quarta-feira, 28 de junho de 2023

Café, o mendigo

 

    A única praça daquela cidade era salpicada por alguns bancos, a maioria quebrada. Nada de bustos de autoridades esquecidas ou de laguinho com chafariz enferrujado. O único monumento, se é que podemos chamar assim, era o velho Tomás, que quase ninguém conhecia pelo nome. Todos o chamavam de Café, pois o dito cujo nunca largava a gasta garrafa térmica. 

    Dependendo dos ânimos daquela gente, Café causava pena, repulsa ou medo. Nunca simpatia, nem mesmo pelos mais antigos, que haviam dividido as brincadeiras nos longínquos tempos de criança. Diziam que Café passara alguns anos na prisão, outros juravam que foi no hospício, tamanha a aparência de maluco.

      Se possuía ou não parentes, ninguém sabia ao certo. Talvez até tivesse um ou outro, mas nenhum fazia alarde de tal vínculo sanguíneo. Café vivia sozinho, sobrevivia às custas de míseras moedas atiradas numa enferrujada lata de goiabada. Graças a essa esmola, todos os dias passava na padaria da esquina. Comprava alguns pães e, quando muito, uma ou duas fatias de mortadela. Enchia o bucho.

     Fazia o café em uma pequena fogueira, que também o esquentava nas noites frias. Batizava o líquido preto com uma branquinha para, talvez, esquecer das agruras de outrora. Esse hábito, aliás, o fazia mais falante e, não raro, era cercado por curiosos, todos desejosos de escutar mais uma história do mendigo.

      Naquela noite, que a meteorologia prometia geada, meia dúzia se acomodou ao redor do Café. Não demorou, o maltrapilho começou a tagarelar sobre um antigo crime ocorrido no vilarejo ao lado. Um sitiante, que teria ficado louco, assassinara toda família a machadadas, poupando apenas o filho mais novo, ainda bebê. A verdade, segundo diziam, é que o tal homem havia simplesmente se esquecido do filho mais novo, que dormia tranquilamente no pequeno cesto ao lado do fogão a lenha. 

      Café gostava de observar os olhos arregalados da sua pequena plateia. Fazia pausas estratégicas, enquanto se servia de mais um gole da mistura na garrafa térmica. Sorria aquele sorriso de raros dentes, todos apodrecidos. Os poucos ouvintes que conseguiam encará-lo ficavam ainda mais assustados. Café parecia adorar essa situação. As pausas se tornavam ainda mais longas. Ele se deliciava com cada expressão de terror das pessoas.

        Logo após ouvirem o desfecho daquele banho de sangue ocorrido há décadas, todos voltaram para o aconchego de seus lares. O pobre Café, diante daquele fio de fogueira, tentava se manter aquecido com mais um gole. O moribundo perdeu os sentidos. Não se sabe se sonhou com o tempo em que ainda dormia em um cesto aquecido pelo calor do fogão a lenha. O certo é que o velho Café não resistiu àquela geada. Ninguém reclamou o corpo, que foi enterrado como indigente.
  • Nota de esclarecimento: O conto "Café, o mendigo" foi publicada pelo Notibras no dia 19/07/2023.
  • https://www.notibras.com/site/dar-um-jeito-na-vida-nem-todo-mundo-quer/
  • O conto "Café, o mendigo" faz parte da "Coletânea  de Contos de Terror 2024", da editora Persona.
       

sábado, 24 de junho de 2023

A fábula da vovó

     

    Minha avó possuía um nome relativamente esdrúxulo: Esther Stella. Além disso, ela adorava criar histórias, e eu, o neto mais apegado, adorava ouvir aquela voz tão doce. Apesar de tanta candura, diziam que ela era chegada a adivinhar o futuro. Hoje tenho quase certeza de que as pessoas estavam certas.

    Pois bem, uma dessas histórias contadas pela minha avó era sobre um antigo reino. E, como todas esses contos de fada, também começava com o tradicional "Era uma vez...". Por isso, deixemos as delongas de lado e vamos direto à tal fábula. E, por favor, imaginem aquela voz que me embalou por tantas e tantas vezes.

    Era uma vez um reino bem distante chamado Brazília. Sim, Brazília com "Z". E, como qualquer reino que se preze, possuía um rei. Todavia, não um rei alto, loiro, olhos azuis e lindo. Na verdade, era o oposto disso tudo, pois era baixinho, gordinho, zarolho e feio de dar dó. Seu nome? Enganeis I. 

    Aficionado desde sempre por circo, Enganeis I acabou se encantando por um velho palhaço chamado Bozo, que era casado com a dissimulada Micaela, com quem possuía duas filhas: as gêmeas Eva e Angélica. Como Enganeis I era rei, quis porque quis fazer uma festança em fevereiro e contratou os serviços do Bozo, que faria palhaçadas para os inúmeros convidados.

