- Nota de esclarecimento: A crônica "A ilha perdida" foi publicada pelo Notibras no dia 05/07/2023.
- https://www.notibras.com/site/namorico-e-enjoo-marcam-dias-de-ferias-de-garibaldo/?fbclid=IwAR3OVnNOP_XoSh3gS946KI-SgZMUxeI1QuI1Jm7HvU3_znJegWxh2m6pRSc
Pois bem, lá estávamos o Marcio e eu no cachorródromo do Tesourinha, nosso ponto de encontro quase sagrado. O Elias, que de vez em quando some por uma nevasca ou outra, também estava ali com aquelas pernas mais compridas até que toda a sua altura. Nossos cães, talvez alheios àquilo tudo, corriam de um lado para outro como se fossem cachorros. Vai entender uma coisa dessas.
Mas voltando à história, o Marcio se sentou numa grande pedra, enquanto o Elias e eu o observávamos preparando um cigarrinho de palha, costume de longa data. Aquilo era a deixa, pois sabíamos que ele tinha mais um causo para contar. O Elias, que é muito ansioso, ficou zanzando de um lado para o outro, enquanto fiquei num canto só observando o contador de histórias confeccionando aquele artefato fumegante.
Obviamente que também queria que o Marcio desembuchasse logo, mas fiquei na minha. É que o Marcio, talvez por sua profissão de músico, goste de instigar a plateia. Coisas de artistas, deve ser. Seja como for, a ansiedade do Elias estava num tanto, que eu não via a hora dele pegar no pescoço do Marcio e o erguer a dois metros do chão e esbravejar: "Desembucha logo, tchê!"
O Elias, no entanto, apesar de toda aquela loucura, é de uma gentileza sem tamanho. Sorte do Marcio, que nesse dia estava mais enrolado que papel higiênico. Para evitar qualquer confusão, dei uma cutucada de leve no prevaricador: "Qualé, mermão! Vai ficar a vida inteira aí enrolando esse fumo?"
O Marcio me deu aquela encarada enviesada, se levantou como se fosse ir embora. Mas, sorte nossa, o causo daquele dia era sobre o Alvino, o mais gaúcho dos gaúchos. E, todos sabemos, o Marcio adora falar sobre ele.
Depois do imbróglio, eis que o meu amigo começa a falar sobre o dia em que o Alvino foi passar uma temporada com a filha, que havia se casado com um catarina. Pois é, um catarina! Até eu, que sou forasteiro por estas bandas, sei que existe uma rivalidade entre gaúchos e catarinenses. Seria algo como vascaínos e flamenguistas ou, para quem é de São Paulo, corintianos e palmeirenses. Uma tremenda bobagem!
Pois é, mas deixemos essas intrigas de lado. Ou não! O fato é que o Alvino saiu da sua estância enorme e foi passar a invernada no sítio da filha e do genro. Apesar da churrascada caprichada e do chimarrão até razoável, o Alvino andava estressado.
O genro, muito atencioso, foi ter com o Alvino um dedo de prosa. O rapaz queria ficar bem com o sogro e, logo pela manhã, selou dois cavalos crioulos dos bons. Ele convidou o Alvino para uma cavalgada pela propriedade de 10 hectares. Pra quê? A emenda saiu pior que o soneto. Rabugento até a última instância, Alvino desabafou: "Me sinto confinado como se estivesse em Porto Alegre. Aqui não se pode sequer cavalgar por um dia inteiro na mesma direção. Vê se pode?"
Madrugada fria e chuvosa. Eram apenas eu e o motorista do aplicativo singrando aquelas ruas, indo em direção à capela mortuária, bem ao lado do cemitério, onde velavam o corpo de um amigo de longa data. Compromissos profissionais inadiáveis levariam-me a viajar logo de manhã, mas por poucas horas queria estar perto, não só daquele que se fora, mas de sua família e de outros amigos para os quais a perda recente deixava uma lacuna definitiva. O rádio do carro, sintonizado numa estação de notícias, falava sobre coisas políticas que, naquele momento, pareciam absolutamente sem importância, embora houvessem ocupado gravemente as atenções de meu amigo nos dias derradeiros de sua existência. A situação do país o consumia. O cargo que ocupava exigia-lhe esforços violentos para controlar certas situações, e isso o afastava do convívio com os seus. Num encontro ao acaso, no aeroporto, ele se queixara comigo. Queria dedicar mais tempo à esposa e às filhas. Permitir-se atividades prazerosas, entregar-se ao descanso, direito de todo aquele que tão fielmente cumpria suas atividades profissionais, mas tudo colocava antes de si mesmo e de suas necessidades. Somente o trabalho, somente a causa pública, somente os interesses do país. Assim, distanciava-se da família, dos amigos e, com os poucos que ainda encontrava, número no qual eu estava incluído, confessava sua desesperança com o Brasil.
