Robertinho? – Felício
perguntou.
_ O senhor sabe que um dia desse eu esbarrei com esse moço ali perto da
minha casa? Pois é, eu tava indo pra
casa. Mas foi quando mesmo, meu Deus?... Ah, já sei!
Foi na quarta-feira passada. Eu
tinha cabado de fazer a
faxina aqui na casa do seu Rodolfo.
Então, eu peguei o 474. Às vezes
eu pego o 404 também. Ah, qualquer
ônibus que passa em Ipanema. É que moro
ali no Pavão-Pavãozinho pelo lado da Barão da Torre, não sei se vocês conhecem.
_ Conhecemos – Medeiros respondeu também pelo colega.
_ Pois é, desci ali na praça General Osório e fui andando. Gosto de descer ali na praça, pois tenho
alguns amigos que ganham a vida ali.
Tenho muitos amigos, a maioria é da igreja. Antes eu não tinha quase amigos, antes de
entrar pra igreja. Mas agora tenho
muitos amigos, gente que não passava nem perto de mim quando eu estava no
caminho errado. Vocês sabem, né, a gente
às vezes demora a encontrar o caminho certo, o caminho do Senhor. Mas graças ao Nosso Senhor Jesus Cristo que
está no céu, tudo na minha vida mudou depois que entrei pra igreja. Mas o que eu tava falando mesmo?
_ A senhora estava falando que encontrou o tal Robertinho – disse
Felício.
_ Ah, claro, vocês me desculpem.
Mas é que me empolgo quando começo a falar do Nosso Senhor Jesus
Cristo. Mas como alguém não pode ficar
empolgado quando fala no nome do filho do Nosso Senhor, né? Pois é, eu encontrei esse moço ali na Farme
de Amoedo, onde tem aqueles bares. Vocês
conhecem aqueles bares que vivem cheios de jovens bebendo? Pois é, ali é uma perdição só. Tantos jovens se perdendo com coisas do
Demônio. É isso sim, coisas do Demo! Que Deus me perdoe, mas aquilo não é coisa do
Nosso Senhor! E eu sei, posso falar de
cadeira, pois já estive no caminho errado.
_ Muito obrigado pelas informações, minha senhora. A gente já vai indo – Felício se levantou e
estendeu a mão para dona Francisca, pois não estava mais aguentando o papo da
carocha.
_ Mas os senhores já vão? Puxa, o
papo estava tão bom!
_ Precisamos ir. Os cidadãos de
bem precisam da nossa presença nas ruas – Felício quis impressionar dona Maria
Francisca com uma frase de efeito.
_ E eu não sei disso, meu filho?
Pois sei muito bem! Já estive no
caminho do mal por uns tempos.
_ Desculpe, minha senhora, mas creio que se todo o mal fosse como os que
a senhora tenha cometido na vida, a paz reinaria no mundo – Felício disse.
_ Engano do senhor.
_ Tá bem, o que a senhora poderia ter feito que pudesse desagradar Deus?
– finalmente quis saber Felício.
_ Meu filho, já fui presa por assassinato e tráfico de drogas. Cocaína!
Pois é, cocaína! Mas isso já foi
há muito tempo. Já paguei pelos meus
crimes. Vinte anos! Pois foi esse tempo que fiquei presa. Vinte anos!
Mas hoje agradeço ao Nosso Senhor Jesus Cristo por ter me mostrado o
caminho da verdade enquanto ainda era tempo.
Eu era conhecida como Chiquinha do Pó.
Mas tudo isso acabou! Glória,
glória ao Senhor!
Felício e Medeiros estavam boquiabertos, tomados pela revelação daquela
senhora de aparência inofensiva. Jamais
poderiam imaginar, nem nos seus pensamentos mais desvairados, que tal passado
pertencia a Maria Francisca dos Anjos.
Terceira
necropsia
Segunda-feira, 24 de março de 2003, 15h37...
A necropsia do corpo de Sandoval da Cunha Pereira foi praticamente idêntica
à de Almir. O legista Antônio Manoel
discorreu sobre a causa mortis
de forma sucinta, sem acrescentar novidades sobre o caso. Apenas notou que essa terceira vítima do Degolador
sofreu alguns hematomas nas faces, todas em virtude de bofetadas.
_ As vítimas desse assassino parecem gostar de apanhar – disse o legista.
_ Esse maníaco degolador escolhe as suas vítimas buscando as pessoas
masoquistas? – quis saber Medeiros.
_ Provavelmente.
Depoimento de Victor Torres
Sexta-feira, 28 de março de 2003, 16h55...
Como Rodolfo havia falado, Victor Torres, o grande astro das telenovelas
brasileiras, apareceu na delegacia de supetão, sem avisar que ia. Simplesmente deu na telha e entrou na 12ª DP
procurando o delegado Alexandrino.
_ Então, Dr. Alexandrino, que história é essa de acusar o meu amigo
Rodolfo de ser o tal Degolador?
_ Ninguém está acusando o seu amigo, senhor Victor. Estamos investigando o caso, e uma das
vítimas do degolador havia recebido uma ligação do telefone da casa do senhor
Rodolfo.
_ Não poderia estar havendo um engano de informações?
_ Infelizmente, não, senhor Victor.
A ligação foi mesmo feita do telefone da casa do seu amigo. Agora precisamos descobrir quem ligou para
uma das vítimas do Degolador.
_ E quem poderia ser? O Rodolfo
não é um psicopata assassino! E pelo que
li nos jornais, a senhora que trabalha na casa dele também não teria o perfil
desse tal Degolador.
_ Então, as suspeitas recaem sobre o senhor Rodolfo. Ele é o nosso principal suspeito.
_ Absurdo, Dr. Alexandrino! Eu estava com o Rodolfo no momento que esse
Degolador atacou uma das vítimas. Como ele poderia estar em dois lugares ao
mesmo tempo?
_ Talvez ele tenha um cúmplice, senhor Victor.
_ O que o senhor está querendo insinuar? Que eu também esteja envolvido
nesses assassinatos?
_ É o senhor que está dizendo isso.
_ Dr. Alexandrino, o senhor só pode estar de brincadeira!
_ A polícia não costuma brincar, senhor Victor, especialmente nesses
casos. Estamos trabalhando duro pra tentar desvendar esses crimes. Até agora temos poucas evidências, e temos que
trabalhar com o que temos. E o seu amigo
é um ponto de partida bem plausível, já que alguém fez uma ligação para o
celular de uma das vítimas desse assassino.
E essa ligação partiu do telefone do seu amigo. Agora, se o senhor
Rodolfo está ou não envolvido... Bem,
isso não cabe a você decidir, mas a nós da polícia.
_ Não estou tentando me meter no trabalho da polícia...
_ Então, não se meta! O senhor
pode sair machucado... Se preocupe com
suas novelas, que é o melhor que você faz, senhor Victor Torres. Caso haja necessidade, o chamaremos.
Isso foi o bastante para o grande astro das novelas perceber que estava
pisando em terreno perigoso. Victor
Torres não tinha mais coisa alguma a fazer ali.
Raquel
ataca em Ipanema
Sábado, 10 de maio de 2003, 23h38...
Rua
Barão da Torre 247, esquina com a rua Vinícius de Moraes, antiga
Montenegro. A bela loira toca o
interfone, sendo logo atendida por uma voz rouca.
