sexta-feira, 28 de abril de 2023

A ilha perdida

 

    Garibaldo viveu a infância nos longínquos anos 1970 e, como a garotada da época, viajou através das páginas do livro "A ilha perdida", de Maria José Dupré. Da história, pouco se lembrava, a não ser que, como o próprio título indica, ambientava-se numa ilha. Mesmo assim, aquilo ficou no seu subconsciente, até que, por um desses acasos da vida, o agora homem se viu isolado em uma pequena faixa de terra rodeada de mar. 
        
      As circunstâncias que o levaram até aquele local não são relevantes. Mesmo assim, vale a pena contá-las. Pois bem, lá estava o Garibaldo com seus pouco mais de 50 anos, curtindo suas férias mais que merecidas. É que o gajo, para quem não sabe, era funcionário de um banco particular e, por conta disso, trabalhava muito além do que lhe pagavam. 

       Ele havia divido o pagamento da viagem em não sei quantas parcelas, mas isso não importava. Ele queria porque queria se ver livre, nem que por uma mísera semana, daquele turbilhão de tarefas sem fim. E foi o que fez. Viajou pro litoral baiano, mais precisamente para Belmonte. 

        Solteiro depois de três casamentos fracassados, Garibaldo acabou se engraçando por uma nativa logo nos primeiros dias. Enamoraram-se e, após juras de amor eterno, resolveram fazer um passeio de barco. 

        O dia estava propício, nada de nuvens no céu. Sorridentes, foram de mãos dadas até o cais, onde contrataram os serviços de um pescador, que resolveu dar folga para os peixes naquela semana. Não tardou, lá estavam os três naquele mar esplendidamente azul. 

        Tudo estava lindo, até que Garibaldo, sentindo-se enjoado, não conseguiu conter a vontade de vomitar. Começo de namoro, não era de bom tom fazê-lo na frente da amada. Por isso, pediu licença e foi resolver seu pequeno problema na popa do barco.

          Vomitou os bofes e mais um tanto. Aliviado, limpou a gosma com as costas da mão. Dobrou o corpo para pegar um pouco da água do mar para terminar o serviço quando, de repente, perdeu o equilíbrio e lá foi o Garibaldo para dentro daquela imensidão azul. 

        Quando a amada e o pescador se deram conta da falta do Garibaldo, este já havia sido carregado pela correnteza. Por sorte, os tubarões deveriam estar de dieta naquele dia, pois o homem foi parar na tal ilha, onde agora ele se encontrava. Sozinho, é verdade, mas relativamente bem, graças aos ensinamentos que recebeu nos tempos de escoteiro.

        Passou a primeira noite ao pé de uma fogueira, que fez as vezes de aquecê-lo, mesmo que de modo não tão agradável como se estivesse nos braços da amada. Acabou adormecendo sem se dar conta, até que, logo na manhã seguinte, foi despertado pelo som das ondas da praia logo ali. Levou alguns míseros segundos para se dar conta do que havia lhe acontecido. 

        Prático como ele só, logo tratou de arrumar alguma coisa para encher o bucho. Depois de alguns crustáceos, se fez por satisfeito. E foi assim por quase três dias completos, quando, finalmente, foi resgatado pelo corpo de bombeiros, que já o procurava desde seu sumiço.

        O homem voltou para casa dois dias após. As férias haviam acabado. Teve que encarar a rotina, a mesma rotina de clientes atrás de clientes. Diante de um senhor que lhe enchia com perguntas sobre o melhor tipo de aplicação da parca aposentadoria, eis que Garibaldo, alheio a tudo aquilo, só pensava naquela ilha perdida. 
  • Nota de esclarecimento: A crônica "A ilha perdida" foi publicada pelo Notibras no dia 05/07/2023.
  • https://www.notibras.com/site/namorico-e-enjoo-marcam-dias-de-ferias-de-garibaldo/?fbclid=IwAR3OVnNOP_XoSh3gS946KI-SgZMUxeI1QuI1Jm7HvU3_znJegWxh2m6pRSc

        

segunda-feira, 24 de abril de 2023

Alvino, o mais gaúcho dos gaúchos


    Não posso dizer que conheço o Alvino, que, segundo meu grande amigo Marcio Petracco, é mais gaúcho até que a própria bombacha bebendo chimarrão. No entanto, de tantas histórias que o Marcio me contou sobre esse ser único das pradarias do Rio Grande do Sul, posso afirmar, sem pestanejar, que me surpreendo a cada tirada.

    Pois bem, lá estávamos o Marcio e eu no cachorródromo do Tesourinha, nosso ponto de encontro quase sagrado. O Elias, que de vez em quando some por uma nevasca ou outra, também estava ali com aquelas pernas mais compridas até que toda a sua altura.  Nossos cães, talvez alheios àquilo tudo, corriam de um lado para outro como se fossem cachorros. Vai entender uma coisa dessas.

