- Nota de esclarecimento: A crônica "A ilha perdida" foi publicada pelo Notibras no dia 05/07/2023.
- https://www.notibras.com/site/namorico-e-enjoo-marcam-dias-de-ferias-de-garibaldo/?fbclid=IwAR3OVnNOP_XoSh3gS946KI-SgZMUxeI1QuI1Jm7HvU3_znJegWxh2m6pRSc
Pois bem, lá estávamos o Marcio e eu no cachorródromo do Tesourinha, nosso ponto de encontro quase sagrado. O Elias, que de vez em quando some por uma nevasca ou outra, também estava ali com aquelas pernas mais compridas até que toda a sua altura. Nossos cães, talvez alheios àquilo tudo, corriam de um lado para outro como se fossem cachorros. Vai entender uma coisa dessas.
Mas voltando à história, o Marcio se sentou numa grande pedra, enquanto o Elias e eu o observávamos preparando um cigarrinho de palha, costume de longa data. Aquilo era a deixa, pois sabíamos que ele tinha mais um causo para contar. O Elias, que é muito ansioso, ficou zanzando de um lado para o outro, enquanto fiquei num canto só observando o contador de histórias confeccionando aquele artefato fumegante.
Obviamente que também queria que o Marcio desembuchasse logo, mas fiquei na minha. É que o Marcio, talvez por sua profissão de músico, goste de instigar a plateia. Coisas de artistas, deve ser. Seja como for, a ansiedade do Elias estava num tanto, que eu não via a hora dele pegar no pescoço do Marcio e o erguer a dois metros do chão e esbravejar: "Desembucha logo, tchê!"
O Elias, no entanto, apesar de toda aquela loucura, é de uma gentileza sem tamanho. Sorte do Marcio, que nesse dia estava mais enrolado que papel higiênico. Para evitar qualquer confusão, dei uma cutucada de leve no prevaricador: "Qualé, mermão! Vai ficar a vida inteira aí enrolando esse fumo?"
O Marcio me deu aquela encarada enviesada, se levantou como se fosse ir embora. Mas, sorte nossa, o causo daquele dia era sobre o Alvino, o mais gaúcho dos gaúchos. E, todos sabemos, o Marcio adora falar sobre ele.
Depois do imbróglio, eis que o meu amigo começa a falar sobre o dia em que o Alvino foi passar uma temporada com a filha, que havia se casado com um catarina. Pois é, um catarina! Até eu, que sou forasteiro por estas bandas, sei que existe uma rivalidade entre gaúchos e catarinenses. Seria algo como vascaínos e flamenguistas ou, para quem é de São Paulo, corintianos e palmeirenses. Uma tremenda bobagem!
Pois é, mas deixemos essas intrigas de lado. Ou não! O fato é que o Alvino saiu da sua estância enorme e foi passar a invernada no sítio da filha e do genro. Apesar da churrascada caprichada e do chimarrão até razoável, o Alvino andava estressado.
O genro, muito atencioso, foi ter com o Alvino um dedo de prosa. O rapaz queria ficar bem com o sogro e, logo pela manhã, selou dois cavalos crioulos dos bons. Ele convidou o Alvino para uma cavalgada pela propriedade de 10 hectares. Pra quê? A emenda saiu pior que o soneto. Rabugento até a última instância, Alvino desabafou: "Me sinto confinado como se estivesse em Porto Alegre. Aqui não se pode sequer cavalgar por um dia inteiro na mesma direção. Vê se pode?"
Madrugada fria e chuvosa. Eram apenas eu e o motorista do aplicativo singrando aquelas ruas, indo em direção à capela mortuária, bem ao lado do cemitério, onde velavam o corpo de um amigo de longa data. Compromissos profissionais inadiáveis levariam-me a viajar logo de manhã, mas por poucas horas queria estar perto, não só daquele que se fora, mas de sua família e de outros amigos para os quais a perda recente deixava uma lacuna definitiva. O rádio do carro, sintonizado numa estação de notícias, falava sobre coisas políticas que, naquele momento, pareciam absolutamente sem importância, embora houvessem ocupado gravemente as atenções de meu amigo nos dias derradeiros de sua existência. A situação do país o consumia. O cargo que ocupava exigia-lhe esforços violentos para controlar certas situações, e isso o afastava do convívio com os seus. Num encontro ao acaso, no aeroporto, ele se queixara comigo. Queria dedicar mais tempo à esposa e às filhas. Permitir-se atividades prazerosas, entregar-se ao descanso, direito de todo aquele que tão fielmente cumpria suas atividades profissionais, mas tudo colocava antes de si mesmo e de suas necessidades. Somente o trabalho, somente a causa pública, somente os interesses do país. Assim, distanciava-se da família, dos amigos e, com os poucos que ainda encontrava, número no qual eu estava incluído, confessava sua desesperança com o Brasil.
