segunda-feira, 31 de março de 2025

As quase amigas e o relógio de parede

        

 Analice e Judite já se conheciam há tempos, apesar de nunca terem sido tão próximas. Tinham lá seus laços, que, no entanto, poderiam ser facilmente desfeitos. Entretanto, talvez por aparências e certas conveniências, as duas preferiam a harmonia à discórdia. 

          Foi por descuido que a primeira foi bater à porta da segunda em um domingo. Não muito cedo, mas o suficiente para ter a dúvida ser a vizinha estava ou não acordada. Seja como for, Analice arriscou e, por sorte, Judite atendeu com um sorriso no lindo rosto trigueiro.

             — Mulher, você por aqui? Que bicho te mordeu?

            — Ah, Judite, você acredita que me esqueci de comprar café?

            — Pois entre, que faço questão que você tome comigo. 

            — Não precisa, amiga.

            — Pois deixe de bobagem, que a água já tá no fogo. 

           Enquanto a anfitriã foi para cozinha, Analice observou o aconchegante apartamento. Não tardou, notou o belo relógio de parede. Que coincidência! Ela se aproximou e, com uma das mãos, o tocou, justamente quando Judite apareceu com a bandeja, duas xícaras, o bule de café e uma cesta de biscoitos adocicados. 

            — Lindo, né?

            — O quê?

            — O meu relógio.

            — Ah, sim! Muito lindo!

            — Você quer o seu café com açúcar ou adoçante?

            — Adoçante. 

            — Ainda bem, pois não tenho mais açúcar em casa.

            — A propósito, Judite...

            — Diga.

            — Tenho um relógio igualzinho ao seu.

            — Jura?

            — Pois é!

            — Que coincidência!

            — O meu ganhei do Júlio.

            — Aquele seu ex-namorado?

            — Aquele mesmo! Um traste!

            — Sério?

            — Seriíssimo!

            — Pelo menos ele parece ter bom gosto para presentes.

            — É verdade.

            — Prove esses biscoitos. São doces, mas não têm açúcar.

            — Obrigada. Mas sabe o que me intriga.

            — O quê?

            — É que esse seu relógio é igualzinho ao meu.

            — E daí?

            — Daí que me veio um pensamento aqui.

            — Qual?

            — Por acaso você saiu com o Júlio?

            — Tá doida?

            — Por que estaria?

            — Não suporto homem que usa perfume barato.

            Analice, ainda não convencida, instigou a amiga.

            — Então, Judite, quem te deu o relógio?

            — Ninguém.

            — Como assim?

             — Ué, como assim o quê?

            — Hum... Então, você o comprou?

            — Tá maluca, mulher? Você sabe quanto custa um relógio desses?

            — Hum... Não, mas deve ser bem caro.

            — Uma fortuna! Mais de cinco mil.

            — Tudo isso?

            — Sim.

            — E como foi que você o conseguiu?

            — Ah, isso foi fácil.

            — Como assim?

            — Eu o roubei.

            — Roubou?

            — Sim. Aproveitei que ninguém estava vendo, e o meti dentro da sacola e saí da loja. 

            — Hum! Pelo menos, o meu foi um presente e não fruto de um crime.

            — E qual a diferença?

           — Qual a diferença? Ah, tem muita diferença!

            — Tem nada! 

            — Tem sim! E muita!

            — O relógio não tá aí?

            — Hum!

            — E não é igualzinho ao seu?

            — Hum!

            — Então?

            — Mas você cometeu um crime!

       — Amiga, deixa de bobagem! Apenas utilizei outro método de aquisição. E a propósito...

          — O quê?

          — Que tal o café?

  • Nota de esclarecimento: O conto "As quase amigas e o relógio de parede" foi publicado por Notibras no dia 31/3/2025.
  • https://www.notibras.com/site/as-quase-amigas-e-o-clone-do-relogio-de-parede/

domingo, 30 de março de 2025

Lembranças de 1973

    

Os que me conhecem hoje nem imaginam os perrengues que passei. Pobreza em qualquer fase da via é algo que aflige os acometidos, mas, na adolescência, parece que é uma topada do dedo mindinho em qualquer quina traiçoeira. Enquanto a dor lancinante se apodera até da alma, as lágrimas escorrem pelo rosto cheio de espinhas, e os inevitáveis palavrões são expelidos pelos lábios desajuizados. 