    Mas voltando à história, o Marcio se sentou numa grande pedra, enquanto o Elias e eu o observávamos preparando um cigarrinho de palha, costume de longa data. Aquilo era a deixa, pois sabíamos que ele tinha mais um causo para contar. O Elias, que é muito ansioso, ficou zanzando de um lado para o outro, enquanto fiquei num canto só observando o contador de histórias confeccionando aquele artefato fumegante. 

    Obviamente que também queria que o Marcio desembuchasse logo, mas fiquei na minha. É que o Marcio, talvez por sua profissão de músico, goste de instigar a plateia. Coisas de artistas, deve ser. Seja como for, a ansiedade do Elias estava num tanto, que  eu não via a hora dele pegar no pescoço do Marcio e o erguer a dois metros do chão e esbravejar: "Desembucha logo, tchê!"

      O Elias, no entanto, apesar de toda aquela loucura, é de uma gentileza sem tamanho. Sorte do Marcio, que nesse dia estava mais enrolado que papel higiênico. Para evitar qualquer confusão, dei uma cutucada de leve no prevaricador: "Qualé, mermão! Vai ficar a vida inteira aí enrolando esse fumo?"

        O Marcio me deu aquela encarada enviesada, se levantou como se fosse ir embora. Mas, sorte nossa, o causo daquele dia era sobre o Alvino, o mais gaúcho dos gaúchos. E, todos sabemos, o Marcio adora falar sobre ele. 

        Depois do imbróglio, eis que o meu amigo começa a falar sobre o dia em que o Alvino foi passar uma temporada com a filha, que havia se casado com um catarina. Pois é, um catarina! Até eu, que sou forasteiro por estas bandas, sei que existe uma rivalidade entre gaúchos e catarinenses. Seria algo como vascaínos e flamenguistas ou, para quem é de São Paulo, corintianos e palmeirenses. Uma tremenda bobagem!

        Pois é, mas deixemos essas intrigas de lado. Ou não! O fato é que o Alvino saiu da sua estância enorme e foi passar a invernada no sítio da filha e do genro. Apesar da churrascada caprichada e do chimarrão até razoável, o Alvino andava estressado. 

        O genro, muito atencioso, foi ter com o Alvino um dedo de prosa. O rapaz queria ficar bem com o sogro e, logo pela manhã, selou dois cavalos crioulos dos bons. Ele convidou o Alvino para uma cavalgada pela propriedade de 10 hectares. Pra quê? A emenda saiu pior que o soneto. Rabugento até a última instância, Alvino desabafou: "Me sinto confinado como se estivesse em Porto Alegre. Aqui não se pode sequer cavalgar por um dia inteiro na mesma direção. Vê se pode?"

  • Nota de esclarecimento: A crônica "Alvino, o mais gaúcho dos gaúchos" foi publicada pelo Notibras no dia 24/04/2023.
  • https://www.notibras.com/site/alvino-o-gaucho-mor-devia-passar-por-aqui/


sexta-feira, 21 de abril de 2023

O corredor

 

    As crianças adoravam as festas de fim de ano na casa da avó. Irmãos e primos, todos entre seis e doze anos, se divertiam adoidado. Enquanto isso, os adultos se fingiam mais vitoriosos do que eram. Na verdade, tirando dois ou três, o restante passara mais um ano de muito sufoco para pagar as contas. Algumas, aliás, continuavam pendentes, sem que isso fosse empecilho para que a pompa continuasse verberando entre a parentada. 

    Cora, a velha matriarca, estava prestes a completar 92 anos e, apesar da avançada idade, continuava recebendo filhos, noras, genros, netos, bisneto e agregados com o mesmo sorriso daquela dentadura de dentes perfeitamente desalinhados. Isso, aliás, gerava dúvida em alguns, pois não entendiam como é que uma mulher tão velha ainda mantinha todos os dentes na boca. Mal sabiam que todos eles repousavam noite adentro em um copo cheio d'água na cabeceira ao lado da cama daquela senhora. 

    A casa, apesar de antiga, era aconchegante. Seis quartos, com uma única suíte, justamente a que Cora repousava. Todos os aposentos eram dispostos em um longo corredor mal iluminado. Quando a casa estava cheia, não eram raros os sons de passos indo em direção ao banheiro, que ficava no final do corredor. Isso, aliás, era motivo para inúmeras histórias que as crianças mais velhas contavam para as menores, enquanto a molecada se espremia num único quarto, justamente o que ficava na ponta oposta ao banheiro. 