_
Quem é?
_
Raquel.
O
dono da voz rouca aperta o dispositivo para abrir a porta.
_
Abriu?
_
Abriu!
Raquel entra no edifício de poucos
apartamentos, dois por cada um dos cinco andares. Antes de se dirigir ao elevador, ela se
esbalda com sua imagem refletida no grande espelho no hall da portaria.
Como está linda!
Depois de gastar alguns segundos
admirando a própria imagem, Raquel aperta o botão de chamada do elevador
social. Ele não demora a chegar. Há outro espelho no elevador, o que prende um
pouco mais sua atenção pela própria imagem refletida. Por incrível que possa parecer, ela está
ainda mais linda do que há poucos instantes, quando se admirou no espelho do hall. Finalmente aperta o botão do quarto andar,
onde o seu cliente de voz rouca a está esperando já com a porta do apartamento
401 entreaberta.
_ Raquel?
A dama da noite confirma com um leve
balançar de cabeça e um sorriso meio safado.
Não! Um sorriso completamente
despudorado!
_ Pedro?
_ Eu mesmo. Puxa, você é ainda mais linda do que
imaginei! – o novo cliente de Raquel parece precisar de um babador, tamanha a
sua admiração pela figura deslumbrante que tem diante de sua porta.
O acerto financeiro é concretizado
assim que Raquel coloca os pés no apartamento luxuoso. Só a sala é, muito provavelmente, maior do
que o quarto e sala que a dama da noite aluga em Copacabana.
O homem continua
embasbacado com a beleza estonteante da dama da noite, sem nem mesmo imaginar
que sua vida, a partir de agora, corre sério risco. Raquel, por sua vez, acompanha cada passo,
cada olhar de sua presa. Ela sorri antevendo
o enlace dessa história. Mas ela quer
curtir a noite, quer viver intensamente cada instante dessa macabra luxúria.
Pedro apaga quase todas as luzes do
apartamento, deixa apenas a do corredor acesa, o que causa uma penumbra que, em
outras ocasiões, se poderia afirmar ser sensual. Raquel gosta de tal situação, seus olhos de
gata logo se acostumam com a pouca luminosidade. Pedro coloca um disco, um long play, não
um CD, de música clássica. A primeira
música é Assim falava Zaratustra,
de Strauss. O cliente de Raquel parece
se transformar ao som de cada nota. Seu
porte másculo, atlético até, começa a ganhar nuances femininas, delicadas. A voz rouca dá lugar a uma voz delicada, meio
gay. Quase um metro e noventa de altura e 100
quilos de virilidade se transformam em Soninha, a dançarina de cabaré. Nada de cabaré parisiense, mas da Lapa,
bairro da boêmia carioca.
_ Estou dançando bem, minha querida?
_ ... – Raquel nada diz, apenas
observa a cena esdrúxula.
_ Como estou dançando? – o cliente
insiste na pergunta, enquanto começa a tirar a roupa (camiseta amarela e
bermuda vermelha de malha).
_ ... – Raquel, calada, continua
fitando a “dançarina” em ação.
Pedro está com a camiseta na mão
direita erguida sobre a cabeça. Ele
rodopia a mão e a atira a suada peça de roupa na direção de Raquel, que
continua imóvel, apenas com um sorriso no rosto, belo por sinal.
_ Está gostando, minha linda? –
Pedro ainda quer saber se sua performance está agradando.
_ ... – Raquel nada responde.
O cliente se vira e, rebolando,
abaixa a bermuda vermelha de malha. Raquel
logo percebe que é a última peça de roupa da “dançarina”, que se esqueceu de
colocar a calcinha. Talvez tenha sido
proposital. Quem vai saber? Quem quer se prender a tais detalhes, ainda
mais num momento tão crucial?
Pedro continua sua dança do
acasalamento, ele quer impressionar a sua doce e meiga amante. Meiga? Não, jamais poderíamos afirmar tal coisa! Injúria, diriam alguns! Doce? Talvez... Mas de tão doce chega a ser amarga!
O pênis e os testículos de Pedro
chacoalham conforme seus passos, que já são descompassos, teimam em não seguir
a melodia da música, uma das Bachianas
brasileiras, de Heitor Villa-Lobos.
Viva os descompassos! Viva a
descompostura!
Raquel, finalmente, se faz presente. Ela ostenta em sua mão o seu enorme
brinquedinho, nada menos do que 22 centímetros de comprimento, sem contar o
respeitável diâmetro. Pedro, vendo o
instrumento de prazer nas pequenas e delicadas mãos da dama da noite, se vira
de costas, coloca as mãos nos joelhos, que se curvam para exibir melhor a sua
bunda disforme e cabeluda. Ele parece
entrar em êxtase. Um frenesi invade o
corpo de Raquel.
_ Venha, cá! – Raquel ordena, no que
é prontamente atendida.
Diante de si, Raquel observa o corpo
suado, nu do cliente. Suas narinas
absorvem o odor da transpiração. Ela
toca o saco do homem, aperta um dos testículos.
Um pequeno gemido escapa dos lábios de Pedro, Raquel aperta-lhe ainda
mais na delicada região. Uma lágrima
escorre pelo rosto do homem. Pobre
Pedro... E ele sorri. E ela gargalha!
_ Endurece essa pica! – ordena Raquel.
Nada! Nenhuma reação do membro, outrora viril, do
homem, outrora também viril. Raquel fica
furiosa, pega o pênis do cliente e o leva aos lábios. Nada consegue fazer o falo de Pedro se
levantar, ficar em riste. Nem mesmo as
mais variadas técnicas de felação praticada por Raquel conseguem devolver a
vida ao outrora órgão reprodutivo.
Inútil! Agora se trata apenas de
um instrumento única e exclusivamente para micção.
_ De quatro, cachorro!!! – Raquel
grita com Pedro, que obedece.
A dama da noite observa aquele homem
prestes a ser possuído. Ela lambe-lhe o
rabo, Pedro expõe ainda mais seu ânus, que pisca de prazer. Raquel encosta a glande de seu enorme
brinquedinho no cu de Pedro, que se prepara para receber cada um dos 22
centímetros. A penetração não demora a
acontecer, dolorosa, prazerosa. O pênis
de Pedro responde prontamente à invasão e, em poucos instantes, derrama sobre o
chão da sala uma quantidade inacreditável de leite da vida. Essa é a hora de Raquel agir, ela saca de sua
bolsa a faca tipo magarefe e desfere o golpe fatal no amante da vez, que ainda
tem tempo de se virar e tomar-lhe a arma branca. Nessa luta, Raquel acaba sendo ferida na mão
esquerda, a mão assassina. Logo em
seguida, o corpo de Pedro tomba de lado sobre o chão de cerâmica com desenhos
geométricos.
O álibi
Domingo, 11 de maio de 2003, 10h...
O
delegado Marcos Alexandrino estava exasperado com os crimes do Degolador, ainda
sem solução. Chamou os inspetores
Medeiros e Felício, que logo se apresentaram em sua sala.
_
Minha paciência já chegou ao limite! – Alexandrino quase gritou.