          — Calma, minha filha, que a vida é mesmo assim.

          Essa era a minha mãe me pedindo calma. Calma? Como é que alguém pode pedir calma quando você está prestes a tomar bomba na escola, e o coração não para de palpitar pelo garoto mais gato da rua, justamente o namorado da sua melhor amiga? É verdade que, apesar de atolada em problemas, havia um mais urgente: a minha banda favorita iria se apresentar naquela semana. Afinal, com que roupa eu iria ao show dos Secos & Molhados?

          Enquanto tentava decifrar os enigmas da matemática, meu cérebro também matutava sobre como parecer descolada diante dos meus ídolos. O ideal seria uma regata branca, calça jeans e um All Star. Gente, quanta grana que não tinha naquele tempo!

          Se descobri que a raiz quadrada de 169 era 13, meu pensamento iluminou para novas ideias. Pois é, não tinha regata, então, cortei uma camiseta branca e costurei. Lá estava a minha regata, que me pareceu quase original diante da minha miopia. Calça jeans, nem pensar. Era uma fortuna, e nem a completa insensatez adolescente teria a cara de pau de pedir uma para minha mãe, que ralava demais para colocar o básico na mesa lá de casa. 

          Por sorte de desesperada, a Joana, justamente a minha melhor amiga, que andava a tiracolo com o Henrique, o tal bonitão da rua, me emprestou uma calça de brim azul. Maravilha! Só faltava o All Star, que sabia que não iria rolar. Já conformada com meu Conga, eis que vi na lixeira um par de Bamba, que era a versão tupiniquim do famoso tênis estadunidense.

            O show aconteceu no domingo, finalzinho de tarde, e lá estávamos Joana, Henrique e eu misturados à multidão. Inebriados pelas canções, por toda aquela atmosfera transgressora, dançamos, pulamos, cantamos, gritamos. Inesquecível, ainda mais porque foi quando rolou meu primeiro beijo na boca. 

            Mas não pense você que foi com Henrique, que não desgrudava da minha amiga. Foi com um colega da escola, o Marcos, que nem era tão lindo assim. Todavia, o menino era dono de lábios carnudos, verdadeiro convite praticamente irrecusável. E como o danado sabia beijar! Nossa, foi por pouco que não ultrapassamos o limite. 

          No dia seguinte, morta de cansaço, mas satisfeita pelo ocorrido na véspera, eu sentada na carteira mais ao fundo diante de uma quantidade infindável de números. A cabeça, quase toda voltada para o trio mais maneiro de 1973, por milagre, conseguiu funcionar para resolver por completo a prova. De tão inacreditável era a situação, que Jorge, o professor, me parabenizou pelo dez.

            — Jaqueline, não é que você conseguiu passar? 

            — Que maravilha, professor!

            — Agora você já vai poder receber o presente do Papai Noel.

            Há muito não acreditava em Papai Noel, mas foi bom ouvir aquilo do meu mestre. Soube recentemente que ele foi fazer companhia a Pitágoras, Gauss e outros tantos gênios das exatas. Até hoje não tenho dúvida de que foi o professor Jorge que me levou a decidir fazer faculdade de matemática. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Lembranças de 1973" foi publicado por Notibras no dia 30/3/2025.
  • https://www.notibras.com/site/drama-da-prova-ciume-da-amiga-show-e-por-fim-faculdade-das-continhas/

sábado, 29 de março de 2025

Herança artística

    

Tenho consciência de que não fui a melhor das mães, mas me esforço para que meus netos tenham boas recordações da avó. São cinco, entre os quais está a pequena Alice, de oito anos. 

          — Vovó, preciso da sua ajuda.

          — O que foi, Alice?

          — A professora passou um trabalho, mas eu não sei desenhar.

          Ao ouvir o desespero na voz da minha neta, senti que aquilo fosse por conta da carga genética que passei para meu filho, que, por conseguinte, repassou para a filha. Mesmo assim, era meu dever como avó socorrer a criança, apesar de eu, nos meus longínquos tempos de escola, jamais ter sido conhecida como a nova Tarsila do Amaral.  

        Antes de ir ao apartamento da Alice, passei numa papelaria para comprar uma cartolina. Pensei em comprar logo cinco. Não era possível que minha neta e eu fôssemos falhar mais do que quatro vezes. Na dúvida, comprei dez. Vá que... 