    Naquela noite, já prestes a virar madrugada, Bernardo reuniu os miúdos ao seu redor. Ele mantinha uma lanterna acesa sobre seu rosto, a única luz naquele quarto escuro. Os mais novos se espremiam na vã esperança de se manterem seguros, certos de que estavam prestes a mais uma história de terror contada pelo parente. Até o pequenino Carlinhos, que morria de medo de tudo, não conseguia evitar manter os ouvidos bem abertos para captar cada palavra do mais velho. 

    Bernardo, que não era tão corajoso como os outros imaginavam, gostava de provocar arrepios na sua pequena plateia. Mal iniciava a história, fazia pausas estratégicas, ao mesmo tempo em que iluminava os caninos pontiagudos, o que lhe conferia, até certo ponto, um ar sombrio. Todos ficavam paralisados de medo, talvez até o próprio narrador. 

    A história da vez era sobre uma velha muito mais velha que a matriarca da família. Sim, isso mesmo! Muito mais velha! De tão velha, contava com quase 180 anos. Para ser mais exato, 179. Seu nome? Bem, ninguém sabia ao certo, mas todos a chamavam de Zuza. 

    Ela teria nascido ali naquela casa, justamente naquele quarto, bem antes da chegada da família real ao Brasil. Nascida escrava, morreu livre, mas ficou presa àquele lugar pelo resto da vida e, dizem, continuava por ali arrastando seus pés calejados numa sandália de pano puído. Por isso, era possível, ainda hoje, ouvir os passos lentos da velha Zuza vindos do enorme corredor em frente.

    Enquanto Bernardo falava, eis que todos sentem um calafrio percorrendo a espinha. Passos no corredor. Arrastando-se. Depois de um breve momento, silêncio total. Em seguida, a criançada ouve alguém se arrastando de volta, que, por um instante, parou diante da porta do quarto deles. 

    Todos se espremeram ainda mais, como se fosse possível que cada um conseguisse sentir o pulsar do medo percorrendo aqueles pequenos corpos.  Os passos prosseguem até a outra ponta do corredor. Os ouvidos atentos da meninada escutam o ranger de uma porta se fechando. Parece ser o fim daquilo. Parece.

    Ninguém quer mais escutar a história do Bernardo. Até este se sente dissuadido, não quer continuá-la. Espremidos ainda mais, aqueles corpinhos miúdos adormecem um a um, até que todos se entregam aos próprios sonhos.

       A madrugada vai dando lugar ao dia. Um facho de luz vindo lá de fora começa a despertar aquelas crianças. A primeira a acordar foi a Marina, uma das mais crescidinhas. Mal abriu os olhos, ela percebeu que seu irmão mais novo, o Carlinhos, não estava ali. Teria sido carregado pela velha Zuzu?

    Assustada, ela começou a procurar pelo menino em todos os lugares. Debaixo das camas, atrás do armário. Nada! Carlinhos havia desaparecido. Como já era manhã, todos tomaram coragem para procurar pelo menino fora do quarto.

    Com os olhos cheios de lágrimas, Marina tomou a frente, enquanto os outros a seguiram. Olhou o corredor de um lado a outro. Nenhum sinal do Carlinhos. Ela observou que a porta do banheiro estava entreaberta. Tomou coragem e, a passos lentos e cautelosos, foi até lá. 

    A menina, diante daquela porta, deu um leve toque, o suficiente para fazê-la ranger até se abrir por completo. Marina não conseguiu evitar um grito, que, de tão agudo, despertou todos os adultos da casa. Ela estava diante do seu pequeno irmão. 

    O cheiro horrível vindo do banheiro, no entanto, foi um alívio para Marina. Ela entendeu, naquele exato momento, que Carlinhos teve uma dor de barriga durante a madrugada e acabou adormecendo sentado na privada. 
  • O conto "O corredor" foi publicado pelo Notibras no dia 15/6/2023. Por solicitação do editor do jornal, foi feita pequena alteração no texto para que a história se passasse no Distrito Federal.
  • https://www.notibras.com/site/terror-entre-irmaos-resgata-a-velha-planaltina/

terça-feira, 18 de abril de 2023

ENCONTRO COM O INDESEJADO (Texto de Daniel Marchi de Oliveira)