Os
inspetores simplesmente abaixaram a cabeça, não sabiam o que dizer, mesmo
porque não tinham uma boa pista ou, ao menos, qualquer idéia sobre por onde
começar. Claro, havia a ligação feita do
telefone da casa do arquiteto Rodolfo Simplício Marques para o celular da
segunda vítima do Degolador, José Almir de Medeiros, mas essa investigação
estava um pouco travada. Eles teriam que
dar um “aperto” no arquiteto, que tinha de explicar o tal telefonema.
_
O que nós já temos sobre esse caso desse maldito Degolador? – o delegado
continuou no mesmo tom de voz.
_
Bem... Estamos investigando o arquiteto
Rodolfo Marques – disse Medeiros.
_
Tá, mas e daí? O que temos de prova
contra esse cara? Será que ele é mesmo o
nosso homem? – Alexandrino sabia que o arquiteto não era o Degolador, mas
provavelmente estava ligado ao caso de alguma forma.
_
Pode ser que sim... – falou Medeiros.
_
Pode ser que não... – completou Felício.
_
Essa é boa! Puta que pariu! O que vocês são? Uma versão de Os Três Patetas reduzida a
dois? Vocês devem estar de brincadeira
comigo!
_
Chefe, esse caso tá muito complicado.
Quando a gente acha que tá chegando perto... Puxa, de repente estamos longe – desculpou-se
Felício, o que fez a ira de Alexandrino aumentar.
_
Procurem alguma coisa, qualquer coisa!
Quero ao menos uma pista, uma boa pista sobre esse maldito assassino
ainda hoje na minha mesa! Pensem,
pensem! Vocês são pagos pra isso! - o delegado gritou.
Medeiros
e Felício saem, literalmente, com o rabo entre as pernas, enquanto Marcos
Alexandrino prepara um chá de camomila com algumas gotas de adoçante.
*
* * * *
_
Porra, o Alexandrino pegou pesado! – Medeiros desabafou.
_
Mas eu até entendo. Ele deve tá sendo
muito pressionado pelo Bambinni – Felício defendeu o delegado.
_
É, mas quem leva toda a culpa é a gente!
_
Nada mais natural, meu amigo. As coisas
sempre funcionaram dessa forma. O
presidente joga a culpa no diretor, que joga a culpa no gerente, que joga a
culpa no trabalhador, que desconta na mulher, que desconta na empregada, que
desconta no cachorro, que desconta no gato, que desconta no rato... O mundo é assim, simplesmente é assim –
Felício quis dar uma de Sócrates ou Aristóteles.
_
Tá bom, mas o que a gente vai fazer agora?
Precisamos tirar o nosso da reta.
_
Andei pensando... Vamos ter uma
conversinha com esse engenheiro!
_
Que engenheiro?
_
Esse tal Rodolfo.
_
Arquiteto, Felício! O cara é arquiteto!
_
E isso faz alguma diferença? Por mim ele
pode até ser açougueiro que não muda nada!
_
Tá, tá, Felício, não precisa se estressar!
_ Não tô estressado!
_
Tudo bem, não tá mais aqui quem falou.
Então, quando vamos ter essa conversa com esse engenheiro-açougueiro? –
Medeiros brincou com o colega, que não aguentou e caiu na gargalhada. Mas não
era uma gargalhada como há algum tempo, mas entremeada de nervosismo, que de
vez em quando nos empurra riso abaixo.
_
Podemos dar um pulo agora mesmo lá no escritório dele – respondeu Felício,
ainda com um sorriso nos lábios.
_
Mas não é melhor telefonar antes? Às
vezes ele pode não estar.
_
Não, prefiro chegar de supetão! Assim,
ele não vai ter tempo de inventar historinhas.
E se o cara tiver saído, a gente pega um cineminha na Cinelândia.
_
Olha a vagabundagem, Felício!
_
Ah, tô precisando espairecer!
*
* * * *
11h40...
Medeiros
e Felício já estão nas ruas do Centro, onde fica o escritório do arquiteto Rodolfo
Simplício Marques. O calor castiga os
inspetores, gotas de suor escorrem, fazendo com que os dois precisem recorrer a
lenços.
_
Puta que pariu, que calor! Até que enfim
chegamos! – Medeiros exclamou.
Em
poucos minutos os dois inspetores da Polícia Civil tocam a campainha da sala do
arquiteto Rodolfo. E como da última vez,
quem atendeu foi a ruiva que fez Medeiros ficar embasbacado.
_
Pois não... Ah, os senhores são aqueles que vieram aqui procurando o Dr.
Rodolfo há algum tempo.
_
E podemos conversar com ele agora? – perguntou Medeiros.
_
Olha, ele acabou de sair pra almoçar, mas deve estar de volta daqui a uma hora
no máximo. Se os senhores quiserem
esperar...
_
A gente volta mais tarde, então – disse Felício.
_
Tudo bem. Se o Dr. Rodolfo retornar
antes, digo que os senhores estiveram aqui.
Já
dentro do elevador, Medeiros perguntou ao colega o que fariam durante a próxima
hora.
_
Vamos fazer uma boquinha também. Afinal,
também somos filhos de Deus.
_
Taí porque gosto de você, Felício! Você
sempre diz coisas que quero ouvir – brincou Medeiros.
Os
inspetores rumaram para uma lanchonete, onde comeram alguns pastéis com caldo
de cana. E depois de saciarem seus
estômagos, rumaram de volta ao escritório do arquiteto.
_
O Dr. Rodolfo ainda não voltou do almoço.
Os senhores não querem esperá-lo?
Ele já deve estar chegando – disse a secretária Graciele, que hoje
vestia branco.
_
É, vamos aguardá-lo – respondeu Felício, logo se acomodando no sofá de espera.
_
Os senhores aceitam um suco, um café, uma água?
_
Dois cafés, por favor – Felício respondeu também por Medeiros, haja vista este
estar de queixo caído pela chamativa ruiva.
Enquanto
a secretária providenciava os cafés, Felício passou um pequeno sermão no
parceiro. Logo em seguida pegou uma
revista no cesto ao lado. Era uma dessas
revistas de fofocas, onde aparecia na capa o galã das telenovelas Victor
Torres. Ele estava acompanhado de uma
loira estonteante. Letras garrafais
diziam que o galã estava passando alguns dias em Porto Seguro ao lado de sua
nova namorada. Felício não pode deixar
de pensar nas coisas que a polícia descobriu nos últimos tempos em relação às
preferências sexuais do artista. Em seguida,
ele procurou a matéria sobre o galã.
_
Merda!
_
O que foi, Felício?
_
Olha o nosso suspeito aqui. – Felício aponta a foto do arquiteto Rodolfo
Marques acompanhado de uma morena, do galã Victor e de sua suposta nova
namorada.
_
E o que tem isso de mais?
_
Olha a data!
_
Tá, mas e daí?
_
O nosso suspeito estava a passeio no dia do último crime! O maldito tem um álibi! Vamos embora! – Felício praguejou na mesma
hora que a ruiva apareceu com a bandeja e as duas xícaras de café. Ele não
sabia que Rodolfo já havia sido descartado do rol de suspeito. E mesmo se
soubesse, isto não descartaria a participação dele nos crimes ou, então, uma
possível ligação com o Degolador.
_
Desculpe, minha querida, mas já estamos de saída – Felício se despediu da
secretária sem nem mesmo tocar na xícara.
_
Mas os senhores não vão esperar pelo Dr. Rodolfo?