        Assim que cheguei, a menina me deu aquele abraço tão apertado, que não consegui evitar de verter algumas lágrimas.

        — Vovó, por que tá chorando?

        — Nada, Alice, não é nada.

        — Eu apertei você com muita força?

        — Não, Alice.

        — E por que você tá chorando?

        — Deve ser por conta da alergia.

        — Alergia?

        — É.

        — Alergia de quê?

        — Ah, coisa de velha, Alice.

        Minha neta ficou me encarando por um instante, até que viu aquele monte de cartolinas na sacola. Ela abriu aqueles enormes olhos castanhos e sorriu.

          — Vovó, você comprou todas as cartolinas do mundo?

         Bem, não comprei exatamente todas as cartolinas do mundo, mas creio que o suficiente para que minha neta não passasse vergonha ao entregar o trabalho para a professora. Seja como for, tratamos de começar a tarefa, mesmo porque Alice precisaria entregá-la no dia seguinte.

          Enquanto aquela garotinha mostrava todos seus dotes artísticos sobre a cartolina, eu me questionava sobre o tema: desmatamento. Alice, no alto da sabedoria dos seus oito anos, propôs retratar a devastação do Cerrado, cuja vegetação há tempos é substituída por plantação de soja e pasto para o gado. Infelizmente, essa é uma realidade que devasta o meio ambiente, e que nos atinge a todos. 

          Findo o trabalho, constatei que a minha neta, mesmo que não venha a se tornar a nova Tarsila, passou longe dos meus traços disformes. Ela me agradeceu por tê-la ajudado, mas o máximo que fiz foi opinar em relação às cores. Em seguida, foi guardar as outras nove cartolinas, que nem foram utilizadas.

          Na manhã seguinte, lá estava para levar Alice para escola. A menina carregava a cartolina aberta, o que me causou certa aflição.

          — Alice, não é melhor enrolar a cartolina?

           — Não, vovó.

           — Mas aberta desse jeito pode rasgar.

           — Não, vovó. Melhor ficar aberta.

           — Mas por quê?

           — Porque as pessoas precisam saber o que está acontecendo com a natureza.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Herança artística" foi publicado por Notibras no dia 29/3/2025.
  • https://www.notibras.com/site/a-natureza-e-o-cerrado-so-sobreviverao-se-todos-enxergarem-o-obvio/

sexta-feira, 28 de março de 2025

Preparando-se para o pior

        A idade poderia ser encurtada ou esticada, dependendo da boa ou má vontade do observador. Também não chegava a ser um tipo incomum, apesar dos grandes olhos castanhos adornados com cílios tão grandes, que poderiam causar dúvida se eram originais ou postiços. Nem bonita nem feia, mas tinha lá seus encantos.

          — Stela.

          — De quê?

          — Colina. 

          — Colina?

          — Sim.

          — Nunca vi.

          — Na minha família tem um monte.

          — É óbvio que tem.

          — Conhece?

          — Conheço o quê?

          — A minha família.

          — Não! Por que conheceria?

          — É que você disse que era óbvio.

          Costumava fazer isso como uma forma de treino, já que carregava a dúvida sobre o dia de amanhã. Vá que os fascistas cheguem ao poder novamente.

          Stela Colina, diante dos alunos no curso de direito, fazia questão de promover um minuto de silêncio logo após adentrar no recinto. E, antes da plateia demonstrar inquietação, proferia: "Talvez uma das coisas mais difíceis de você ser no interrogatório é inocente. Você não sabe nem do que se trata."

          Tortura. Era esse o tema a ser tratado, enquanto opiniões diversas pululavam assim que a professora promovia o debate.

          — Sou contra!

          — Sou a favor!

          — Depende.

          — Depende do quê?

          — Ah, de quem for torturado?

          Stela, diante de tais opiniões, se dirigiu ao quadro e escreveu em letra garrafais: "A lei que não protege o meu inimigo não me serve." (Ruy Barbosa)

          — Professora, a senhora escreveu Ruy com ípsilon.    

          — Sim. Fiz isso em respeito à grafia que consta na certidão de nascimento e de todos os demais documentos de um dos nossos maiores juristas.

          Stela, assim que terminou a aula, viu os estudantes pegarem seus pertences e saírem da sala. Ela imaginou que, entre aqueles jovens, talvez um ou outro se tornasse proeminente figura pública. Pensou por algum tempo antes de ir embora e, sem mais se lembrar do caminho percorrido, logo se encontrava na varanda do apartamento, xícara de café nas mãos, tentando desvendar o que estava por detrás do horizonte, muitas vezes sombrio.