Eu vinha no carro trocando mensagens com outro amigo, já presente ao velório, e esse me informava que, na capela mortuária, apenas um pequeno grupo de familiares, incluindo a viúva e a filha mais velha, bem como seis outros amigos comuns, aguardavam o dia raiar e a hora do sepultamento, marcado para as 9 horas da manhã. A longa vigília da madrugada impunha-se para aguardar a viagem de um irmão do falecido o qual, ocupando posto militar em distante estado brasileiro, só poderia chegar pela manhã.
A descrição propiciava-me imaginar o quadro que, muito brevemente, estaria diante de mim. Um velório com poucas pessoas é sempre pior. Mais triste, mais melancólico. Parece que esse evento tão triste põe à prova os que, verdadeiramente, ligam-se ao morto ou aos mais próximos sobreviventes. O velório em toda sua duração é uma via-sacra, cujo ápice se desenrola no drama do sepultamento ao qual costumam acorrer muito mais pessoas, pois trata-se de um evento bem mais visível. Poucos conseguem acompanhar, no interior da capela mortuária, a longa noite em claro onde, cercados pelo cheiro tão presente de cravos e rosas, os círios vão se desfazendo na posição de sentinelas em volta de um ataúde de madeira escura, dentro do qual o outrora vivo vai se distanciando cada vez mais do mundo dos vivos e preparando-se para o sono em que irá submergir e permanecer profundamente até... Quem sabe?
Durante o caminho, pensava na existência que se findava. Um homem bom, que conheci ainda na flor da juventude quando, contemporâneos na vida, nós traçávamos planos mirabolantes sobre o futuro, embora, em meu íntimo, as aspirações fossem bem mais modestas. Já ele alcançara bem mais do que havia sonhado. Íamos chegando à maturidade e, confesso, sentia inveja das realizações de meu amigo. Agora, diante do duro quadro da morte, a inveja virava um arrependimento dolorido. Sentia-me o mais vil dos homens, e nada me consolava.
Mesmo em posição mais modesta na vida, não podia me queixar. Era reconhecido em meu meio profissional, a toda hora solicitado nas filiais da empresa em que trabalhava para instruir e palestrar.
Com meu amigo, no entanto, era diferente. Sua autoridade, desenvolvida nos cargos de expressão que ocupara no governo, impunha-se naturalmente. Repórteres e analistas políticos vinham ter com ele para ficarem a par de assuntos importantes, seu nome saía nos jornais e ele aparecia na TV. Mas, mesmo revestido de sua importância, mesmo que sobre seus ombros desabassem, com a maturidade, o peso de tanto poder e responsabilidade, seus olhos, os mesmos vistos por mim dias antes de sua morte, ainda brilhantes, ainda vívidos, ainda inquietos, não deixavam de ser os daquele menino que sonhava, que vivia de forma leve, até mesmo um pouco irresponsável, e conservavam o mesmo frescor do amor pela vida.
Nunca mais sua amizade, sua presença forte, seus sábios conselhos. Meu coração estava apertado. A inveja que sentira consumia-me por dentro, e não adiantava querer seu perdão. A morte o calara, e toda a compreensão que pudesse ter por mim tornava-se, agora, impossível.
Já não chovia quando o carro do aplicativo parou a 5 metros de distância da entrada da capela mortuária, em volta da qual percebi um carro descaracterizado da polícia e outro que devia pertencer à reportagem de algum jornal. Imaginei que as autoridades tivessem se preocupado em garantir a segurança daquela longa vigília, protegendo os presentes dos perigos noturnos da cidade. Munido de uma mala que havia preparado para minha viagem de dali a algumas horas, fui até o interior do edifício e, após os cumprimentos de praxe, das palavras normalmente pronunciadas nesses eventos, debrucei-me, sobre uma das janelas do local, que dava para o grande cemitério e acendi um cigarro, contrariando a advertência contida numa plaqueta na parede.
A madrugada começava a se findar, e o azul profundo do céu, confundido por pesadas nuvens, era desafiado pelos primeiros traços do dia.