Eu vinha no carro trocando mensagens com outro amigo, já presente ao velório, e esse me informava que, na capela mortuária, apenas um pequeno grupo de familiares, incluindo a viúva e a filha mais velha, bem como seis outros amigos comuns, aguardavam o dia raiar e a hora do sepultamento, marcado para as 9 horas da manhã. A longa vigília da madrugada impunha-se para aguardar a viagem de um irmão do falecido o qual, ocupando posto militar em distante estado brasileiro, só poderia chegar pela manhã.
A descrição propiciava-me imaginar o quadro que, muito brevemente, estaria diante de mim. Um velório com poucas pessoas é sempre pior. Mais triste, mais melancólico. Parece que esse evento tão triste põe à prova os que, verdadeiramente, ligam-se ao morto ou aos mais próximos sobreviventes. O velório em toda sua duração é uma via-sacra, cujo ápice se desenrola no drama do sepultamento ao qual costumam acorrer muito mais pessoas, pois trata-se de um evento bem mais visível. Poucos conseguem acompanhar, no interior da capela mortuária, a longa noite em claro onde, cercados pelo cheiro tão presente de cravos e rosas, os círios vão se desfazendo na posição de sentinelas em volta de um ataúde de madeira escura, dentro do qual o outrora vivo vai se distanciando cada vez mais do mundo dos vivos e preparando-se para o sono em que irá submergir e permanecer profundamente até... Quem sabe?
Durante o caminho, pensava na existência que se findava. Um homem bom, que conheci ainda na flor da juventude quando, contemporâneos na vida, nós traçávamos planos mirabolantes sobre o futuro, embora, em meu íntimo, as aspirações fossem bem mais modestas. Já ele alcançara bem mais do que havia sonhado. Íamos chegando à maturidade e, confesso, sentia inveja das realizações de meu amigo. Agora, diante do duro quadro da morte, a inveja virava um arrependimento dolorido. Sentia-me o mais vil dos homens, e nada me consolava.
Mesmo em posição mais modesta na vida, não podia me queixar. Era reconhecido em meu meio profissional, a toda hora solicitado nas filiais da empresa em que trabalhava para instruir e palestrar.
Com meu amigo, no entanto, era diferente. Sua autoridade, desenvolvida nos cargos de expressão que ocupara no governo, impunha-se naturalmente. Repórteres e analistas políticos vinham ter com ele para ficarem a par de assuntos importantes, seu nome saía nos jornais e ele aparecia na TV. Mas, mesmo revestido de sua importância, mesmo que sobre seus ombros desabassem, com a maturidade, o peso de tanto poder e responsabilidade, seus olhos, os mesmos vistos por mim dias antes de sua morte, ainda brilhantes, ainda vívidos, ainda inquietos, não deixavam de ser os daquele menino que sonhava, que vivia de forma leve, até mesmo um pouco irresponsável, e conservavam o mesmo frescor do amor pela vida.
Nunca mais sua amizade, sua presença forte, seus sábios conselhos. Meu coração estava apertado. A inveja que sentira consumia-me por dentro, e não adiantava querer seu perdão. A morte o calara, e toda a compreensão que pudesse ter por mim tornava-se, agora, impossível.
Já não chovia quando o carro do aplicativo parou a 5 metros de distância da entrada da capela mortuária, em volta da qual percebi um carro descaracterizado da polícia e outro que devia pertencer à reportagem de algum jornal. Imaginei que as autoridades tivessem se preocupado em garantir a segurança daquela longa vigília, protegendo os presentes dos perigos noturnos da cidade. Munido de uma mala que havia preparado para minha viagem de dali a algumas horas, fui até o interior do edifício e, após os cumprimentos de praxe, das palavras normalmente pronunciadas nesses eventos, debrucei-me, sobre uma das janelas do local, que dava para o grande cemitério e acendi um cigarro, contrariando a advertência contida numa plaqueta na parede.