Madrugada fria e chuvosa. Eram apenas eu e o motorista do aplicativo singrando aquelas ruas, indo em direção à capela mortuária, bem ao lado do cemitério, onde velavam o corpo de um amigo de longa data. Compromissos profissionais inadiáveis levariam-me a viajar logo de manhã, mas por poucas horas queria estar perto, não só daquele que se fora, mas de sua família e de outros amigos para os quais a perda recente deixava uma lacuna definitiva. O rádio do carro, sintonizado numa estação de notícias, falava sobre coisas políticas que, naquele momento, pareciam absolutamente sem importância, embora houvessem ocupado gravemente as atenções de meu amigo nos dias derradeiros de sua existência. A situação do país o consumia. O cargo que ocupava exigia-lhe esforços violentos para controlar certas situações, e isso o afastava do convívio com os seus. Num encontro ao acaso, no aeroporto, ele se queixara comigo. Queria dedicar mais tempo à esposa e às filhas. Permitir-se atividades prazerosas, entregar-se ao descanso, direito de todo aquele que tão fielmente cumpria suas atividades profissionais, mas tudo colocava antes de si mesmo e de suas necessidades. Somente o trabalho, somente a causa pública, somente os interesses do país. Assim, distanciava-se da família, dos amigos e, com os poucos que ainda encontrava, número no qual eu estava incluído, confessava sua desesperança com o Brasil.

Eu vinha no carro trocando mensagens com outro amigo, já presente ao velório, e esse me informava que, na capela mortuária, apenas um pequeno grupo de familiares, incluindo a viúva e a filha mais velha, bem como seis outros amigos comuns, aguardavam o dia raiar e a hora do sepultamento, marcado para as 9 horas da manhã. A longa vigília da madrugada impunha-se para aguardar a viagem de um irmão do falecido o qual, ocupando posto militar em distante estado brasileiro, só poderia chegar pela manhã.

A descrição propiciava-me imaginar o quadro que, muito brevemente, estaria diante de mim. Um velório com poucas pessoas é sempre pior. Mais triste, mais melancólico. Parece que esse evento tão triste põe à prova os que, verdadeiramente, ligam-se ao morto ou aos mais próximos sobreviventes. O velório em toda sua duração é uma via-sacra, cujo ápice se desenrola no drama do sepultamento ao qual costumam acorrer muito mais pessoas, pois trata-se de um evento bem mais visível. Poucos conseguem acompanhar, no interior da capela mortuária, a longa noite em claro onde, cercados pelo cheiro tão presente de cravos e rosas, os círios vão se desfazendo na posição de sentinelas em volta de um ataúde de madeira escura, dentro do qual o outrora vivo vai se distanciando cada vez mais do mundo dos vivos e preparando-se para o sono em que irá submergir e permanecer profundamente até... Quem sabe?

Durante o caminho, pensava na existência que se findava. Um homem bom, que conheci ainda na flor da juventude quando, contemporâneos na vida, nós traçávamos planos mirabolantes sobre o futuro, embora, em meu íntimo, as aspirações fossem bem mais modestas. Já ele alcançara bem mais do que havia sonhado. Íamos chegando à maturidade e, confesso, sentia inveja das realizações de meu amigo. Agora, diante do duro quadro da morte, a inveja virava um arrependimento dolorido. Sentia-me o mais vil dos homens, e nada me consolava.

Mesmo em posição mais modesta na vida, não podia me queixar. Era reconhecido em meu meio profissional, a toda hora solicitado nas filiais da empresa em que trabalhava para instruir e palestrar.

Com meu amigo, no entanto, era diferente. Sua autoridade, desenvolvida nos cargos de expressão que ocupara no governo, impunha-se naturalmente. Repórteres e analistas políticos vinham ter com ele para ficarem a par de assuntos importantes, seu nome saía nos jornais e ele aparecia na TV. Mas, mesmo revestido de sua importância, mesmo que sobre seus ombros desabassem, com a maturidade, o peso de tanto poder e responsabilidade, seus olhos, os mesmos vistos por mim dias antes de sua morte, ainda brilhantes, ainda vívidos, ainda inquietos, não deixavam de ser os daquele menino que sonhava, que vivia de forma leve, até mesmo um pouco irresponsável, e conservavam o mesmo frescor do amor pela vida.

Nunca mais sua amizade, sua presença forte, seus sábios conselhos. Meu coração estava apertado. A inveja que sentira consumia-me por dentro, e não adiantava querer seu perdão. A morte o calara, e toda a compreensão que pudesse ter por mim tornava-se, agora, impossível.

Já não chovia quando o carro do aplicativo parou a 5 metros de distância da entrada da capela mortuária, em volta da qual percebi um carro descaracterizado da polícia e outro que devia pertencer à reportagem de algum jornal. Imaginei que as autoridades tivessem se preocupado em garantir a segurança daquela longa vigília, protegendo os presentes dos perigos noturnos da cidade. Munido de uma mala que havia preparado para minha viagem de dali a algumas horas, fui até o interior do edifício e, após os cumprimentos de praxe, das palavras normalmente pronunciadas nesses eventos, debrucei-me, sobre uma das janelas do local, que dava para o grande cemitério e acendi um cigarro, contrariando a advertência contida numa plaqueta na parede.

A madrugada começava a se findar, e o azul profundo do céu, confundido por pesadas nuvens, era desafiado pelos primeiros traços do dia.