Observando aqueles túmulos, uma sucessão quase infindável daqueles monumentos à morte, memoriais de pessoas idas, várias das quais experimentaram o drama completo da vida muito antes que eu nascesse, fiquei refletindo sobre todos os sentimentos experimentados desde que soubera da morte de meu grande amigo. Ela servia-me de advertência. A vida não é nada sem o proveito que possamos ter nela. As verdadeiras conquistas são as do coração. O amor, as amizades, as experiências, o bem que se fez em vida. E, no entanto, colocamos acima disso tantos objetivos. Por vezes, parecermos querer controlar o tempo como se a areia da ampulheta estivesse escorregando por nossas mãos. Passamos longos anos numa verdadeira batalha por conquistas que supostamente seriam a coroação de nossas vidas, e no final corremos o risco de, amargamente, descobrir que a própria vida foi perdida nessa batalha, e mesmo o objetivo atingido pode não representar mais nada se colocado em perspectiva do que tem verdadeira importância.
Meu amigo morto e eu, depois dos devaneios da juventude, fomos desigualados pela vida. Eu, agora, estava em condição superior, porque vivia. Mas, um dia, nos igualaríamos na morte. E essa igualdade seria perpétua... Definitiva.
Ele seria uma memória, mas eu estava ali: senhor de minhas iniciativas dali por diante, consciente disso como nunca.
Foi na chegada ao velório que me senti absolvido por completo da minha inveja e aliviado do remorso por ela provocado. É porque, no momento em que o carro do aplicativo parou, a suave voz que orienta a navegação pelo mapa lembrou-me de algo sobre que venho refletindo até hoje. A frase, dita em frente à capela mortuária, de onde já se divisavam as coroas de flores, os seres enlutados e, pouco além, o muro gradeado do cemitério deixando entrever as quadras mais nobres com seus imponentes jazigos, foi simples. Mas provocativa.
Enquanto coloco a água na chaleira, sinto os primeiros raios do Sol, ao mesmo tempo em que a Alaíde me sopra "Aurorear". Meu corpo rijo tenta um gingar que não tenho, mas não estou nem aí. Imagino a Alaíde rindo aquele sorriso lindo e se divertindo com a minha falta de jeito. Ela me entende, certa de que sabe o que meus calos dizem sobre mim.
Se eu acordo tristonho por conta de pontapés da vida, eis que essa voz graciosa me ensina que o céu tem pecado, o inferno é divertido. A Alaíde, do alto da sua sapiência, me diz para eu ser quem sou. Pois é, não posso desprezar tamanho conselho, ainda mais porque as primeiras bolhas anunciam que é hora de tirar a chaleira do fogo.
Despejo o líquido da vida sobre o pó que preenche o coador de pano. O cheiro toma conta da cozinha, enquanto imagino a minha cantora piscando ao lado. Parece que ela também quer provar a iguaria.
Não tenho dúvida e, então, coloco o café em duas xícaras, enquanto a música se espalha por todo o apartamento. Eu me sento à mesa, certo de que a Alaíde está ali na minha frente, também sentada. Toda graciosa, ela toca a asa da xícara e, em seguida, sorve um tiquinho. Eu repito o seu gesto, mas algo me desperta desse sonho. Minha esposa, a Dona Irene, está logo atrás de mim: "Hum, adoro quando você prepara esse café delicioso pra mim!"
O sol já quase dando até logo era o prenúncio de mais uma pescaria. Lá estavam Orestes e seu fiel vira-lata Amigo. O homem tirou a blusa e a jogou ao lado, retirou o par de tênis e as meias. Só de bermuda, pegou a vara de pescar e a latinha cheia de minhocas.
Caminhou em direção às águas escuras do lago Paranoá, ali na prainha do Lago Norte. Os pés tocaram a água, ao mesmo tempo em que Orestes virou o rosto para ver seu cachorro. Amigo já se aninhara sobre a camisa do seu dono. O homem sorriu.
Orestes, apesar de quase sempre pescar tilápias, estava convencido de que aquele seria seu dia de sorte. Não voltaria para casa sem um tucunaré dos grandes! Até vislumbrava o rosto de felicidade da Rita, sua esposa, quando ele entrasse porta adentro com aquele peixão.
As horas avançaram, e nada de tucunaré. Quase desistindo daquele troféu, o pescador já carregava na cintura uma fieira com cinco tilápias e um piau. A janta estava mais que garantida, mas ele queria porque queria tentar a última jogada. Arrancou a cabeça de uma das tilápias, a prendeu no anzol e, quando já ia lançar a linha na água, Amigo despertou e começou a latir.