_
Não! Outra hora a gente vem aqui –
Felício desconversou.
_
É, a gente já tá de saída – Medeiros falou ao mesmo tempo em que pegava uma das
xícaras e sorvia o líquido preto.
Saíram!
O
telefonema
Ainda 11 de maio, 21h...
O
telefone toca!
_
Alô?
_
Meu amor, sou eu!
_
Ah, oi, Tereza. Você vem aqui hoje?
_
Acho que não, meu bem. Eu não estou me
sentindo bem hoje.
_
Tá menstruada?
_
Não, não é isso. É que ontem tive de
tomar uns pontos na mão.
_
O que houve?
_
Ah, eu me machuquei quando tava cortando uns bifes.
_
Puxa, você tem de ter mais cuidado com faca, meu bem – Medeiros demonstra um
pouco mais de carinho pela namorada, algo pouco comum nos últimos tempos.
_
É, eu sei, foi uma distração boba. Mas
não se preocupe, eu tô bem.
_
Você tem certeza? Não quer que eu vá aí
buscá-la?
_
Não precisa se preocupar, meu amor. Eu
tô bem, já falei. Vou me deitar um
pouco, amanhã a gente se fala.
_
Tá bem, mas me liga se precisar de alguma coisa, qualquer coisa.
_
Obrigada, meu amor. Vou desligar
agora. Eu te amo muito!
_
Também te amo – Medeiros, definitivamente, parece estar novamente apaixonado
pela bela Tereza. Ou, então, estivesse precisando de alguém que lhe desse um
pouco de colo, haja vista os últimos acontecimentos.
Um cadáver em Ipanema
Terça-feira, 13 de maio de 2003, 09h16...
Justamente
na hora em que estava chegando à delegacia, Medeiros e Felício são informados
que foi encontrado o corpo de mais uma vítima do Degolador.
_
É melhor vocês irem correndo pra Ipanema, meus camaradas.
_
O que houve? Não vai me dizer que
encontraram mais uma vítima do maldito Degolador?
_
Bem, se é pra não dizer, então não digo – disse Beto, um escrivão da 12ª DP.
_
Fala logo, homem! – Felício se irritou com a brincadeira.
_
Calma, cara! Tá bom, tá bom... Encontraram um cara lá na Barão da
Torre. Parece que foi o Degolador que
fez o serviço – finalmente o escrivão respondeu claramente.
_
Qual o número?
_
Duzentos e quarenta e sete, apartamento 401.
_
E o Raul? – Felício perguntou.
_
Ele tava arrumando as coisas pra ir.
Ainda deve tá lá na sala dele, não sei.
_
E o Alexandrino já tá sabendo? – Medeiros quis saber.
_
Ainda não chegou.
_
Então, vamos logo, Felício!
Os
inspetores apertaram o passo até a sala do perito Raul, onde o encontraram
quase que de saída. Araújo e Lima estavam
com ele.
_ Já tão sabendo? – Raul perguntou
já antevendo a resposta, haja vista as caras apreensivas que surgiram à sua
porta.
_ O Beto nos falou – respondeu
Medeiros.
_ Pois é, parece que o Degolador
agiu novamente – Raul continuou.
_ Vamos logo, cara, antes que o
Alexandrino chegue. Não tô a fim de
levar outro esporro logo de manhã – Felício apressou os colegas, no que foi
logo atendido, pois em poucos minutos já estavam dentro da viatura a caminho do
luxuoso bairro carioca.
*
* * * *
09h45...
Enquanto Lima procurava um local
para estacionar o carro, Medeiros e Felício acompanharam o perito Raul e o
papiloscopista Araújo. Havia uma pequena
multidão de curiosos em frente ao edifício, além de jornalistas. Nenhum parente, nenhum amigo da vítima, que
era apontada pelos moradores como um vizinho bastante discreto.
Já no apartamento 401, onde jazia o
corpanzil de Pedro Raimundo Romão, 44 anos, solteiro, comerciante (era
proprietário de uma loja de produtos esportivos, ali mesmo no bairro), os três
policias tentam encontrar alguma pista que leve ao Degolador. Raul segue sua rotina, aliás, seu trabalho
realmente tem sido uma rotina, haja vista a quase uniformidade dos crimes
cometidos por Raquel. Mas, afinal, nem
tudo é tão igual assim...
_ A vítima parece que tentou se
defender do Degolador.
_ Por que você tá falando isso,
Raul? – quis saber Felício.
_ Bom, a vítima parece que foi
golpeada quando estava de costas para o assassino. Só que ela se virou, morrendo logo
depois. Só que conseguiu ferir o
Degolador.
_ Como você sabe disso? – Medeiros
perguntou.
_ Não sei se vocês notaram, mas há
sangue no caminho para o banheiro e no chão até a porta. E com certeza não é sangue da vítima.
_ Mas a vítima não poderia ter sido
atingida na porta ou no banheiro? – Felício questionou.
_ Não, pois também há sangue no
capacho. E por que a vítima iria abrir a
porta para depois retornar e morrer justamente aqui?
_ É, você tem razão, Raul – Felício
concordou, justamente na hora que Lima adentrava no apartamento.
_ E aí, foi mesmo o Degolador? – o
ajudante de Raul quis saber.
_ Diria que temos 100% de chances –
o perito confirmou.
E depois da coleta de digitais e
amostra de sangue e das anotações de praxe, Raul liberou o corpo para o pessoal
da Defesa Civil.
Mais uma visita ao IML
Segunda-feira, 18 de maio de 2003, 11h43...
Medeiros, Felício e o perito
Raul estão na sala de necropsia na presença do médico legista Antonio Manoel.
_ Pois bem, meus amigos, trata-se,
sem sombra de dúvida, de mais um crime desse tal Degolador. A vítima foi golpeada da direita para a
esquerda, quando estava de costas para o assassino, logo após ter alcançado o
orgasmo, já que foi encontrado esperma, que com certeza o exame de DNA irá
confirmar ser da vítima. No entanto, não
foi verificado material espermático do assassino, apesar de ser evidente a
sodomização da vítima, pois na região anal da mesma são evidentes as feridas
provocadas por uma penetração vigorosa.
Arriscaria em afirmar que o assassino é alguém muito bem dotado, se é
que vocês me entendem – concluiu o Dr. Antonio Manoel.
_ Mais alguma coisa? – Felício
perguntou.
_ Ah, sim. O assassino parece ter enfrentado dificuldade
em sua tarefa, já que também foi encontrado sangue não pertencente à vítima,
que era do tipo sanguíneo O positivo. O
tipo de sangue do assassino é B negativo, um tipo raro. E é só!
Espero ter ajudado os senhores em alguma coisa.
_ Obrigado, doutor, o senhor foi
bastante útil – Felício quis ser gentil com o médico legista, pois não
conseguia imaginar em que poderia ser útil saber o tipo sangüíneo do Degolador.
Rodina
Sexta-feira, 27 de junho de 2003, 17h27...
Medeiros e Felício foram
chamados à sala do delegado Alexandrino, que estava acompanhado de um homem de
pouco mais de 50 anos (apesar de aparentar bem menos), cabelos loiros e alguns
míseros fios brancos, bigode basto, olhos azuis, 1,72 metro de altura, magro,
rosto encovado, fumante inveterado.
_ Quero que vocês conheçam o detetive Rodina – disse Alexandrino.