Observando aqueles túmulos, uma sucessão quase infindável daqueles monumentos à morte, memoriais de pessoas idas, várias das quais experimentaram o drama completo da vida muito antes que eu nascesse, fiquei refletindo sobre todos os sentimentos experimentados desde que soubera da morte de meu grande amigo. Ela servia-me de advertência. A vida não é nada sem o proveito que possamos ter nela. As verdadeiras conquistas são as do coração. O amor, as amizades, as experiências, o bem que se fez em vida. E, no entanto, colocamos acima disso tantos objetivos. Por vezes, parecermos querer controlar o tempo como se a areia da ampulheta estivesse escorregando por nossas mãos. Passamos longos anos numa verdadeira batalha por conquistas que supostamente seriam a coroação de nossas vidas, e no final corremos o risco de, amargamente, descobrir que a própria vida foi perdida nessa batalha, e mesmo o objetivo atingido pode não representar mais nada se colocado em perspectiva do que tem verdadeira importância.

Meu amigo morto e eu, depois dos devaneios da juventude, fomos desigualados pela vida. Eu, agora, estava em condição superior, porque vivia. Mas, um dia, nos igualaríamos na morte. E essa igualdade seria perpétua... Definitiva.

Ele seria uma memória, mas eu estava ali: senhor de minhas iniciativas dali por diante, consciente disso como nunca.

Foi na chegada ao velório que me senti absolvido por completo da minha inveja e aliviado do remorso por ela provocado. É porque, no momento em que o carro do aplicativo parou, a suave voz que orienta a navegação pelo mapa lembrou-me de algo sobre que venho refletindo até hoje. A frase, dita em frente à capela mortuária, de onde já se divisavam as coroas de flores, os seres enlutados e, pouco além, o muro gradeado do cemitério deixando entrever as quadras mais nobres com seus imponentes jazigos, foi simples. Mas provocativa.

 “Você chegou ao seu destino.”

  • Nota de esclarecimento: "Encontro com o indesejado" é um texto incrível do Daniel Marchi de Oliveira. De tão bom escritor que o considero, resolvi abrir uma exceção e postá-lo no Blog do menino Dudu. 
  • "Encontro com o indesejado" foi publicado pelo Notibras no dia 18/04/2023. 
  • https://www.notibras.com/site/corpo-que-em-vida-causou-inveja-repousa-numa-cova-fria/

 

segunda-feira, 17 de abril de 2023

Casal devoto

    Aquele casal era, aos olhos de todos, o mais puro sinônimo de austeridade. Devotos dos mais fiéis da igreja, Anita e Gumercindo sorriam aquele sorriso largo para todos, como se a felicidade os acompanhasse graças aos preceitos rigidamente pregados pelo pastor da igreja ali do bairro. Novos no lugar, logo ganharam o respeito e, melhor ainda, a simpatia dos moradores. 

    Aos domingos, fizesse sol ou chuva, não importava, lá estavam aqueles dois. Anita trajava um casto vestido tão longo, que mal dava para notar aqueles singelos sapatos de dois centímetros de salto. Gumercindo, por sua vez, sempre de terno cinza ou preto, o que lhe conferia uma aparência digna. Para completar o quadro perfeito, ora um, ora outro empurrava o carrinho onde repousavam os gêmeos, recém-nascidos, Isaías e Jacó. Sim, nomes bíblicos para não restar dúvida do comprometimento daquela família. 

    Anita tratou logo de se enturmar com as beatas, com quem dividia o tempo em caridades. Tricotava paninhos, que eram distribuídos entre os mais carentes. De tão ligeira com as mãos, até as mais velhas não percebiam os pequenos defeitos nas peças produzidas. Mas que mal faria se percebessem? Nenhum, sempre diria alguém mais complacente. Afinal, o importante é que aquela mulher dedicava a vida para aplacar as mazelas do próximo.

    Dedicada esposa e mãe, Anita se sentava com as mulheres nas reuniões da igreja. Gumercindo, por sua vez, era o centro das atenções entre o grupo dos homens. De tão envolvente, o pastor lhe concedia alguns momentos no palanque da igreja. E lá ia o Gumercindo, todo empertigado, ler um Salmo aqui, outro ali. 

    Apesar da pouca afinação, não raro o casal fazia questão de acompanhar o coral. Até a Lindaura, a voz principal da igreja, se sentia maravilhada com aquela participação. Talvez porque tivesse uma quedinha pelo Gumercindo, talvez até pela Anita. Pelos dois? Vai saber!