Orestes mandou o cachorro calar a boca, mas nada dele obedecer. Insistente, Amigo se aproximou da água e continuou latindo insistentemente. O homem, antes que pudesse fazer alguma coisa para parar com aqueles latidos, sentiu uma forte pressão na perna direita. Não teve nem tempo de gritar, pois logo estava totalmente submerso.
Amigo, desesperado com o sumiço do seu dono, ainda entrou na água. O cachorro nadou de um lado para o outro, nadou em círculos. Nada do Orestes. Exausto, voltou para a margem e, encolhido, acabou adormecendo aninhado na camisa do seu dono.
Registro de desaparecimento
Rita passou a noite em claro. Esperou em vão a volta de Orestes, que, ela bem sabia, de vez em quando esticava a pescaria noite adentro, ainda mais quando acompanhado de Almeida. Deitada no sofá, acabou cochilando por uma hora ou duas, quando foi despertada pela claridade vinda da janela.
A mulher esticou os braços, bocejou e, quase empurrada daquele lugar, aprumou o quadril para começar o dia. Foi até o banheiro, lavou o rosto, escovou os dentes, penteou os longos cabelos, que, apesar dos 34 anos, já apresentavam alguns fios brancos. Era hora de fazer o café.
Na cozinha, pegou o pó e colocou a água para ferver, certa de que o marido logo entraria por aquela porta. Que nada! Bebeu quase metade da garrafa de tão apreensiva. Sentou na varanda com mais uma xícara de café. Nenhum sinal de Orestes.
Telefonou para Almeida, que não sabia de Orestes. Aliás, ele até o havia chamado para pescar no dia anterior, mas Almeida disse que não poderia, pois sairia do trabalho mais tarde. Mesmo assim, percebendo a preocupação de Rita, se ofereceu para ir até a prainha do Lago Norte, onde os dois costumavam ir pescar.
Almeida estacionou o velho Corcel verde. Mal desceu do veículo, percebeu o vira-lata Amigo. O cachorro logo reconheceu o homem, mas não teve disposição para se levantar. Continuou aninhado na camisa do dono.
O homem se aproximou do cachorro, olhou ao redor. Nenhum sinal de Orestes. Tirou os sapatos e as meias, arregaçou as barras da calça, entrou no lago. Quando já estava desistindo, encontrou a vara de pescar do amigo. Ele meteu a mão no fundo e a pegou. Retornou para a margem. Depois de quase meia hora de buscas, Almeida pegou o Amigo no colo e foi embora.
Chegou à casa de Rita e lhe contou o ocorrido. Decidiram que o melhor era fazer um boletim de ocorrência na delegacia. E foi o que fizeram logo em seguida.
Parte de um corpo
Mariane acordou bem cedo naquele dia. Precisava desopilar o fígado, pois o trabalho como agente de polícia durante a semana a deixava estressada. Da janela do seu quarto, observou por um tempo o Lago Paranoá.
Preparou um belo café da manhã, pois pretendia passar o dia ao ar livre. Tomou um banho e, em seguida, vestiu uma roupa bem leve. Escolheu o par de tênis mais confortável e saiu de casa.
Caminhou em direção ao Pier da Asa Norte, onde alugou um pedalinho. Mal começou a navegar pelas águas mansas do Paranoá, ela voltou o rosto para o Sol, que parecia ainda mais vivo naquele dia. Mariane sorriu e pensou que aquilo era melhor que qualquer terapia.
Ela parou no meio do lago e deixou que o pedalinho ficasse quase parado, se não fosse pelo leve movimento das marolas. A policial fechou os olhos e imaginou estar ao lado de Marcelo, com quem mantivera um romance por dois anos. Ele, que também era policial, acabou se aposentando há alguns meses e foi morar em João Pessoa. Nunca mais se viram, apesar de se comunicarem de vez em quando.
De tão relaxada que ficou, Mariane esticou o braço direito para sentir o frescor da água do Paranoá. Sua mão dedilhou por um instante aquela imensidão até que, de repente, ela sentiu algo. Mariane voltou seus olhos para a sua mão e, assustada, soltou um grito.
Ainda atordoada, a mulher procurou se acalmar. Não era a primeira vez que Mariane ficava diante de um corpo. Todavia, este possuía apenas cabeça, tronco e parte de uma das pernas. Ela tentou raciocinar e, então, pegou seu aparelho celular e telefonou para a delegacia da Asa Norte.
A seção de crimes violentos foi acionada e, não demorou, lá estavam os agentes de polícia Pedro e Gustavo conversando com Mariane. Ela apontou para corpo, que ainda flutuava há aproximadamente 100, 150 metros. Não mais que isso.