Depois das formalidades, o delegado começou a descrever as qualidades de
Rodina.
_ Rapazes, vocês estão diante de um dos maiores nomes da história da
Polícia Civil do Rio de Janeiro. Este
homem foi o responsável pela solução de diversos casos complicados durante o
período em que esteve na ativa. Há dois
anos ele se aposentou, mas continua prestando serviços à polícia. Quero que vocês passem todas as informações
do caso desse assassino de uma figa para o Rodina. Ele agora irá ajudá-los nas investigações.
Felício e Medeiros olharam
para o homem de olhos azuis, depois se entreolharam. Nunca haviam passado por situação parecida em
todos os anos que estiveram na Polícia Civil.
Não estavam gostando da situação.
Mas, como não havia outra escolha, tiveram de engolir cada palavra da
ordem do delegado Alexandrino. Apenas rezaram para que a digestão não fosse tão
ruim... e fosse breve!
* * * * *
Meia hora mais tarde no bar da esquina...
_ Pois é, meus amigos, logo percebi que vocês não aceitaram muito bem a
minha participação nesse caso. Eu mesmo
não gostaria de ver algum abelhudo fuçando as minhas coisas. Mas, talvez, digo talvez, eu possa ajudá-los
a desvendar esses crimes. Não fui melhor
policial que vocês, apenas creio que tenho um pouco mais de experiência, mesmo
porque tenho idade para ser pai dos dois.
_ Que é isso, seu Rodina! O senhor não deve ter mais que dois ou três
anos a mais que eu.
_ Em primeiro lugar, Medeiros, meu nome é Rodina. Não me lembro da minha mãe ter colocado meu
nome de Senhor Rodina, mas Edson Rodina.
Então, vamos deixar o Senhor lá no céu.
Em segundo lugar, já passei de meio século de vida... E você, com
certeza, ainda está bem longe de completar 40.
_ Quarenta e quatro – disse um sorridente Medeiros.
_ Não diga! E você Felício? Não
vai me dizer que também já chegou à boa idade?
_ Também, Rodina. Em agosto
completo 43 – Felício também sorri.
Pronto! Rodina soube perfeitamente
quebrar o gelo que o separava dos inspetores.
Agora era questão de tempo para se tornarem verdadeiros parceiros. Logo percebeu que o vício pelo fumo o ligava
a Medeiros. E a bebida o unia aos dois.
Beberam, conversaram sobre mulheres, futebol. Levantaram verdadeiras teses sobre
relacionamentos amorosos, montaram seleções imbatíveis com jogadores de
diferentes épocas... Tudo o que os
homens gostam! Rodina, mulherengo de
marca maior, botafoguense inveterado, falou, falou, falou... Mas soube ouvir, afinal, tinha de ganhar a
confiança dos seus “pupilos”. Precisavam
formar uma equipe. E o homem dos olhos
azuis conseguiu!
Juntando os cacos
Sábado, 12 de julho de 2003, 15h25...
Medeiros,
Felício e o perito Raul estão com o detetive Rodina, que tem em suas mãos a
pasta contendo todos os percalços dos crimes cometidos pelo Degolador. Lima, o auxiliar de Raul, também está com
eles.
_ Hum, interessante!
_ O que é interessante, Rodina? –
quis saber Felício.
_ Bem, ao que tudo indica, nosso
degolador só ataca aos sábados. Mas por
quê? Ritual? Talvez...
Mas não creio que seja isso. Não
estou descartando essa hipótese, apenas acho que seja outra coisa. Talvez o nosso degolador possua um outro
ofício.
_ Ofício? Mas que outro ofício, Rodina? – desta vez foi
Medeiros que interrogou o homem dos olhos celestes.
_ Não sei. Mas é algo que lhe ocupe os dias da
semana. Qualquer emprego. Talvez ele seja até mesmo um profissional
liberal. De qualquer forma, o nosso
assassino parece mesmo ter algo que lhe ocupe o tempo nos dias de semana.
_ E o que mais você percebeu nos
relatórios, Rodina? – era a vez de Raul lhe fazer uma pergunta.
_ Olha, segundo os laudos das
necropsias, apenas a primeira vítima foi golpeada de frente. As outras foram assassinadas pelas
costas... logo após terem sido
sodomizadas.
_ E daí?
_ Ora, Medeiros, por que isso teria
acontecido? Talvez o nosso assassino
tenha hesitado no primeiro crime, dando a chance da vítima de se defender, daí
tê-la golpeado pela frente. Ou, quem
sabe?
_ O quê, homem? – perguntou um
excitado Felício.
_ ... Talvez o nosso degolador nem
tenha tido a intenção de matar. Talvez
tenha sido a oportunidade, a ocasião ou, até mesmo, a necessidade.
_ Como assim?
_ Olha, Raul, a primeira vítima
possuía um hematoma na cabeça que, segundo a própria perícia, fora provocado
por um vidro de loção. Então, a
possibilidade do nosso degolador ter sido atacado pela sua primeira
vítima... Sinceramente, penso ser uma
possibilidade bem plausível.
_ É uma possibilidade – concordou
Raul.
_ Tá, digamos que essa sua teoria
seja verdadeira. Por que, então, ele
continuou matando?
_ Talvez tenha pegado gosto pela
coisa, meu caro Medeiros.
_ Rodina, segundo os laudos do IML,
todas as vítimas sofreram penetração anal, o que demonstra que eram
masoquistas. Então, o Degolador escolhe
suas vítimas procurando as mais submissas? – perguntou Felício.
_ Não creio que seja o Degolador que
escolhe as suas vítimas, mas justamente o contrário.
_ Como assim? – quis saber o
parceiro de Medeiros.
_ Pra mim, esse Degolador coloca um
anúncio em classificados de jornais, revistas ou na internet. São anúncios bem específicos, onde o
Degolador oferece serviços de sodomia. Então, as futuras vítimas entram em
contato.
_ Tá bom, então temos um travesti
que coloca anúncios em algum lugar e depois mata as sua vítimas, mas somente
aos sábados, pois tem outra ocupação durante a semana.
_ Não sei se concordo plenamente com
você, Medeiros.
_ Como assim? Tem alguma coisa que deixei passar?
_ Talvez... – Rodina faz certo ar de
mistério.
_ O que você está matutando aí nessa
sua cabeça, Rodina? – Raul quis saber.
_ Meus amigos, de onde saiu essa
idéia de que o degolador é um travesti?
_ É lógico que só pode ser um
travesti. Todas as vítimas foram
enrabadas, segundo o Dr. Antônio Manoel do IML – disse Felício.
_ E eu não discordo quanto a isso.
_ Então, o que você acha que sej...
Não!? Uma mulher?
_ Exatamente, Felício! Uma mulher que atende seus clientes com um
pênis artificial. Daí não haver indício
de esperma na região anal das vítimas. E
também não havia material que indicasse o uso de preservativo. Então, penso que a opção mais lógica é que o
nosso degolador é, na verdade, uma mulher!
_ Nossa investigação ficou muito
pior agora – lamentou Medeiros.
_ Por que você tá falando isso? –
quis saber Felício.
_ Porra, existem muito mais putas do
que travestis nas ruas.
_ É verdade, Medeiros, mas agora
estamos no caminho certo. E, se não
estou enganado, creio que estamos bem mais perto de descobrir quem é a nossa
assassina do que podemos imaginar.