    Os dias que se seguiram foram muito corridos para todos os membros daquela igreja. No final do mês, haveria uma grande festa para arrecadar fundos para a construção do novo templo. Uma pequena fortuna, mas nada que os devotos não pudessem alcançar, ainda mais depois de tanta louvação ao Senhor. Anita, ocupada com uma febre repentina que acometera os filhos, quase não pode ajudar nos preparativos. Já Gumercindo, que fora alçado a uma posição de comando pelo próprio pastor, tomou gosto pela coisa. 

    Chegou o grande dia. A festança foi um sucesso maior que o esperado. O público foi tão grande, que alguém poderia dizer que tinha gente saindo pelo ladrão. Pois é, no final das contas, a quantia daria até para quase dois templos, caso os fiéis assim desejassem. Aquela enorme quantidade de dinheiro foi colocada em um malote de bom tamanho. Mesmo assim, era nítido que, de tão estufado, todas aquelas notas e moedas poderiam ter sido postos em dois. 

    O pastor, agradecido pela generosidade de todos os presentes, puxou um sermão de quase meia hora. Ainda teve tempo para conclamar duas ou três canções religiosas. Após o último agudo de Lindaura, o pastor agradeceu pela presença de todos. As pessoas foram se dispersando, até que não havia mais ninguém no local. O pastor, então, tratou de guardar o rico malote na igreja, numa sala trancada a sete chaves, caso realmente existissem ali sete fechaduras. 

    Já era manhã avançada, quando o pastor e alguns fiéis entraram na igreja. O intuito era auferir os ganhos. Ao darem a última volta na chave, para espanto de todos, o malote havia sumido. O pastor ainda tentou conter o próprio desespero. Talvez tivesse colocado o malote em outro lugar. Que nada! Logo percebeu que havia sido ali mesmo. 

    Desesperado, correu para a casa do casal recém-chegado. Com certeza, o sábio Gumercindo saberia dar uma solução para aquela situação. Diante da porta, tocou a campainha. Nenhuma resposta. Bateu à porta. Nenhuma resposta. Aquele silêncio o transtornou tanto, que não teve capacidade de evitar esmurrar a porta, que se abriu lentamente. 

    O pastor entrou na casa. Ele chamou pelo Gumercindo. Nenhuma resposta. Tornou a chamar. Nada! Arriscou o nome de Anita, até que, diante de si, viu o carrinho dos gêmeos. Ele se aproximou e constatou que os bebês mantinham os olhos fechados, como se dormindo o sono dos anjinhos. O pastor esticou a mão para acariciar aqueles rostos rosados quando, finalmente, abriu seus próprios olhos para a realidade. Os bebês eram, na verdade, bonecos. Anita e Gumercindo, dois picaretas, haviam furtado todo  o dinheiro e fugido para não sei onde. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Casal devoto" foi publicada pelo Notibras no dia 21/4/2023. 
  • https://www.notibras.com/site/bebes-fecham-olhos-para-nao-ver-golpe-dos-pais/?fbclid=IwAR2WjdactQmjz57Eg7NzElbHn0OjIH6yJV3Hy3C7_W7cPDrtX9fsU0mGepA

sexta-feira, 14 de abril de 2023

Alaíde Costa e meu café gourmet

    

    Não sei se você é do tipo que associa pessoas a coisas, pessoas a pessoas, coisas a coisas. Pois bem, eu sou assim. Aliás, nem me pergunte por que, pois não saberia responder ou, talvez, não queira gastar meu tempo com isso, ainda mais hoje, que quero falar sobre a Alaíde Costa, cuja voz inebriante tem tornado meu café gourmet ainda mais saboroso durante as manhãs frias de Porto Alegre.

    Enquanto coloco a água na chaleira, sinto os primeiros raios do Sol, ao mesmo tempo em que a Alaíde me sopra "Aurorear". Meu corpo rijo tenta um gingar que não tenho, mas não estou nem aí. Imagino a Alaíde rindo aquele sorriso lindo e se divertindo com a minha falta de jeito. Ela me entende, certa de que sabe o que meus calos dizem sobre mim. 

    Se eu acordo tristonho por conta de pontapés da vida, eis que essa voz graciosa me ensina que o céu tem pecado, o inferno é divertido. A Alaíde, do alto da sua sapiência, me diz para eu ser quem sou. Pois é, não posso desprezar tamanho conselho, ainda mais porque as primeiras bolhas anunciam que é hora de tirar a chaleira do fogo. 

    Despejo o líquido da vida sobre o pó que preenche o coador de pano. O cheiro toma conta da cozinha, enquanto imagino a minha cantora piscando ao lado. Parece que ela também quer provar a iguaria. 

     Não tenho dúvida e, então, coloco o café em duas xícaras, enquanto a música se espalha por todo o apartamento. Eu me sento à mesa, certo de que a Alaíde está ali na minha frente, também sentada. Toda graciosa, ela toca a asa da xícara e, em seguida, sorve um tiquinho. Eu repito o seu gesto, mas algo me desperta desse sonho. Minha esposa, a Dona Irene, está logo atrás de mim: "Hum, adoro quando você prepara esse café delicioso pra mim!"