Pedro e Gustavo, acompanhados de Mariane, foram até o local. Depois de acionarem a perícia criminal, o corpo foi recolhido ao IML. Durante esse tempo, os três policiais conjecturaram quem poderia ter feito aquilo. Não chegaram a uma conclusão, mas todos os três não acreditavam que poderia ser obra de um ser humano. Ou, então, não queriam acreditar.
Jet Ski
Álvaro, como de costume, acordou bem cedo e fez um desjejum recheado de frutas e cereais com leite tipo A. Com pouco mais de 60 anos, ainda mantinha um corpo muito mais saudável que a maioria dos seus amigos, quase todos ostentando barrigas proeminentes. Vaidoso como ele só, fazia questão de se exercitar na pequena academia ali mesmo na sua luxuosa mansão na Península do Lago Norte.
Aposentado há poucos anos, comprou um jet ski e, não demorou, se apaixonou pelo esporte náutico. Tanto é que, logo após fazer sua ginástica matinal, lá ia o Álvaro para o pequeno cais da sua propriedade em frente ao lago Paranoá. Acomodava-se no jet ski, ligava o motor, olhava a imensidão ao seu redor e partia como se fosse um bad boy querendo impressionar as meninas, que, àquela hora do dia, deveriam estar todas dormindo.
Não demorou, o homem, a despeito da roupa de neoprene, ficou todo encharcado. Mas nada que o incomodasse, pois a adrenalina corria em suas veias. Álvaro, de tão empolgado, chegava a fazer comentários sobre as próprias manobras, como se estivesse em um campeonato. Quem o visse naquele momento diria que se tratava de mais um dos inúmeros meninos crescidos da alta sociedade da capital.
Depois de quase duas horas naquelas idas e vindas, Álvaro começou a sentir cansaço. Mesmo assim, quis fazer uma última manobra, até que observou o nível do combustível. Estava baixo. Tão baixo que, talvez, não fosse possível nem retornar para o cais.
Convencido de que voltar era o melhor a se fazer, Álvaro ficou de pé no jet ski. Olhou ao redor e, sem pensar, deu um mergulho. Os minutos se seguiram, mas nada do homem retornar à superfície. Não retornou.
Buscas
O desaparecimento de Álvaro foi logo percebido pela família. O jet ski foi localizado quase no meio do lago Paranoá. No entanto, nada do homem, que, todos sabiam, era um excelente nadador. Mas são justamente esses destemidos que costumam morrer afogados naquelas águas.
O Corpo de Bombeiros foi acionado. As buscas prosseguiram durante o resto da manhã e percorreram toda a tarde. Nenhum sinal do desaparecido. Até o comandante da corporação estranhou o fato, pois no lago não havia correnteza que fosse capaz de levar o possível corpo sem vida para muito longe. Mesmo assim, aumentaram o perímetro das buscas. Nada.
A Polícia Civil entrou no caso, pois talvez se tratasse de crime. Um provável sequestro. O desaparecido, que ganhara muito dinheiro ao longo da vida, possivelmente teria colecionado alguns desafetos. Afinal, como bem disse um investigador da delegacia do Lago Norte, ninguém ficava tão rico sem pisar em calos alheios.
Durante as investigações, foi apontado um suspeito que havia trabalhado na casa do desparecido. Era o antigo jardineiro, que teria sido demitido por justa causa, segundo se noticiava. Francinaldo Pereira da Silva, esse era o nome do quase declarado autor do crime.
O suspeito foi levado à delegacia, onde teria sido espremido de formas nada ortodoxas. Mesmo assim, não se dobrou. Manteve a mesma história até que, por fim, o delegado se convenceu da sua inocência, haja vista a profusão de provas que indicava que, no dia do sumiço de Álvaro, Francinaldo estava trabalhando na residência do novo patrão no Park Way.
De tão pressionada estava a Polícia Civil, as investigações apontavam para várias direções. Mas isso tudo foi deixado de lado. É que, naquela sexta-feira, durante um passeio ao longo do Paranoá, um jovem casal avistou o que parecia ser uma mochila entre a vegetação na margem.
O rapaz entrou no lago e, com uma das mãos, tentou puxar aquele objeto. Acabou caindo sentado dentro d´água, momento em que teve uma visão do que era aquilo. Quase enfartou! Era o corpo de um homem com uma roupa preta de neoprene.
Corpo sem pernas
A Polícia Civil chegou ao local, onde estavam os jovens ainda assustados. O rapaz, completamente catatônico, não conseguia balbuciar uma única palavra. A moça apontou para os policiais onde estava o corpo.