A madrugada começava a se findar, e o azul profundo do céu, confundido por pesadas nuvens, era desafiado pelos primeiros traços do dia.
Observando aqueles túmulos, uma sucessão quase infindável daqueles monumentos à morte, memoriais de pessoas idas, várias das quais experimentaram o drama completo da vida muito antes que eu nascesse, fiquei refletindo sobre todos os sentimentos experimentados desde que soubera da morte de meu grande amigo. Ela servia-me de advertência. A vida não é nada sem o proveito que possamos ter nela. As verdadeiras conquistas são as do coração. O amor, as amizades, as experiências, o bem que se fez em vida. E, no entanto, colocamos acima disso tantos objetivos. Por vezes, parecermos querer controlar o tempo como se a areia da ampulheta estivesse escorregando por nossas mãos. Passamos longos anos numa verdadeira batalha por conquistas que supostamente seriam a coroação de nossas vidas, e no final corremos o risco de, amargamente, descobrir que a própria vida foi perdida nessa batalha, e mesmo o objetivo atingido pode não representar mais nada se colocado em perspectiva do que tem verdadeira importância.
Meu amigo morto e eu, depois dos devaneios da juventude, fomos desigualados pela vida. Eu, agora, estava em condição superior, porque vivia. Mas, um dia, nos igualaríamos na morte. E essa igualdade seria perpétua... Definitiva.
Ele seria uma memória, mas eu estava ali: senhor de minhas iniciativas dali por diante, consciente disso como nunca.
Foi na chegada ao velório que me senti absolvido por completo da minha inveja e aliviado do remorso por ela provocado. É porque, no momento em que o carro do aplicativo parou, a suave voz que orienta a navegação pelo mapa lembrou-me de algo sobre que venho refletindo até hoje. A frase, dita em frente à capela mortuária, de onde já se divisavam as coroas de flores, os seres enlutados e, pouco além, o muro gradeado do cemitério deixando entrever as quadras mais nobres com seus imponentes jazigos, foi simples. Mas provocativa.
Enquanto coloco a água na chaleira, sinto os primeiros raios do Sol, ao mesmo tempo em que a Alaíde me sopra "Aurorear". Meu corpo rijo tenta um gingar que não tenho, mas não estou nem aí. Imagino a Alaíde rindo aquele sorriso lindo e se divertindo com a minha falta de jeito. Ela me entende, certa de que sabe o que meus calos dizem sobre mim.
Se eu acordo tristonho por conta de pontapés da vida, eis que essa voz graciosa me ensina que o céu tem pecado, o inferno é divertido. A Alaíde, do alto da sua sapiência, me diz para eu ser quem sou. Pois é, não posso desprezar tamanho conselho, ainda mais porque as primeiras bolhas anunciam que é hora de tirar a chaleira do fogo.
Despejo o líquido da vida sobre o pó que preenche o coador de pano. O cheiro toma conta da cozinha, enquanto imagino a minha cantora piscando ao lado. Parece que ela também quer provar a iguaria.
Não tenho dúvida e, então, coloco o café em duas xícaras, enquanto a música se espalha por todo o apartamento. Eu me sento à mesa, certo de que a Alaíde está ali na minha frente, também sentada. Toda graciosa, ela toca a asa da xícara e, em seguida, sorve um tiquinho. Eu repito o seu gesto, mas algo me desperta desse sonho. Minha esposa, a Dona Irene, está logo atrás de mim: "Hum, adoro quando você prepara esse café delicioso pra mim!"
De tão topetudo, o rapaz parecia ter saído do túnel do tempo direto dos áureos anos da ultrapassada brilhantina. As costeletas, tão negras quanto seus cabelos, tentavam, sem sucesso, emoldurar aquele rosto pouco chamativo, caso não fossem as crateras na pele, lembranças das espinhas que outrora tanto o incomodaram. Sem tempo para pensar em bobagens, o rapaz, então recém saído da faculdade, se metia no meio dos códigos legais para tentar livrar algum de seus parcos clientes de uma pena mais dura.
Apesar da pouca experiência, não demorou para entender todo aquele emaranhado jogo de palavras e ideias que cercam a advocacia. Percebeu que, no caso de júri, precisava entrar na cabeça daqueles sete indivíduos alheios aos trâmites da lei. Era mais um exercício da ética e, especialmente, da moral. E Genival sabia como ninguém instigar os profundos sentimentos de costumes, por mais tolos que fossem, naqueles seres que ignoram a legislação, mas são bombardeados, desde a mais tenra idade, por frases de conduta, a maioria religiosa.