  • Nota de esclarecimento: A crônica "Alaíde Costa e meu café gourmet" foi publicada pelo Notibras em 29/04/2023. Por conta de solicitação da redação do jornal, foi feita uma pequena alteração no texto, que deixou de citar que a história se passa em Porto Alegre.
  • https://www.notibras.com/site/alaide-costa-deixa-cafe-gourmet-mais-saboroso/
  • A crônica "Alaíde Costa e meu café gourmet" faz parte de "Embalos Literários - coletânea de textos baseados em músicas" da editora Persona.

domingo, 9 de abril de 2023

Genival, o advogado apaixonado por números

    Apaixonado por matemática, Genival acabou se formando em direito, já que o pai, advogado de renome, o instigou a seguir o mesmo caminho. Nem alto nem baixo, nem gordo nem magro, andava pelas ruas com a cabeça voltada para o chão. Alguns diziam que isso era por causa do enorme topete, meio fora de moda. Outros, todavia, afirmavam que era por conta da timidez. 

      De tão topetudo, o rapaz parecia ter saído do túnel do tempo direto dos áureos anos da ultrapassada brilhantina. As costeletas, tão negras quanto seus cabelos, tentavam, sem sucesso, emoldurar aquele rosto pouco chamativo, caso não fossem as crateras na pele, lembranças das espinhas que outrora tanto o incomodaram. Sem tempo para pensar em bobagens, o rapaz, então recém saído da faculdade, se metia no meio dos códigos legais para tentar livrar algum de seus parcos clientes de uma pena mais dura.

      Apesar da pouca experiência, não demorou para entender todo aquele emaranhado jogo de palavras e ideias que cercam a advocacia. Percebeu que, no caso de júri, precisava entrar na cabeça daqueles sete indivíduos alheios aos trâmites da lei. Era mais um exercício da ética e, especialmente, da moral. E Genival sabia como ninguém instigar os profundos sentimentos de costumes, por mais tolos que fossem, naqueles seres que ignoram a legislação, mas são bombardeados, desde a mais tenra idade, por frases de conduta, a maioria religiosa. 

   Quando precisava convencer o juiz, fazia uma aprofundada pesquisa sobre a vida do magistrado. Obviamente que estudava com afinco o caso do seu cliente, mas não se furtava em buscar informações acerca de quem iria dar a sentença. Aliás, vale até uma nota especial sobre o caso do furto de uma vaca premiada, que tinha até nome. Pois bem, a dita cuja se chamava Clarineta, uma bela duma holandesa quase toda branca, se não fossem por umas manchas pretas aqui e ali. 

    O cliente do Genival, João Maria, havia confessado que tinha sido ele que afanara a tal vaca, pois precisava fazer um churrasco para o casório da única filha. Réu confesso apenas ao pé do ouvido do advogado, pois, de resto, foi muito bem orientado a dizer que era inocente, mesmo que debaixo de saraivadas. E, de tanto ouvir que era inocente, até começou a acreditar naquela ladainha sem tamanho.

     Jurava de pés juntos que a carne servida aos convidados era de uma outra vaca, que, por conta dessas coincidências inimagináveis da vida, nascera com as mesmas cores e marcações da finada Clarineta. Finada ou desaparecida? Sim, isso mesmo! Essa foi a estratégia que o Genival tramou e, com sucesso, conseguiu colocar não apenas uma pulga, mas um monte desses insetos, tão bem treinados desde tenra idade para sugar o sangue alheio, atrás das orelhas dos sete jurados. 

    Para completar todo aquele teatro, eis que o Genival, com a cara mais lavada do mundo, ainda propôs um mutirão para encontrar a Clarineta. É óbvio que a vaca nunca foi encontrada. Nem mesmo os ossos, que foram muito bem enterrados em local incerto. É verdade que um foi parar na vasilha do velho Lobo, o enorme vira-lata do João Maria. Mas ninguém se deu ao trabalho de procurar pela finada justamente ali. 

    Genival ganhou fama na região. Seu nome chegou à capital como o mais notório conhecedor do direito. Até ilustres magistrados iam ter com ele. Reverências das mais elevadas, sempre carregadas de mimos, seja uma bela garrafa de vinho dos mais caros, seja um lote de frangas poedeiras. Ficou rico graças aos inúmeros casos vitoriosos. 

     Aos 36, decidiu que já era hora de se casar. Sem pretendentes à vista, resolveu começar a investir na vida social. Algumas festas e confraternizações depois, conheceu Joana e desejou namorá-la. Ciente de que quem escolhe é a mulher, usou toda sua habilidade matemática e, então, pôs o plano em prática. O cálculo pareceu dar resultado, já que a moça logo começou a notá-lo. 