Os agentes e o delegado entraram na água e constataram que se tratava mesmo de um corpo. Sim, o cadáver de um homem sem pernas. As duas haviam sido arrancadas na altura da cintura.
A perícia criminal foi acionada e, em seguida, o rabecão levou os restos mortais da vítima para o IML. O corpo foi identificado como sendo o de Álvaro Cattaneo. Apesar das evidentes mutilações, a causa mortis era outra. O homem estava com os pulmões cheios d'água, o que evidenciava morte por afogamento.
A notícia correu pela capital. Além de fazer parte da ínfima parcela endinheirada de Brasília, a vítima fora encontrada sem as pernas. Não importava se a necropsia tivesse apontado como causa mortis mais um afogamento no lago Paranoá. O fato é que aquelas mutilações não poderiam ser ignoradas.
O médico legista Santino foi o primeiro a apontar o autor daquilo: um jacaré. É verdade que todos sabiam da existência desses répteis no Paranoá, mas, até o momento, ninguém conhecia casos de ataques, mesmo porque os exemplares mapeados não chegavam a três metros. Seja como for, a tese de Santino foi logo aceita pelos colegas.
Foi feito contato com o zoológico, que indicou o biólogo Sá Gomes para uma análise mais aprofundada. Na mesma semana, lá estava o especialista em crocodilianos entrando no IML, onde foi recebido por Santino e outros médicos. Depois dos breves cumprimentos, Sá Gomes foi levado para a sala onde já se encontrava o cadáver de Álvaro.
Após quase meia hora estudando os locais das mutilações, o biólogo afirmou que o autor daquele estrago havia sido mesmo um jacaré. Sá Gomes disse que não poderia precisar se o ataque havia sido antes ou depois da morte, pois, não raro, os crocodilianos, quando diante de uma presa grande, costumam afogá-las antes de se alimentar. No entanto, prosseguiu o biólogo, para que isso acontecesse, o animal deveria ser maior do que os encontrados até então no Paranoá.
_ Há uma segunda vítima - disse Santino.
O médico se virou para a mesa ao lado. Ele retirou o lençol que cobria os restos mortais de Orestes, que havia sido encontrado há quase dois meses pela agente de polícia Mariane. O biólogo, depois de uma acurada análise, chegou à conclusão de que aquele estrago também havia sido feito por um jacaré. Talvez até mesmo o mesmo bicho, que, agora tinha certeza, deveria ter, no mínimo, quatro metros.
_ Um jacaré-açu poderia ter feito isso.
_ Jacaré o quê? - perguntou Santino.
_ Açu. É a maior espécie de jacaré. Alguns machos podem ultrapassar cinco metros.
_ Cinco metros?
_ Sim. Mas são raros.
_ E como é que um bicho desse tamanho nunca foi visto?
_ Eles possuem a couraça mais escura, os mais velhos chegam a ser pretos. Mas concordo com você, pois seria muito difícil um animal desse porte passar despercebido. Ainda mais porque são muito territoriais.
_ Isso significa que eles ficam em uma determinada área?
_ Exatamente.
_ Isso é estranho.
_ Por que estranho?
_ É que as vítimas desapareceram em áreas bem distantes, além de terem sido encontradas em locais distintos.
_ É mesmo estranho ou, então, há mais de um jacaré-açu no Paranoá.
Pânico
As buscas por jacarés no lago começaram na manhã seguinte. Equipes do Corpo de Bombeiros foram acionadas. A movimentação no lago Paranoá foi tamanha, que logo despertou a atenção da população. Não demorou, a imprensa estava no local.
A notícia de que um monstro devorador de homens habitava as calmas águas do Paranoá se espalhou. Isso fez com que várias embarcações particulares tomassem toda a região do lago. Além disso, diversos drones passaram a sobrevoar a extensa área.
Durante uma das inúmeras entrevistas a moradores locais, uma menina de 10 anos disse que já havia visto o Sansão. Pois é, o jacaré tinha até nome. E, segundo os cálculos da garota, ele era tão comprido como um automóvel.
Verdade ou imaginação, aquela história sobre Sansão correu toda a cidade. O pânico tomou conta dos frequentadores do lago Paranoá. Entretanto, um ou outro indivíduo insano se atrevia a continuar por ali.
Os dias foram se transformando em semanas e, já completando três meses, o assunto foi deixado de lado. Quase ninguém comentava sobre o suposto enorme réptil. E, os que o faziam, era apenas para fazer chacota da análise do tal especialista em crocodilianos do zoológico. Até uma charge saiu na imprensa, onde mostrava Sá Gomes com uma lente de aumento apontada para uma lagartixa.