          — Stela.

          — De quê?

          — Colina. 

          — Colina?

          — Sim.

          — Nunca vi.

          — Na minha família tem um monte.

          — É óbvio que tem.

          — Conhece?

          — Conheço o quê?

          — A minha família.

          — Não! Por que conheceria?

          — É que você disse que era óbvio.  

          Vá que...

  • Nota de esclarecimento: O conto "Preparando-se para o pior" foi publicado por Notibras no dia 28/3/2025.
  • https://www.notibras.com/site/stela-pragmatica-via-a-tortura-sob-dois-angulos-depende-quem-seja-a-vitima/

quinta-feira, 27 de março de 2025

Imbróglio no cartório

    

A fofoca não é algo que me faça perder o sono para tentar desvendar o seu desenlace. No entanto, parece que os imbróglios que se dão ao meu redor sempre me chegam de modo inesperado, como se fosse eu um ímã dessa coisa que, afinal, atrai ouvidos até mesmo do mais decoroso dos viventes. Se duvida, eis o que aconteceu na semana passada aqui no serviço.

          Meu nome é Frederico Marchi, mas, até onde sei, não tenho qualquer parentesco com o poeta e escritor Daniel Marchi. Confesso que até queria, pois poderia usar tal proximidade para me fazer notado pelas moçoilas que desfilam tanta elegância pelas calçadas estreitas da capital. Sou um tipo quase comum, caso não fosse pela calvície avançada nos meus ainda 28 anos, como se fosse castigo de Deus. E justamente contra mim, devoto de São Francisco de Assis. 

          Vaidades postas de lado, eis que sou auxiliar de cartório, emprego que consegui por indicação de tio Alberto, recém-falecido. Bom homem, que ajudou o quanto pode familiares e amigos. Foi pego de surpresa por uma dessas doenças de velho e, diante do inevitável, sorriu: "Fred, meu querido sobrinho, a vida é um sopro."

          Apesar da saudade, não estou aqui para falar sobre o meu parente. Pois bem, na semana passada, sexta-feira para ser mais preciso, aconteceu um rebu aqui no trabalho. Tudo por causa do Souza. Aliás, quando não é o Souza, a culpa do rebuliço é toda do Pedro Henrique, que gasta mais tempo penteando a vasta cabeleira do que atendendo a clientela. Creio que ele faz isso apenas para me provocar, já que, não raro, lança-me aquele olhar oblíquo e sorri cinicamente enquanto desliza o pente sobre as madeixas aloiradas. Que exibido!

          Pouco antes das cinco da tarde, o cartório estava abarrotado de gente, como se aquilo fosse o dilema entre a felicidade e o martírio. Povo estressado, que deixa tudo para a última hora. Seja como for, no momento em que estava atendendo um sujeito que me fazia perguntas atrás de perguntas, eis que surgiu uma beldade de lá seus trinta e poucos anos. Um pitéu, como tio Alberto costumava falar.

          A tal mulher, que já carregava um bonde de atenção, foi ainda mais explícita quando gritou em direção ao Souza, que estava paquerando uma linda garota de seus vinte anos. 

          — Safado! Sou mesmo trouxa de vir aqui para te chamar para jantar, seu cretino!

          Instintivamente, todos ficamos boquiabertos aguardando pelos próximos capítulos, que, não tardaram, foram despejados em cascatas.

           — Souza, só vou te dizer uma coisa!

           — Solange, meu amor, posso explicar.

           — Pois vá explicar para megera da sua mãe, seu cretino!

           Diante do auê, ninguém teve coragem para enfrentar aquela onça. Por sorte, ela se virou e saiu do recinto, momento em que pude ouvir alguns comentários.

            — Que monumento!

            — Que ancas!

            — Ah, era uma nora dessas que eu queria dar para minha mãe.

            Pra quê? Souza pareceu não gostar e saiu em defesa própria.

            — Ei, olha o respeito com a mãe dos meus filhos!

          — E desde quando você tem filhos, Souza? - Pedro Henrique questionou.

          — Não tenho ainda, mas terei um dia.