    O namoro durou pouco mais de um ano e, de repente, se casaram. Foi uma festança que atraiu toda aquela gente da região, além de outros tantos convidados vindos de lugares diversos. Até o João Maria tentou se comprometer com a carne para o churrasco, mas foi desencorajado pelo advogado, que não pretendia defender novamente seu cliente usando a mesma artimanha. 

    Os filhos chegaram em dupla nove meses após. Cresceram enquanto o pai prosseguia sua saga de ferrenho defensor dos interesses da sua cada vez maior clientela. Já sem tempo para contar tanto dinheiro, Genival sentiu que era hora de se aposentar. E foi o que fez antes de completar 60 anos. É verdade que, de vez em quando, ainda prestava consultoria a alguém mais importante, que o compensava de maneira generosa. 

    Era um domingo sossegado, desses que dá para passar o dia inteiro deitado numa rede na varanda, sem se preocupar com o tempo, mas apenas manter os ouvidos abertos para deixar o som dos cantos dos passarinhos entrar. Lá estava o Genival, quando, de repente, ele toma uma decisão radical. Olha para os lindos olhos da esposa e diz que vai voltar a estudar. Joana apenas sorriu, pois achava que era mais uma brincadeira do marido. Que nada!

   Um mês após, Genival estava sentado numa dura cadeira de madeira, da mesma forma que seus colegas de turma, todos na flor da idade. Com o pai falecido há alguns anos e sem muito tempo para vacilar, o advogado finalmente realizava seu antigo sonho, a matemática. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Genival, o advogado apaixonado por números" foi publicado pelo Notibras no dia 15/7/2023.
  • https://www.notibras.com/site/genival-advogado-sempre-apaixonado-por-numeros/

terça-feira, 4 de abril de 2023

Fotografia na moldura

     Assim que as pessoas entravam naquela residência, a despeito de alguns quadros de artistas famosos pendurados nas paredes, tinham a atenção voltada para aquela fotografia em preto e branco em uma pequena moldura gasta na mesinha ao lado do amplo sofá. Não que fosse um retrato digno de nota, pois não passava de mais um desses tantos que são batidos sem qualquer cuidado, mas apenas para marcar mais um dia fadado ao esquecimento. 

     Uma menina sorridente exibindo toda a sua magreza, como se fosse uma bailarina tentando dar os primeiros passos para a fama. Era óbvio, no entanto, que o sucesso chegou ou, então, fora herdado, tamanho o luxo daquela sala, que era apenas o prenúncio de uma vida repleta de riquezas da agora senhora Ofélia. Sim, isso mesmo! Ofélia, agora com quase 60, um dia havia sorrido para a lente desfocada de seu pai.
    
     Quase afundada de tanto tédio no sofá cor de vinho, Ofélia não tirava os olhos do retrato ao lado, como se buscasse aquela menina, que há tempos a havia abandonado. Enquanto isso, os repórteres ao redor aguardavam que a famosa escritora, atriz, cantora, compositora, diretora de inúmeros filmes de sucesso se pronunciasse. Nada! Nenhuma palavra.

      O silêncio naquela sala parecia fadado à eternidade, caso não fosse pelo descuido de um iluminador, que se deixou engasgar com a própria saliva. Todos se voltaram para o rapaz, que mal chegara aos 20, talvez 25. Tímido, ele buscou desviar o olhar das pessoas, que, agora, o repreendiam. Acabou por fitar o retrato da menina Ofélia. 

      _ Quantos anos você tem, meu jovem? - Ofélia falou pela primeira vez.

      _ Vinte e três.

     _ Sei que já tive a sua idade, mas não me lembro. Sei dos meus 10, 12, 18. Mas é como se uma névoa encobrisse todos os acontecimento seguintes. Estava correndo atrás dos meus sonhos, que eram muitos. Sei que os tinha aos montes, pois os prêmios que estão espalhados por esta sala não me deixam mentir. 

       _ A senhora deve sentir muito orgulho por todas essas conquistas.

     _ Orgulho? Talvez sim, meu rapaz. Mas o orgulho, como dizia meu saudoso pai, é o prenúncio do fracasso, pois ele mata seus sonhos.
  • Nota de esclarecimento: O conto "Fotografia na moldura" foi publicado pelo Notibras no dia 4/7/2023.
  • https://www.notibras.com/site/velha-imagem-mostra-que-orgulho-mata-sonhos/?fbclid=IwAR31jw1-FoJ408UzTnqaKhOiPkWH36yf8oYqS-flS9nc3A3MJsdKsFOb-AQ