Aos poucos, as pessoas voltaram a frequentar o lago. Pescadores, adeptos de esportes náuticos, atletas que se atreviam a atravessar a nado aquele mundaréu de água. Tudo parecia como antes.
Pois foi numa manhã que um grupo de jovens resolveu se refrescar nas margens debaixo da famosa ponte JK. Todos na faixa dos 12 a 15 anos correram para ver quem entrava primeiro na água. O vencedor foi César, que mergulhou e, depois de quase dez metros sob as águas escuras, surgiu.
Os outros garotos também entraram e ficaram por aqui durante quase três horas. Cansados, um a um saiu da água, até restar apenas o desbravador César. Sentados na margem, o grupo observava o amigo boiando, até que surgiu um enorme jacaré e abocanhou a cabeça do menino.
Todos ficaram boquiabertos com aquilo. A história sobre a existência de um monstro naquelas águas era mesmo real. Sá Gomes estava certo.
Novas buscas
Pouco tempo após o ataque contra o pequeno César, uma verdadeira operação de buscas já estava no local. Partes do corpo do menino foram encontradas. Até os mais experientes bombeiros ficaram abalados com a cena.
Já no início da tarde, Sansão foi avistado deitado entre arbustos na margem oposta ao ataque. A equipe que o havia encontrado apenas esperava a decisão do comandante da operação: capturar ou abater a fera. Depois de quase uma hora de indecisão, optou-se por mantê-la viva.
Após várias tentativas frustradas, Sansão foi capturado. Laçado, amordaçado, Sansão se debateu tanto, que facilmente seria capaz de fazer outras vítimas apenas com sua enorme cauda. Foram necessários vários homens sobre o enorme jacaré-açu para contê-lo.
A multidão que se formou no local foi tamanha, que a imprensa precisou abrir espaço para filmar e fotografar aquela captura, que levou até o início da noite. Finalmente, Sansão foi transportado para o único local que poderia recebê-lo: o zoológico de Brasília.
Já passava das 22 h quando o caminhão entrou pelo portão do zoo. Sá Gomes estava lá para receber aquele espécime magnífico. Ao seu lado, encontrava-se o veterinário Leonardo Bernar. Os dois teriam muito trabalho, pois precisavam fazer uma análise cuidadosa das condições físicas de Sansão.
Dalila
Quase uma semana após a captura do devorador de homens, Sá Gomes e Leonardo Bernar foram entrevistados por vários jornalistas. Além da imprensa local, profissionais de todo o país e até do exterior queriam noticiar aquele momento.
Diante dos holofotes, Sá Gomes deu início às conclusões que a equipe formada por biólogos e veterinários havia chegado após os exames no jacaré-açu. A primeira e mais surpreendente, segundo as próprias palavras de Sá Gomes, é de que não havia Sansão, mas Dalila.
_ Isso foi algo que nos deixou muito surpresos. É que se trata de uma fêmea. Crocodilianos fêmeas são muito menores que os machos. Mas esta, em especial, é incrivelmente grande, pois é o maior espécime registrado até o momento. Ela tem exatos 5,88 m.
A conferência durou horas, até o momento em que todos foram encaminhados para o local onde estava a fêmea de jacaré-açu. Lá se encontrava Dalila praticamente inerte se esquentando num canto da ilha quase no meio do pequeno lago. Alguns macacos dividiam aquele espaço com ela. Certamente desconheciam os antecedentes da companheira ou, se sabiam, confiavam na própria agilidade em escapar daquelas poderosas mandíbulas.
Quase dois anos após esse ocorrido, uma dúvida ainda paira entre os moradores da capital do país. Dalila teria deixado herdeiros no lago Paranoá? Não se sabe se isso é verdade ou, então, mais uma lenda urbana. Seja como for, Dalila continua exposta no zoológico de Brasília para quem quiser atestar a veracidade dessa história.
Fim
De tão topetudo, o rapaz parecia ter saído do túnel do tempo direto dos áureos anos da ultrapassada brilhantina. As costeletas, tão negras quanto seus cabelos, tentavam, sem sucesso, emoldurar aquele rosto pouco chamativo, caso não fossem as crateras na pele, lembranças das espinhas que outrora tanto o incomodaram. Sem tempo para pensar em bobagens, o rapaz, então recém saído da faculdade, se metia no meio dos códigos legais para tentar livrar algum de seus parcos clientes de uma pena mais dura.