    E eis que chegou o grande dia. Lá estava o Bozo, montado em uma motocicleta, passeando pelo enorme picadeiro instalado no gigantesco jardim do palácio rodeado de buritis. A cada manobra de Bozo sobre a tal motocicleta, Enganeis I gargalhava embriagado com as peripécias do motoqueiro, ao mesmo tempo em que devorava as empadinhas estrategicamente postas ao seu lado. 

    Após a festança, Enganeis I e Bozo ficaram cada vez mais íntimos. Tanto é que, já em junho, famoso mês marcado por festas que homenageiam ícones do catolicismo, como Santo Antônio, São João e São Pedro, aquela amizade ainda perdurava. Por isso, o rei resolveu atender o pedido das gêmeas Eva e Angélica, que não eram fãs de santos. Por certo eram mais ligadas àquele dono de um rebanho que quebrava imagens santificadas. Dessa forma, Enganeis I, para agradar as duas meninas, decidiu fazer um baita carnaval, cheio de confetes e serpentinas. Fogueira que é bom, como reza a tradição, nada.

    Acabou o carnaval fora de época, veio julho, agosto, setembro e todos os meses daquele longínquo ano. Depois aconteceu a famosa festa pagã do ano seguinte, até que chegou a Semana Santa. Aliás, nessa época, Enganeis I mandava abrir os portões para seus súditos. 

    A ralé, esfomeada que era, correu no rumo do grande lago repleto de lindas carpas coloridas. Aquele povo todo, no entanto, teve a maior decepção da vida. Os peixes boiavam mortos sobre as águas, que emanavam um cheiro de podridão. Enquanto isso, Bozo, Micaela e as gêmeas fugiam em uma luxuosa carruagem puxada por lindos garanhões brancos.

    Curiosamente, a esposa do palhaço carregava uma sacola contendo 30 moedas de ouro. Quanto ao final, nem todos viveram felizes para sempre.

  • Nota de esclarecimento: O conto "A fábula da minha avó" foi publicada pelo Notibras no dia 24/06/2023.
  • https://www.notibras.com/site/carnaval-fora-de-epoca-engana-e-pode-queimar-quem-pula-datas/

quarta-feira, 14 de junho de 2023

O rega-bofe

     Tudo naquela casa era motivo de festa, seja pelo aniversário de alguém, seja por conta até do nascimento de mais uma ninhada da Bisnaga, a cachorrinha de pernas curtas e corpo roliço que adorava se deitar ao lado da Arlete, a matriarca da família. Durante tais eventos, toda a vizinhança era convidada. Quase ninguém faltava, mesmo porque a comida era farta até mesmo para os mais esfomeados.

      Diante de tamanha comilança, as filas dos banheiros se tornavam um inconveniente, ainda mais para as mulheres, que não tinham como levantar as saias ou abaixar as calças atrás das moitas do enorme jardim. Muito arriscado! Já os homens, quando a necessidade era apenas líquida, qualquer tronco das inúmeras árvores era o suficiente para esconder as vergonhas dos olhares mais curiosos. 

        Aquele rega-bofe era para comemorar a aprovação da Ritinha, a mais nova das netas de Arlete, no concorrido vestibular da UnB. Pois é, a garota, que mal havia completado 18 anos, estava prestes a se mudar para Brasília. Não que a distância fosse muita, pois o Distrito Federal, rodeado de muito Goiás e um tiquinho de Minas Gerais, não ficava longe da sua pequena cidade. 

      A jovem, talvez pela timidez, não parecia tão feliz com o seu feito. Já Agrísio, o pai, era todo orgulho. Era uma coisa de minha filha pra cá, minha filha pra lá, que até a esposa, Santinha, começou a ficar incomodada. Não que também não estivesse contente com a conquista da Ritinha, mas, assim como a filha, era reservada. 

        O rega-bofe já avançava para a metade, quando Agrísio, com os ânimos exaltados pelos inúmeros goles de cerveja e outras bebidas mais quentes, quis fazer o discurso de praxe. Foi prontamente impedido pela esposa, com a anuência da sogra. Até a Arlete sabia que o filho, quando estava tresloucado, precisava ser contido. Dessa forma, tomou-lhe a frente o Pompílio, um agregado da mais alta confiança da casa. 

      Todos os presentes se aproximaram para ouvir a palestra do Pompílio, que até poderia ter sido breve, caso não tivesse percebido o entusiasmo da matriarca. A cada frase dita, Arlete abria aquele sorriso de aprovação. Até a Ritinha, agarrada aos braços da mãe, pareceu gostar de tantos elogios, que nem ela sabia ser merecedora. Agrísio, emburrado no canto, compartilhava o mesmo anseio de grande parte da plateia. Não via a hora daquele falatório terminar. 

        Arlete cumprimentou Pompílio pelas belas palavras. Até ela, que era letrada, desconhecia um ou outro daquele amontoado de vernáculos. Todos aplaudiram o locutor oficial do momento e, rapidamente, retornaram para coisas mais interessantes: a abarrotada mesa de comes e bebes e, em especial, para aquela deliciosa feijoada. 