_ Do que você tá falando, Rodina? –
Medeiros perguntou.
_ Olha, pelo que li no relatório
sobre esse caso, sei que um dos telefonemas recebidos por uma das vítimas
partiu da casa de um dos suspeitos, esse tal Rodolfo Marques.
_ Então, você acha que ele é o
assassino? – perguntou Lima.
_ Não, meu jovem, mesmo porque, como
já falei, o nosso degolador é uma mulher.
Mas a chave de todo esse mistério está justamente no edifício desse tal
Rodolfo.
_ Então, a assassina é a mulher que
trabalha na casa dele? – o auxiliar de Raul fez nova pergunta.
_ Desculpe informá-lo novamente que
você está enganado, meu jovem. Segundo o
próprio relatório, tal senhora não tem o perfil de uma mulher que pare o
trânsito. Não, definitivamente não é
essa senhora a nossa degoladora. Se bem
que não descarto a possibilidade de, talvez, ela ser cúmplice da assassina.
_ Deixe de mistério, homem! Quem, então, é a degoladora? – perguntou um
esbaforido Felício.
_ Ainda não sei, meu amigo. Ainda não sei...
_ Então, como pode ter certeza de
que a chave desses crimes está justamente no edifício desse Rodolfo? –
perguntou Raul.
_ Felício, preciso que você e o
Medeiros me acompanhem até o prédio onde mora esse Rodolfo. E se pudermos ir agora mesmo, melhor!
_ O que você tá matutando aí nessa
sua cabecinha, Rodina?
_ No caminho eu explico, Felício.
_ E a gente, o que a gente faz
enquanto isso? – quis saber Raul.
_ Bem, se você quiser nos
acompanhar...
_ Claro que quero, Rodina! – disse
Raul quase pulando da cadeira. E,
virando-se para o seu auxiliar: _ Lima, fique aqui pra qualquer emergência!
_ Tá bom, chefe – respondeu um
contrariado Lima, que queria tomar parte dessa diligência, ainda mais agora que
a investigações pareciam caminhar para uma solução.
*
* * * *
Em
pouco mais de meia-hora, Rodina e os três policiais chegavam ao edifício do
arquiteto Rodolfo Marques. Medeiros
apresentou sua insígnia ao porteiro, um homem de aproximadamente 30 anos.
_ Por favor, poderíamos falar com o
síndico? – perguntou Rodina.
_ É síndica. O que os senhores desejam com ela?
_ Assunto confidencial, meu jovem –
respondeu Rodina.
O porteiro, Jorge, interfonou para o
apartamento da síndica e avisou-lhe que havia alguns homens da polícia querendo
falar com ela. A síndica, sra.
Magdalena, não obtendo resposta sobre o que os policias queriam, disse ao
porteiro que já ia descer. E foi o que
fez, não demorando mais que alguns minutos.
_ Pois não, o que os senhores
desejam comigo?
_ Bem, minha senhora, qual é a sua
graça, por favor? – perguntou Rodina.
_ Magdalena.
_ Pois bem, sra. Magdalena, meu nome
é Rodina e esses são os policiais Medeiros, Felício e Raul. Estamos aqui apenas para conversar. Quem sabe a sra. não nos ajuda a esclarecer alguns
fatos?
_ Não sei como poderei ajudar os
senhores, mas, de qualquer forma, queiram, por favor, me acompanhar.
A síndica se dirige à sala de
reunião dos condôminos, tendo os quatro homens em seu encalço.
Já devidamente acomodados...
_ Sra. Magdalena, já percebi que o
edifício é todo monitorado por câmeras.
Então, se possível, gostaríamos de ter acesso à fita do dia 08 de
fevereiro – começou Rodina.
_ Oito de fevereiro? Mas o que vocês estão procurando? Algum crime foi cometido aqui?
_ Não, mas, ao que tudo indica, a
pessoa que estamos procurando esteve neste edifício pouco antes de ir para o
local do assassinato – respondeu o homem dos olhos azuis.
_ Do que o senhor está falando? Que crime foi cometido? Algum morador está envolvido?
_ Talvez... Somente com a fita
poderemos ter acesso à verdade, minha senhora – esclareceu Rodina.
_ Bem, não sei se ainda temos a
fita, pois costumamos apagar todas as com mais de três meses. Talvez ainda tenha, não sei, terei de
verificar.
_ Então, por favor, verifique. É muito importante para desvendarmos esse
crime. Pode ser agora? – quis saber
Rodina.
_ Claro, vou ver agora mesmo. Os senhores aceitam um café, uma água?
_ Café – Rodina respondeu por todos.
Assim que a senhora saiu, Raul se
virou para o homem dos olhos azuis e perguntou:
_ Rodina, e se a fita já tiver sido
apagada?
_ Vamos pensar positivamente, meu
caro. Mas se isso tiver mesmo
acontecido, ainda tenho uma carta na manga.
_ E que carta é essa? – quis saber o
perito.
_ Poderemos tomar o depoimento do
porteiro que estava de plantão nesse dia.
_ É, você é um cara esperto, Rodina!
– exclamou Felício.
_ Não, apenas alguns anos na polícia
me fizeram um pouco calejado, meu jovem.
*
* * * *
Meia hora após...
_ Os senhores estão com sorte. Temos até as fitas de novembro de 2002. Aqui estão as fitas que estão procurando.
_ Excelente, sra. Magdalena! A senhora, muito provavelmente, está
colaborando com a polícia para desvendar um dos maiores mistérios dos últimos
anos! – falou um exaltado Rodina.
_ Mas que mistério é esse,
senhor...? – a síndica se dirigiu ao homem dos olhos azuis.
_ Rodina! – o próprio lembrou seu
nome.
_ Sim, senhor Rodina. Afinal, que mistério é esse?
_ Infelizmente, minha senhora, não
posso lhe confidenciar o que estamos procurando nessa fita. Apenas posso lhe adiantar que a polícia lhe é
muito grata. E, se não for
inconveniente, gostaríamos de ficar com esta fita.
_ Bem, essa fita já deveria ter sido
reutilizada há algum tempo... Claro, o
senhor pode ficar com ela.
_ Muitíssimo obrigado, senhora
Magdalena. Não queremos lhe tomar mais o
seu precioso tempo. Então, estamos de
saída.
Afinal, quem é essa mulher?
Ainda 12 de julho, 19h46...
Rodina,
Medeiros, Raul, Felício e Lima assistem à fita de vídeo na delegacia. Muitas imagens de gente subindo e descendo os
elevadores, carros entrando e saindo da garagem, mas nada que pudesse despertar
alguma suspeita até então.
_ Adianta mais a fita, Lima – pede
Felício.
_ Alguém quer café? – Medeiros
oferece ao companheiros enquanto acende mais um dos inúmeros cigarros que fumou
durante o dia.
Todos aceitam. O homem dos olhos azuis aproveita e também
acende mais um “mata-rato”. As fumaças
dos cigarros de Medeiros e Rodina se espalham por toda a saleta.
_ Cara, esse é o pior filme que vi
nos últimos dez anos. E olha que
consegui ver metade de Apolo 13!
– Raul brinca com os companheiros e consegue arrancar algumas gargalhadas.
_ Adianta mais um pouco aí, Lima –
pede novamente Felício.