Apesar da pouca experiência, não demorou para entender todo aquele emaranhado jogo de palavras e ideias que cercam a advocacia. Percebeu que, no caso de júri, precisava entrar na cabeça daqueles sete indivíduos alheios aos trâmites da lei. Era mais um exercício da ética e, especialmente, da moral. E Genival sabia como ninguém instigar os profundos sentimentos de costumes, por mais tolos que fossem, naqueles seres que ignoram a legislação, mas são bombardeados, desde a mais tenra idade, por frases de conduta, a maioria religiosa.
Quando precisava convencer o juiz, fazia uma aprofundada pesquisa sobre a vida do magistrado. Obviamente que estudava com afinco o caso do seu cliente, mas não se furtava em buscar informações acerca de quem iria dar a sentença. Aliás, vale até uma nota especial sobre o caso do furto de uma vaca premiada, que tinha até nome. Pois bem, a dita cuja se chamava Clarineta, uma bela duma holandesa quase toda branca, se não fossem por umas manchas pretas aqui e ali.
O cliente do Genival, João Maria, havia confessado que tinha sido ele que afanara a tal vaca, pois precisava fazer um churrasco para o casório da única filha. Réu confesso apenas ao pé do ouvido do advogado, pois, de resto, foi muito bem orientado a dizer que era inocente, mesmo que debaixo de saraivadas. E, de tanto ouvir que era inocente, até começou a acreditar naquela ladainha sem tamanho.
Jurava de pés juntos que a carne servida aos convidados era de uma outra vaca, que, por conta dessas coincidências inimagináveis da vida, nascera com as mesmas cores e marcações da finada Clarineta. Finada ou desaparecida? Sim, isso mesmo! Essa foi a estratégia que o Genival tramou e, com sucesso, conseguiu colocar não apenas uma pulga, mas um monte desses insetos, tão bem treinados desde tenra idade para sugar o sangue alheio, atrás das orelhas dos sete jurados.
Para completar todo aquele teatro, eis que o Genival, com a cara mais lavada do mundo, ainda propôs um mutirão para encontrar a Clarineta. É óbvio que a vaca nunca foi encontrada. Nem mesmo os ossos, que foram muito bem enterrados em local incerto. É verdade que um foi parar na vasilha do velho Lobo, o enorme vira-lata do João Maria. Mas ninguém se deu ao trabalho de procurar pela finada justamente ali.
Genival ganhou fama na região. Seu nome chegou à capital como o mais notório conhecedor do direito. Até ilustres magistrados iam ter com ele. Reverências das mais elevadas, sempre carregadas de mimos, seja uma bela garrafa de vinho dos mais caros, seja um lote de frangas poedeiras. Ficou rico graças aos inúmeros casos vitoriosos.
Aos 36, decidiu que já era hora de se casar. Sem pretendentes à vista, resolveu começar a investir na vida social. Algumas festas e confraternizações depois, conheceu Joana e desejou namorá-la. Ciente de que quem escolhe é a mulher, usou toda sua habilidade matemática e, então, pôs o plano em prática. O cálculo pareceu dar resultado, já que a moça logo começou a notá-lo.
O namoro durou pouco mais de um ano e, de repente, se casaram. Foi uma festança que atraiu toda aquela gente da região, além de outros tantos convidados vindos de lugares diversos. Até o João Maria tentou se comprometer com a carne para o churrasco, mas foi desencorajado pelo advogado, que não pretendia defender novamente seu cliente usando a mesma artimanha.
Os filhos chegaram em dupla nove meses após. Cresceram enquanto o pai prosseguia sua saga de ferrenho defensor dos interesses da sua cada vez maior clientela. Já sem tempo para contar tanto dinheiro, Genival sentiu que era hora de se aposentar. E foi o que fez antes de completar 60 anos. É verdade que, de vez em quando, ainda prestava consultoria a alguém mais importante, que o compensava de maneira generosa.
Era um domingo sossegado, desses que dá para passar o dia inteiro deitado numa rede na varanda, sem se preocupar com o tempo, mas apenas manter os ouvidos abertos para deixar o som dos cantos dos passarinhos entrar. Lá estava o Genival, quando, de repente, ele toma uma decisão radical. Olha para os lindos olhos da esposa e diz que vai voltar a estudar. Joana apenas sorriu, pois achava que era mais uma brincadeira do marido. Que nada!
Um mês após, Genival estava sentado numa dura cadeira de madeira, da mesma forma que seus colegas de turma, todos na flor da idade. Com o pai falecido há alguns anos e sem muito tempo para vacilar, o advogado finalmente realizava seu antigo sonho, a matemática.