Quando precisava convencer o juiz, fazia uma aprofundada pesquisa sobre a vida do magistrado. Obviamente que estudava com afinco o caso do seu cliente, mas não se furtava em buscar informações acerca de quem iria dar a sentença. Aliás, vale até uma nota especial sobre o caso do furto de uma vaca premiada, que tinha até nome. Pois bem, a dita cuja se chamava Clarineta, uma bela duma holandesa quase toda branca, se não fossem por umas manchas pretas aqui e ali.
O cliente do Genival, João Maria, havia confessado que tinha sido ele que afanara a tal vaca, pois precisava fazer um churrasco para o casório da única filha. Réu confesso apenas ao pé do ouvido do advogado, pois, de resto, foi muito bem orientado a dizer que era inocente, mesmo que debaixo de saraivadas. E, de tanto ouvir que era inocente, até começou a acreditar naquela ladainha sem tamanho.
Jurava de pés juntos que a carne servida aos convidados era de uma outra vaca, que, por conta dessas coincidências inimagináveis da vida, nascera com as mesmas cores e marcações da finada Clarineta. Finada ou desaparecida? Sim, isso mesmo! Essa foi a estratégia que o Genival tramou e, com sucesso, conseguiu colocar não apenas uma pulga, mas um monte desses insetos, tão bem treinados desde tenra idade para sugar o sangue alheio, atrás das orelhas dos sete jurados.
Para completar todo aquele teatro, eis que o Genival, com a cara mais lavada do mundo, ainda propôs um mutirão para encontrar a Clarineta. É óbvio que a vaca nunca foi encontrada. Nem mesmo os ossos, que foram muito bem enterrados em local incerto. É verdade que um foi parar na vasilha do velho Lobo, o enorme vira-lata do João Maria. Mas ninguém se deu ao trabalho de procurar pela finada justamente ali.
Genival ganhou fama na região. Seu nome chegou à capital como o mais notório conhecedor do direito. Até ilustres magistrados iam ter com ele. Reverências das mais elevadas, sempre carregadas de mimos, seja uma bela garrafa de vinho dos mais caros, seja um lote de frangas poedeiras. Ficou rico graças aos inúmeros casos vitoriosos.
Aos 36, decidiu que já era hora de se casar. Sem pretendentes à vista, resolveu começar a investir na vida social. Algumas festas e confraternizações depois, conheceu Joana e desejou namorá-la. Ciente de que quem escolhe é a mulher, usou toda sua habilidade matemática e, então, pôs o plano em prática. O cálculo pareceu dar resultado, já que a moça logo começou a notá-lo.
O namoro durou pouco mais de um ano e, de repente, se casaram. Foi uma festança que atraiu toda aquela gente da região, além de outros tantos convidados vindos de lugares diversos. Até o João Maria tentou se comprometer com a carne para o churrasco, mas foi desencorajado pelo advogado, que não pretendia defender novamente seu cliente usando a mesma artimanha.
Os filhos chegaram em dupla nove meses após. Cresceram enquanto o pai prosseguia sua saga de ferrenho defensor dos interesses da sua cada vez maior clientela. Já sem tempo para contar tanto dinheiro, Genival sentiu que era hora de se aposentar. E foi o que fez antes de completar 60 anos. É verdade que, de vez em quando, ainda prestava consultoria a alguém mais importante, que o compensava de maneira generosa.
Era um domingo sossegado, desses que dá para passar o dia inteiro deitado numa rede na varanda, sem se preocupar com o tempo, mas apenas manter os ouvidos abertos para deixar o som dos cantos dos passarinhos entrar. Lá estava o Genival, quando, de repente, ele toma uma decisão radical. Olha para os lindos olhos da esposa e diz que vai voltar a estudar. Joana apenas sorriu, pois achava que era mais uma brincadeira do marido. Que nada!
Um mês após, Genival estava sentado numa dura cadeira de madeira, da mesma forma que seus colegas de turma, todos na flor da idade. Com o pai falecido há alguns anos e sem muito tempo para vacilar, o advogado finalmente realizava seu antigo sonho, a matemática.