De repente...
_ Para aí, para aí, Lima! – exclama
Rodina
Lima dá o comando de stop
no controle. Depois aciona o play.
_ O que foi, Rodina? – quis saber
Raul.
_ Um minutinho... Volta um pouco,
Lima. Um pouco mais. Aí, para aí!
Essa mulher! Podemos estar diante
a nossa assassina!
Medeiros, Felício, Raul e Lima
observam a imagem da bela mulher na tela.
Ela está entrando no prédio, depois vai em direção ao elevador, para,
aciona o botão de chamada, espera por alguns instantes, abre a porta, entra,
aperta um dos botões no painel dos andares, se olha no espelho do elevador, que
para em determinado andar, ela abre a porta e sai. O horário da gravação é 12h01. Pouco mais de 20 minutos, lá estava a mesma
mulher descendo de elevador. Não dava
para ver qual era o andar que ela tinha estado, mas isso poderia ser checado
com o porteiro.
_ Caraca, que gata! – exclama um
Lima quase babando.
_ Ei, eu conheço essa mulher! –
Medeiros pula da cadeira, quase deixando o cigarro cair dos seus dedos.
_ De onde? – quis saber Rodina.
_ Cara, taí, não tô lembrando, mas
esse rosto não é estranho! Não sei se é
o cabelo que tá diferente...
_ Ei, eu também tô reconhecendo essa
mulher! – disse Felício.
_ De onde, Felício? – Rodina voltou
a fazer a mesma pergunta.
_ Puxa, cara, não tô lembrando. Mas já vi esse rosto em algum lugar.
_ Bem, uma coisa é certa: vocês dois
a conhecem de algum lugar. E é de algum
lugar em que vocês dois estiveram, muito provavelmente durante as investigações
– disse o homem dos olhos azuis.
_ Cara, sei que conheço essa
mulher! Só que ela tá diferente, tem
alguma coisa nela que tá mudado – Medeiros continuava não sabendo de onde
conhecia a tal mulher.
_ Pelo relatório vi que você e o
Felício estiveram no apartamento do arquiteto Rodolfo Marques. Essa moça, por acaso, não seria apenas uma
moradora do prédio? – Rodina perguntou.
_ Não, não é de lá que a
conheço. É de outro lugar! – Medeiros
respondeu, enquanto Felício concordava com o parceiro apenas com um aceno de
cabeça.
_ Será que não foi em algum ponto de
prostitutas? – sugeriu Rodina.
_ Não sei, Rodina, não sei. O que você acha, parceiro? – Medeiros se
dirigiu a Felício.
_ Pode ser... Pode ser...
_ Bom, seja como for, vocês conhecem
essa mulher de algum lugar. Mais cedo ou
mais tarde vocês vão se lembrar. Talvez
quando vocês forem para casa, tomarem um bom banho e relaxarem. Mas creio que podemos estar diante da nossa
assassina. Amanhã continuamos, rapazes –
concluiu Rodina.
O canto do cisne
21h15...
Medeiros e Felício saíram da
delegacia logo após assistirem à fita de vídeo.
Continuavam intrigados. Afinal,
de onde conheciam a tal mulher?
_ E aí, que tal tomar um ou dois
chopes? – sugeriu Felício.
_ Não tô muito a fim, não, cara.
_ Que é isso, meu irmão? Tá ficando velho? Recusando uma rodada de chope com o seu
parceiro?
_ Não é isso, cara. A Tereza ficou de passar lá em casa hoje...
_ Ah, voltaram às boas? Vai acabar casando com aquela gatinha!
_ Talvez fosse até uma boa,
Felício. Já tá mais que na hora de botar
uns moleques no mundo.
_ Ih, tá pensando em virar papai?
_ É, chega uma hora na vida de um
homem que a gente começa a pensar nisso.
E você, nunca pensou em ter filhos?
_ Ah, já tive vontade, mas é aquela
coisa: vontade é coisa que dá e passa!
E, então, vai ou não vai me dar a honra de tomar um chopinho com o
futuro papai Medeiros? – disse Felício, arrancando uma risada amarelada de
Medeiros.
_ Tá bom, cara! Você venceu!
Mas é só um chopinho!
_ Eu prometo! Palavra de escoteiro – disse Felício cruzando
os dois indicativos e os levando aos lábios para beijá-los.
*
* * * *
No botequim...
_ Medeiros, de onde conhecemos
aquela mulher?
_ Também tô encucado com essa
história. Já tentei me lembrar, mas não
consigo. Talvez, como disse o Rodina, a
gente precisa relaxar um pouco pra se lembrar.
_ É, quem sabe se depois de alguns
chopes a gente não acaba lembrando?
Os dois policiais trataram logo de
providenciar algumas tulipas do tal líquido relaxante. E, óbvio, com a tradicional porção de batatas
fritas.
*
* * * *
Quase
três horas após e vários mililitros de chope tendo sido transformados em urina,
Medeiros e Felício saem cambaleantes pela calçada da rua Barata Ribeiro. Seguem em direção ao apartamento de Medeiros,
que prometeu abrir uma garrafa de whisky
12 anos.
Os
inspetores da Polícia Civil do Rio de Janeiro estão a menos de um quarteirão do
apartamento de Medeiros. O movimento das
ruas é intenso, apesar da hora um pouco adiantada, já passa das 23 horas. É Copacabana!
_
E aí, Medeiros? – os garotos na frente do prédio cumprimentam o policial.
_
Beleza, galera! – responde Medeiros, tentando disfarçar os goles a mais que
acabou de tomar.
O
porteiro, Francisco, também cumprimenta Medeiros e acena para Felício.
_
Boa noite, seu Medeiros.
_
Boa noite, Francisco.
_
Olha, o senhor tem visita – avisa o porteiro.
Medeiros
apenas balança a cabeça, afinal, ele sabe que Tereza viria passar a noite. O policial vira-se e vai de encontro ao
elevador, tendo Felício a sua frente, que toca o botão de chamada.
_
Será que ela preparou alguma surpresa? – pergunta Medeiros.
_
Talvez ela tenha feito galinha ao molho pardo – arrisca Felício.
_
Duvido. Ela detesta sangue.
_
E esse whisky é bom mesmo ou é do Paraguai?
_
Você acha que o seu camarada aqui iria chamá-lo pra beber whisky falsificado?
_
Imagina! Desde quando o inspetor
Medeiros coloca os amigos em fria? – brinca Felício, conseguindo tirar uma
pequena gargalhada do amigo.
O
elevador... Medeiros abre a porta,
Felício entra primeiro e aperta o botão número oito. As brincadeiras dão trégua por alguns
instantes, o silêncio impera por um pequeno momento, apenas o som da correntes
suspendendo o elevador, que finalmente pára.
Medeiros abre a porta e Felício ruma em direção do apartamento 804, o de
Medeiros.
_
Vou te provar que o seu amigo aqui não é nó-cego. Você vai provar o melhor whisky da sua vida – Medeiros
fala enquanto abre a porta para Felício entrar primeiro.
Felício
entra no apartamento, sendo seguido pelo colega de profissão.
_
Amor!? – Medeiros chama por Tereza, mas nenhuma voz responde. O inspetor volta a chamá-la e, novamente,
apenas o silêncio como resposta.