        Uma semana após aquele evento, o povo da rua ainda comentava a generosidade da velha. Agrísio continuava contrariado por ter sido calado pela própria mãe. Santinha andava chorosa pelos cantos de saudade da filha. Arlete, ao lado do agora quase inseparável Pompílio, parecia satisfeita com mais aquele evento bem-sucedido. Quanto à Bisnaga, a cachorrinha andava mal dos bofes. Talvez tenha comido algo indevido ou, então, aquilo era o prenúncio de uma nova gravidez. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "O rega-bofe" foi publicada pelo Notibras no dia 14/7/2023.
  • https://www.notibras.com/site/ritinha-vai-pra-unb-e-deixa-bisnaga-com-ninhada/

        

quarta-feira, 7 de junho de 2023

Deusa e a bota de cano longo

   Aquela mulher, desde que havia percebido que atraía todos os olhares, não teve dúvida em afirmar diante do amplo espelho do seu quarto: "Sou uma deusa!"  O espelho, por sua vez, manteve-se mudo, mas poderia muito bem concordar, se tivesse voz, como aquele outro de certa história contada tantas e tantas vezes por aí.     

   Do alto de tamanha formosura, Deusarina, nome de batismo da moça, desfilava charme por onde passava. Os rapazes de Madureira a Cascadura disputavam, quase aos tapas, a atenção daquela belezura. Todavia, nenhum teve sucesso, a não ser o Afonso, um rapagão, alto, viril, pele bronzeada. Mas nada além de um ou dois beijos sorrateiros debaixo de uma mangueira, que insistia em crescer justamente no meio da calçada, toda estufada por conta das raízes que buscavam outros ares.

    O tempo correu, todos se esqueceram do verdadeiro nome da mulher, que passou a ser conhecida por algo mais condizente com toda aquela pulcritude: Deusa! E foi justamente assim que foi chamada por Oleúde, um herdeiro da Zona Sul. 

    _ Não precisa nem me falar qual é a sua graça. Só pode ser Deusa!

   A princípio, Deusa não entendeu o galanteio, imaginando que o rapaz era um adivinho. Talvez por isso, tenha se enamorado por ele. Não era do tipo interesseira, mas acabou se acostumando com os mimos que recebeu nos meses seguintes. Casaram-se, a despeito das diferenças socioeconômicas, que eram dissipadas sob os lençóis de 600 fios. 

    A lua de mel foi em Londres. E lá foram os pombinhos para as terras da Elizabeth, que ainda era viva, apesar de velha há tantas décadas. Oleúde, que já conhecia de cor e salteado cada rua da capital inglesa, fazia questão de apresentar os famosos monumentos para a amada. Esta, por sua vez, apesar de jamais ter passado da lição "The book is on the table", queria porque queria conversar com todo mundo. 

    _ Oleúde, meu amor, sei me comunicar com qualquer um. Já trabalhei no Mercadão de Madureira.

    O rapaz não se atrevia a discordar da amada, mesmo porque não poderia viver sem a luxúria que ela lhe proporcionava. Na verdade, talvez ele concordasse com Deusa, já que até naquelas terras tão distantes, onde os habitantes são conhecidos pela frieza com estranhos, os olhares de encanto eram constantes para aquela mulher deslumbrante. 

    E foi durante esses passeios que a Deusa ficou apaixonada por uma bota de cano altíssimo exposta na vitrine de uma luxuosa loja. Puxou o marido pelo braço, entrou no estabelecimento. Logo foi atendida por um vendedor. Ela começou a tagarelar e a gesticular para o tal homem. Este, no entanto, pareceu não entender, tamanha a sua cara de espanto. Oleúde tentou intervir, mas foi impedido pela esposa. Isso não foi empecilho para Deusa, que continuou a gesticular e a falar, até que o vendedor, cansado de tamanha loucura, resolveu sair de perto.

   Nisso, um homem, que também estava ali para comprar um calçado, presenciou toda aquela cena. Era um mineiro de Visconde do Rio Branco, que há tempos morava em Londres. Discreto como todo oriundo das Minas Gerais, aproximou-se do vendedor e, então, lhe explicou o que a tal mulher queria. 

    Nem Deusa nem Oleúde perceberam o breve interlúdio entre os dois homens. Tanto é que, quando o vendedor surgiu com a bota que a mulher desejava, ela, com um sorriso maior do que a própria cara, como se tivesse ganho sozinha na loteria, virou-se para o amado. 

    _ Não falei que ele tinha entendido?

  • Nota de esclarecimento: O conto "Deusa e a bota de cano longo" foi publicada pelo Notibras no dia 27/6/2023. Por uma solicitação da redação do jornal, foi feita pequena alteração no texto para que a história se passasse no Distrito Federal.
  • https://www.notibras.com/site/the-book-is-on-the-table-and-the-boot-is-underneath/
  • Fui agraciado pela Academia Virtual de Autores Literários do Brasil com o certificado de cronista do mês de junho/2023 pelo conto "Deusa e a bota de cano longo".