         Situação apaziguada, clientela atendida, as portas do cartório foram fechadas. Todavia, o assunto persistiu até que todos fôssemos embora. E lá estávamos o Souza, o Pedro Henrique e eu no ponto de ônibus, quando ouvi o seguinte interlúdio.

          — Você fica rindo aí, Pedro Henrique, mas um dia a casa vai cair pra você também.

         — Que nada, Souza, a Rafaela nunca apareceu no cartório nem pra me levar um pastel.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Imbróglio no cartório" foi publicado por Notibras no dia 27/3/2025.
  • https://www.notibras.com/site/noiva-aparece-em-cartorio-e-solta-cobras-e-lagartos-contra-ex-futuro-marido/

quarta-feira, 26 de março de 2025

Quase um rei

    Aquilo não passava de uma reunião de indivíduos de má índole, cuja má fama corria ligeira por toda a região. Verdadeira súcia, que não perdia oportunidade para propagar discórdia e cometer crimes. Isso como se fosse natural daquele bando sem escrúpulos se apropriar do que lhe fosse alheio, inclusive da fé, tão própria de gente inocente.

          Alcides, um dos líderes, sorria sem qualquer pudor aquele sorriso dos hipócritas. Sujeito bem-nascido, recebera todos os mimos dos pais e, especialmente, da avó materna, que depositara todas as fichas no herdeiro assim que bateu os olhos no então menino desprovido de madeixas na maternidade.

          — Já nasceu com a expressão de rei.

          Se não chegou ao posto de rei, não foi por falta de vontade, mas porque o Brasil Império ficou para trás quando do golpe de 1889. No entanto, isso não foi impedimento para que Alcides crescesse com o dito cujo na barriga, já que se achava o dono não só da cocada preta, mas da branca e de todos os quitutes de cores diversas. 

          Tinha gente atrevida que dizia que Alcides não passava de um desocupado. Pura inveja, pois o homem era mestre em maquinar ideias para se dar bem. Que ficasse com os desprovidos de tutano o trabalho pesada, enquanto a ele era destinada a parte mais árdua, justamente a

 

 

 

 

 

 

 de raciocinar. Tanto é que até mesmo os demais, que ocupavam posições de destaque, não permitiam importunações quando Alcides, alcunhado de Cérebro, usava os bilhões de neurônios em prol de novos projetos para o bem da corporação. 

          — Esse Alcides não passa de um golpista! Isso, sim!

          — Cuidado com as palavras, delegado, que o homem é forte.

          — Pois vou agora mesmo tratar com o juiz!

          — Cuidado com o andor, delegado, que o santo é de barro. Ademais...

          — Ademais o quê, seu pastor?

          — Ademais que o juiz recebeu um carro de luxo.

          — Hum! Só me faltava essa!

          — Antes fosse só essa.

— Hum! E o promotor? Ele também?

          — Bem, o filho foi estudar na universidade na capital.

          — Hum!

          — Sem contar que...

          — O que mais, seu pastor?

          — Sem contar que a reforma da igreja já vai começar nesta semana.

          — Pois o que me falta, seu pastor?

          — Não olhe agora, seu delegado, que o homem tá vindo pra cá.

          Nisso, Alcides, com dois brutamontes logo atrás, se aproximou dos confabuladores. Com o costumeiro sorriso nos lábios, cumprimentou-os.

          — Bom dia, seu pastor! Bom dia, seu delegado!

          — Bom dia, seu Alcides! Estávamos aqui falando justamente do senhor.

          — É mesmo, seu pastor? E o que falavam? Espero que só coisas boas, pois ouvi dizer que tem gente descontente comigo.

          — E quem seria, seu Alcides? Certamente um ingrato! Não é mesmo, seu delegado?

          — Certamente um ingrato, seu pastor! Quem é que poderia falar mal do seu Alcides, não é mesmo?

          Alcides cofiou o bigode e, com um sorriso de canto de boca, pareceu esperar por mais adulações vindas da parte do delegado.

— Pois, seu Alcides, quando é que terei a honra de receber sua visita na nossa modesta delegacia? Melhor, faço questão também de recebê-lo para almoçar em minha humilde casa. A minha senhora é especialista em galinhada.

          A avó materna do Alcides, nessas horas, deve estar repleta de regozijo no cemitério da cidade. Afinal, tino de avó não falha. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Quase um rei" foi publicado por Notibras no dia 26/3/2025.
  • https://www.notibras.com/site/alcides-era-quase-um-rei-por-suas-tramoias/