_
Ela deve ter saído, meu irmão – arrisca Felício.
_
É... – Medeiros concorda, enquanto se dirige ao quarto.
Um
grito rompe o silêncio de outrora.
Felício corre em socorro do amigo. Medeiros está de joelhos ao lado do
corpo de Tereza, deitado, esparramado, inerte no velho e gasto chão de
taco. Uma enorme poça de sangue enfeita
o chão, também há respingos na parede encardida, mas que um dia foi alva. E antes mesmo de que qualquer outro som fosse
pronunciado, uma mão toca o ombro direito de Felício, que se vira para receber
o golpe fatal, o mesmo golpe que há poucas horas foi desferido de forma
certeira no lindo e frágil pescoço da doce Tereza. O parceiro de Medeiros leva a mão à garganta
na inútil tentativa de estancar o sangue, que esvai-se de forma fantástica e,
pasmem, fantasmagórica.
Medeiros,
vendo o colega de profissão tombar ao lado do corpo de Tereza, encara o rosto
de Raquel e, de súbito, a reconhece, apesar da peruca loira. Raquel é Graciele, a ruiva secretária do arquiteto
Rodolfo Marques. Ela tenta golpear
Medeiros, que se defende com o braço, recebendo um profundo corte. Raquel, ou Graciele, não desiste e faz nova
investida contra o inspetor, que rola sobre a cama e cai do outro lado. Ele saca a pistola do coldre e desfere todos
os tiros em Raquel, que vai se afastando, afastando até bater na janela, quebra
o vidro e despenca de mais de dez metros de altura, indo enfeitar a calçada da
esquina da rua Figueiredo Magalhães com a rua Barata Ribeiro, justamente um dos
pontos mais movimentados do famoso bairro carioca. E pensar que Raquel, em hebraico, quer dizer
ovelha mansa.
Fatos e suposições
Todos
os veículos de comunicação disputaram palavra a palavra a preferência do
leitor, do ouvinte e do telespectador. O
Brasil inteiro quis saber sobre o caso do Degolador da Cidade Maravilhosa. E o que não faltou foi assunto sobre o caso,
que deu pano pra manga.
Terça-feira, 15 de julho de 2003, 11h40...
Na
delegacia, Rodina e Medeiros dão por encerradas as investigações.
_
Pois é, o Degolador, na verdade, era uma mulher, o que foi comprovado pela
comparação das digitais da assassina com as encontradas nas casas das vítimas.
Seu nome era Graciele Fontes Borges, 23 anos, trabalhava há dois anos para o
arquiteto Rodolfo Simplício Marques, que nada tem a ver com o caso. Ela era natural de Santa Maria, Rio Grande do
Sul, e estava há quase três anos na cidade.
Estudava Administração na Uerj. A
assassina teria entrado no apartamento do arquiteto, provavelmente, com uma
cópia da chave que, também provavelmente, teria feito. O senhor Rodolfo confirmou que certa vez
havia solicitado à sua secretária que providenciasse uma cópia das chaves do
seu apartamento. E, então, tal ocasião
teria sido a chance da assassina ter feito também uma cópia para si. Não se sabe, no entanto, o que a assassina
queria fazer no apartamento do senhor Rodolfo.
Talvez estivesse à procura de alguma coisa. Quem sabe, até mesmo, tentando incriminá-lo
de alguma forma Infelizmente, creio eu,
que tal informação se foi com a morte da nossa assassina. Esqueci de alguma coisa, Rodina? – Medeiros
concluiu seu relatório.
_
Creio que não – respondeu o homem dos olhos azuis.
_
Muito bem. Belo trabalho, rapazes. E, mais uma vez, a polícia lhe agradece,
Rodina – falou, por sua vez, o delegado Alexandrino.
O
caso estava encerrado e foi, prontamente, arquivado. No entanto, há coisas que não podem ser
arquivadas tão facilmente, pois continuam ativas no dia-a-dia. E tais coisas não poderiam mesmo ser
deletadas da mente de Medeiros, que acabara de perder a mulher que amou por
três anos. Também perdera o seu
companheiro de labuta. O inspetor jamais
seria o mesmo homem. Percebendo a
situação, o delegado Alexandrino concedeu alguns dias de descanso ao policial
Medeiros. Também o aconselhou a procurar
o serviço de psicologia da polícia.
Epílogo
Os
dias seguintes foram os piores da vida de Medeiros. Ele passou, se é que isso fosse possível, a
fumar mais e mais. O álcool também foi um amargo refúgio para o policial, que
passou a ir quase que diariamente ao cemitério do Caju, onde estava o corpo de
Tereza. Felício fora enterrado em sua
terra natal, Petrópolis.
Sábado, 16 de agosto de 2003...
Manhã
fria, chuva fina, garoa que nada combina com o Rio de Janeiro, parece querer
lavar a cidade. E lá está o inspetor Eugênio Medeiros postado e prostrado em
frente ao túmulo 67.125, onde há menos de um mês jaz o corpo de Tereza. O policial está pensativo, saudoso dos
primeiros tempos com a amada, saudoso também dos últimos momentos com aquela
mulher que ele não soube compreender, que ele, até mesmo, tentou se esquivar,
talvez por medo, talvez pelo desgaste natural de todo relacionamento.
Medeiros
ajoelha-se, gesto que poucas vezes fez em seus 44 anos de vida. Não chega a ser ateu, tampouco um devoto de
Deus. Definitivamente, religião não é o
seu forte ou, então, o seu fraco. O
ajoelhar-se, portanto, não tem fundo religioso, não é uma busca de conforto do
sobrenatural, mas apenas o rendimento de um homem à insignificância de sua
existência, de toda sua incapacidade diante da força dos acontecimentos. Ele não tem o poder de voltar atrás, ninguém
o possui. E como esse homem quer voltar
atrás! Incapaz, não pode...
Alguém
observa o sofrimento solitário de Eugênio Medeiros. Alguém que, aparentemente, não se deixa
comover. Medeiros, alheio à presença da
figura curiosa, continua a lamentar, silenciosamente, é verdade, a perda da
doce Tereza, da mesma Tereza que não tinha pudor em demonstrar todo prazer que
Medeiros lhe proporcionava, seja no chuveiro, seja debaixo dos lençóis, seja no
tapete ou na pia da cozinha ou do banheiro.
Tereza, definitivamente, era uma mulher fogosa como poucas. Às vezes fingia, claro, como muitas ou, até
mesmo, toda mulher finge, ao menos de vez em quando ou, aos que preferem, de
quando em vez.
O
homem que lamenta a morte da amada apoia a mão esquerda sobre o túmulo,
enquanto a outra coloca flores sob a lápide.
São rosas vermelhas, as preferidas de Tereza, que gostava de se exibir
para Medeiros e, até mesmo, para outros homens com seu vestido rubro, que
torneava ainda mais seu corpo de violão.
Aliás, violão muito bem tocado, apenas para fazer jus à última mulher do
inspetor. E foi justamente num vestido
da mesma cor que surgiu detrás de uma lápide vizinha a figura feminina de
Pamela, que com um único e certeiro golpe corta a garganta de Medeiros,
fazendo-o tombar abraçado ao túmulo da amada.
* * * * *
A garoa,
teimosa, não deu sossego, continua querendo lavar o sangue que não para de
jorrar na Cidade Maravilhosa.
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